A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE X O DIREITO À PROPRIEDADE: a observância do interesse social sobre o individual.

 

Lidiane Borges Coutinho

Marina Stella da Silva Aguiar

 

 

RESUMO

 

O presente trabalho visa discorrer sobre a função social da posse, que é interpretada por analogia da função social da propriedade, visto que o legislador silenciou acerca da primeira. A posse, sendo em seu sentido amplo exteriorização da propriedade, tem como objetivo garantir trabalho e moradia, direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, para seus possuidores e caso essa garantia não ocorra, a posse não estará cumprindo com sua função social, de modo que estará suscetível à possibilidade de ser usucapida por alguém que dê tal função a ela. Far-se-á, também, uma exposição acerca do histórico da posse na legislação brasileira, comparando-a a propriedade e diferenciando as duas no que tange a proteção constitucional e civil. Por fim, demonstrar-se-á, a importância do “utilizar” em detrimento do “ter” e como em determinadas situações deve-se privilegiar aquele que cumpre com a função social da posse, apesar de não ser seu verdadeiro proprietário.

 

Palavras-chave: Posse. Função Social. Propriedade.

 

1 INTRODUÇÃO

 

A função social da posse não constituindo um direito, mas um princípio implícito interpretado da função social da propriedade e de outros artigos do Código Civil que tratam do respeito ao exercício regular de um direito, contribui para o maior rendimento do solo, além de possibilitar a moradia como concretização dos direitos fundamentais.

O direito à propriedade tem espaço na Constituição Cidadã (1988) como sendo um direito inviolável que deve abarcar todos os brasileiros. Entretanto, esta é uma realidade muito distante da atual, pois as empresas, os ruralistas e o próprio governo possuem a maior parte das terras e restam poucas oportunidades para quem não possui moradia e busca uma fração de terra a fim de produzir e sustentar-se.

Dessa forma, terrenos nos quais não se desenvolve nenhum tipo de atividade produtiva que estão abandonados, sem os cuidados básicos exigidos, como muito ocorre no Brasil, devem imediatamente atender à sua função social tonando-se um benefício para a coletividade.

Questiona-se: é lícito retirar pessoas que moram há muitos anos em locais que antes não tinham funcionalidade alguma, mas que pertenciam a outros entes ou pessoas ?

Diante da problemática apresentada tem-se que a atuação de pessoas que utilizam a posse para trabalho e moradia quando o verdadeiro proprietário da terra é inerte a seu respeito, cumpre com a função social da posse prevista implicitamente na Constituição Federal e no Código Civil. Dessa forma o ‘’utilizar’’ se faz mais importante que o ‘’ter’’ e deve ser levado mais em conta quando os casos chegam aos tribunais, de maneira a permitir que aquele possuidor dê continuidade a seus direitos fundamentais ao utilizar-se da terra e assim seja respeitado o princípio da dignidade humana.

Como forma de garantir a concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, a função social da posse faz-se imprescindível, pois visa satisfazer as necessidades vitais de uma sociedade, de forma a funcionalizar-se, ou seja, atender a uma finalidade social, que é garantir a dignidade da pessoa humana.

Cientificamente, é importante discorrer acerca da função social da posse, pois esta apresenta um impasse logo à primeira vista: não há fundamentação legal para ela. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXIII (BRASIL, 2015, p. 7) previu expressamente a função social da propriedade, mas silenciou quanto à posse, de forma que resta interpretar esta à luz da analogia e do Código Civil de 2002, onde o legislador também não tratou expressamente da função social da posse, mas o fez de forma implícita quando legislou sobre usucapião.

Visto que a posse é imprescindível para a concretização de direitos e garantias fundamentais, como por exemplo, trabalho e moradia, de forma a suprir necessidades humanas e contribuir para um melhor andamento social, que não reflita tamanha má distribuição de terras nas mãos de poucos, o tema apresenta grande relevância jurídica e social, uma vez que envolve discussão de causa pertinente ao funcionamento da sociedade como um todo. O presente trabalho busca apresentar a relevância de se atender à função social da posse como forma de garantir direitos fundamentais e expor os elementos distintivos que existem entre a posse e a propriedade; além disso, é válido discorrer acerca dos danos que atingem a coletividade quando se obsta o exercício da função social da posse, apontando a concepção implícita da função social da posse na legislação e a aplicabilidade desta na sociedade brasileira.

Elaborada sob uma ótica procedimental, esta pesquisa abrange característica bibliográfica, e, no tocante aos objetivos, exploratória. (GIL, 2010) Para que a questão em análise seja perfeitamente compreendida, o presente trabalho expõe fatos importantes acerca da realidade social brasileira.

 

2 DOS ELEMENTOS DISTINTIVOS ENTRE A POSSE E A PROPRIEDADE

 

Segundo o artigo 1228 do Código Civil “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (BRASIL, 2015, p. 235); ainda assim, alguns dos poderes da propriedade são transferidos para o possuidor: “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade” (BRASIL, 2015, p.234). Teorias sociológicas criadas por Silvio Perozzi (Itália), Roymand Saleilles (França) e por Antonio Hernandez Gil (Espanha), para além dos dispositivos legais, definiram a posse como uma exteriorização da propriedade, a sua versão realizadora da função social. (DINIZ, 2014, p. 53)

Quanto às características inerentes ao direito à propriedade, Maria Helena Diniz trata deste como sendo absoluto, posto seu caráter erga omnes e a sua completitude como direito real tendo em vista as descrições de liberdade do proprietário diante da coisa que se encontra em seu poder (2014, p.136). Assevera a autora, acerca da natureza do domínio sua exclusividade, “em virtude de que a mesma coisa não pode pertencer com exclusividade e simultaneamente a duas ou mais pessoas” (2014, p.136), e enquanto ao seu caráter de perpetuidade diz que consiste na manutenção direito ainda que pelo não uso, a extinção do mesmo só pode decorrer da lei ou do animus do titular em se desfazer da coisa. (2014, p. 137).

A posse e a propriedade, de acordo com a perspectiva que se adota, também podem apresentar muitas semelhanças, comparando as suas características podemos atribuir àquela alguns atributos inerentes à propriedade; entretanto, a dogmática impede essa visão:

O valor e a eficácia da posse assemelham-se ao desempenho do direito de propriedade, no juízo dominial, tendo em vista que a melhor posse, no plano do juízo possessório, é dotada do atributo da validade e eficácia erga omnes, também em relação àqueles que pudessem alegar apenas direito de propriedade ou outro direito real. Mas no plano dogmático, considerando o sistema como um todo, é inviável sustentar essa posição. Isto porque a configuração de uma situação como sendo do direito real recolhe o seu fundamento de validade fora do plano das situações estritamente possessórias (fora da situação empírica ou de fato), ainda que, no plano de sua eficácia, em caso de conflito possessório, o titular desse dinheiro possa valer-se e comumente se valha dos remédios possessórios. (TAMAKI, 2015, p. 57)

O caráter erga omnes da propriedade exige implicitamente o pleno domínio da coisa, o que significa a supremacia da titularidade sobre a mera posse, caracterizando a propriedade como direito real mais relevante:

Dizer-se que a posse pode até afastar o dono – enquanto disputando posse, no plano possessório – não significa e nem implica que essa mesma situação, ou, mais precisamente a situação de poder sobre a coisa, haja de possibilitar seja levado o possuidor a obter solução judicial desfavorável ao dono, no plano dominial. [...] Sendo assim, e, estando a configuração do direito real sediada sempre no plano da situação dominial, quando dizemos que a posse não tem validade erga omnes, significamos que nesse plano dominial do direito das coisas – num plano institucionalizado – ela não pode prevalecer em relação ao titular do direito de propriedade. (TAMAKI, 2015, p. 57)

 

A mera posse não dá ao possuidor a capacidade de dispor desse bem como dono, titular, pois não está diante do mesmo âmbito dominial da propriedade. Somente prepondera sobre o domínio no modo de possessio ad usacapionem, no qual já há equiparação ao direito de propriedade, segundo Tamaki (2015, p. 57). Assim, a usucapião faz valer a perda de titularidade do proprietário anterior sobre a propriedade.

A propriedade enquanto direito positivado é o direito real mais importante, como já foi dito; já, do caráter da posse há divergências se se trata de matéria de fato ou de direito. Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. [?]) faz esse mesmo questionamento e expõe opiniões de diferentes autores, afirma que segundo Ihering, a posse se manifesta como um direito, ou seja, como um ganho que é protegido pela lei; e, para Clóvis Beviláqua, não constitui um direito, mas é basicamente um fato, acolhido em virtude do seu desdobramento da propriedade. Já, segundo Savigny, a posse tem ambas naturezas jurídicas, é tanto fato e quanto direito.

 A posse, por sua vez, pode ser perdida com

o abandono, que se dá quando o possuidor renuncia à posse [...] e a tradição, que só acarreta a perda da posse quando envolve a intenção definitiva de transferi-la a outrem. [...] pela destruição da coisa; por sua colocação fora do comércio [...] ; e pela posse de outrem, ainda que a nova posse se tenha firmado contra a vontade do primitivo possuidor, se este não foi mantido ou reintegrado em tempo oportuno. O desapossamento violento por ato de terceiro dá origem à detenção, viciada pela violência exercida. Com o convalescimento desse vício, surge a posse [...] A perda da posse pelo primitivo possuidor não é, pois, definitiva. Ela somente ocorrerá se permanecer inerte durante todo o tempo de prescrição da ação possessória. O constituto possessório, [...] também pode acarretar a perda da posse. (GONÇALVES, 2012, p.[?])

Há que se fazer uma importante distinção entre ação possessória e ação reivindicatória, destinadas cada uma a satisfazer e discutir um direito distinto no tocante a posse ou à propriedade: “no juízo possessório em que se discute o direito em razão da posse, apenas a posse é tratada como fato e também como fim a ser alcançado. Já, no âmbito reivindicatório, o tema é tratado em conformidade com a demonstração de propriedade e visa-se o reconhecimento do domínio.” (TAMAKI, 2015, p. 60).

Em relação à natureza jurídica da função social da propriedade e da posse pode-se dizer que “[...] sob [o] aspecto de princípio formal, o conteúdo jurídico da função social da propriedade ganha legitimidade apenas quando formulado através do Poder Legislativo, na medida em que configura conteúdo de competência exclusiva” como assevera Tamaki (2015, p. 68), citando Robert Alexy, o caráter de princípio permite que esse requisito exigido para que se continue o exercício do direito a propriedade possa ser efetivado de diferentes formas; a função social da posse também, “trata-se, a toda evidencia, de um preceito normativo com natureza de princípio, dado seu elevado grau de abstração e generalidade.” (TAMAKI, 2015, p.72), sendo um reflexo da função social da  propriedade, não é algo que ou se obedece ou não se obedece o que a norma ordena, mas também que pode se efetivar de várias maneiras.

Dentre outras distinções, os conceitos de posse e propriedade vêm sendo estudados conforme as alterações decorrentes da transformação social da realidade, juntamente com as disposições dos órgãos essenciais à justiça acerca das mesmas.

 

3 DOS DANOS CAUSADOS À COLETIVIDADE NO QUE TANGE À INTERRUPÇÃO DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE

 

A função social da posse uma vez que possibilita à coletividade o acesso à moradia e ao trabalho através do aproveitamento da terra, constitui um princípio muito importante para a efetivação da dignidade da pessoa humana.

Ao possuir bens como fruto do seu esforço, o homem deve ter a consciência plena de que o direito que tem sobre determinada coisa não deve prejudicar a sociedade, e, que, ao contrário disto, ao desprover desses bens não deve primar exclusivamente pelos próprios benefícios, mas também deve direcionar seu trabalho em prol do bem comum.

Não raro, pessoas são despejadas dos locais nos quais se estabeleceram habitualmente por longos anos e fizeram render a terra onde antes não havia atividade produtiva alguma. Como no caso em questão:

0003050-11.2009.8.19.0003 - APELACAO - 1ª Ementa DES. CARLOS SANTOS DE OLIVEIRA - Julgamento: 30/04/2013 - NONA CAMARA CÍVEL AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONSTRUÇÃO EM FAIXA MARGINAL DE PROTEÇÃO. ZONA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. PERÍCIA CONCLUSIVA DE DANO AMBIENTAL DE BAIXA MAGNITUDE. ÁREA URBANIZADA. INTERESSE SOCIAL. DEMOLIÇÃO DO IMÓVEL NÃO RECOMENDADA. 1. Não se desconhece o comando inserto no art. 225 da Constituição Federal ou o teor da legislação infraconstitucional acerca da impossibilidade de construção na Faixa Marginal de Proteção (FMP) de cursos d´água, sendo este o caso analisado. 2. Contudo, a prova pericial e demais elementos dos autos foram conclusivos no sentido de que se trata de área de alta densidade urbana, com diversas construções abastecidas por serviços públicos, inclusive havendo vias públicas abertas pela própria edilidade, que colaboraram para a ocupação do local, bem como que a construção apenas retirou uma pequena área coberta de vegetação não nativa, classificando o impacto ambiental como de baixa magnitude. 3. Acrescente-se que no caso a medida pleiteada - demolição da construção - não atenderia aos princípios da função social da posse, mormente por tratar-se de imóvel localizado em Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), passível de regularização fundiária. 4. Há que se sopesar o relevantíssimo direito ao meio ambiente com outros direitos e princípios do ordenamento jurídico de forma equilibrada, o que foi alcançado pela sentença de procedência parcial do pedido, que adotou as medidas mitigatórias e compensatórias indicadas no laudo pericial, que se mostram adequadas ao caso concreto, restando afastada a necessidade de condenação do réu ao pagamento de indenização por dano moral coletivo. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJRJ, 2013, p. [?])

Destarte, muitas vezes, as pessoas ficam impedidas de continuarem a exercer a função social da posse no local onde estabeleceram suas moradias, e, consequentemente, ficam privadas de desproverem da dignidade proporcionada pelos direitos fundamentais, que, constitucionalmente, deveriam abarcar a todos de maneira igualitária.

Entretanto, no plano dogmático, essas posses fogem aos juízos e interpretações da lei, que prevê um processo e requisitos para que alcancem o caráter de propriedade. Diz Luiz Henrique Tamaki (2015, p. 82) que “sempre que se identifica um direito subjetivo de posse contra um titular de propriedade sem previsão legal surge na consciência do corpo social a ideia de que invadir a propriedade significa conquista-la, sendo que a luta pelos seus direitos decorre da naturalidade desse sistema normativo”, o autor tenta explicar a necessidade de o Poder Legislativo se manifestar acerca desses direitos buscados por essas vias, uma vez que a função social da posse é apenas interpretada da função social da propriedade, apenas esta está prevista no texto legal. Pois

[...] a força motriz dos conflitos entre a posse e a propriedade nos dias atuais decorre da suposição de existência de direitos subjetivos que não estão previstos em lei, mas que poderão ser protegidos se demonstrada a devida necessidade e estado de miserabilidade, que justificam inclusive o uso da força na medida em que situações semelhantes em outras ocasiões o direito albergado foi dos esbulhadores. (TAMAKI, 2015, p. 83)

Essa suposição de direitos subjetivos decorre da indignação desses indivíduos com tal estado de miserabilidade e de abandono pelo Estado em que se encontram. É do Estado, portanto, a responsabilidade de fazer cessar essa suposição, oferecendo a essas pessoas amparo legal.

 

4 A CONCEPÇÃO IMPLÍCITA DA FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE NA LEGISLAÇÃO E A APLICABILIDADE DESTA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

 

Posse, em seu sentido amplo é entendida como exteriorização da propriedade, é ‘’o poder fático sobre um bem da vida, com admissibilidade de desmembramento em graus, refletindo o exercício ou possibilidade de exercício de um dos direitos sociais suscetíveis de posse’’ (DINIZ, 2010, 39). O termo, por si só apresenta árdua caminhada no direito brasileiro, o fato de o legislador ter sido implícito acerca dele deixou a cargo da doutrina conceituar a posse, de forma que esta já teve diferentes concepções ao longo dos anos, desde as teorias objetiva e subjetiva de Ihering e Savigny.

No que diz respeito a função social da posse, esta também não é explícita na Constituição Federal, ou no Código Civil, de forma que precisa ser interpretada à luz da analogia da função social da propriedade, prevista no artigo 5º, inciso XXIII (BRASIL, 2015, p. 7) da Constituição Federal de 1988, que prevê que toda propriedade atenderá sua função social. É possível extrair a função social da posse dos artigos 191 e 183 da Constituição, os quais versam sobre usucapião especial rural e usucapião especial urbana. Destaca-se que o legislador no Código Civil de 2002 também não tratou de maneira expressa da função social da posse, no entanto, faz-se possível identifica-la na usucapião imobiliário que se encontra nos artigos 1.238, parágrafo único, 1.239, 1.240 e 1242, parágrafo único. Além do Código Civil de 2002, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que também versa sobre usucapião, possibilitou identificar no caput do artigo 10, a funcionalização da posse:

As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. (BRASIL, 2001)

A posse em sua finalidade social tem por objetivo atender à garantia de trabalho e moradia, protegidas pelo artigo 6º da Constituição, em seu bloco de fundamentalidade, o qual prevê que ‘’São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição’’ (BRASIL, 2015, p. 11-12).

A função social da posse como princípio constitucional positivado, além de atender à unidade e completude do ordenamento jurídico, é exigência da funcionalização das situações patrimoniais, especificamente para atender as exigências de moradia, de aproveitamento do solo, bem como aos programas de erradicação da pobreza, elevando o conceito da dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal. É forma ainda de melhor se efetivar os preceitos infraconstitucionais relativos ao tema possessório, já que a funcionalidade pelo uso e aproveitamento da coisa juridiciza a posse como direito autônomo e independente da propriedade, retirando-a daquele estado de simples defesa contra o esbulho, para se impor perante todos. (ALBUQUERQUE, 2002, p. 40).

Dessa forma é entendido que, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, mais importante que o ter é utilizar, dar finalidade à coisa. O proprietário que não se utiliza de sua propriedade pode vir a ter a mesma usucapida por alguém que dê uma finalidade de trabalho ou moradia a ela e cumpra sua função social, que ‘’afasta o individualismo, coibindo o uso abusivo da propriedade, que deve ser utilizada para o bem comum” (DINIZ, 2010, p. 107).

Portanto, a noção e verificação da função social da posse são imprescindíveis para a concretização de princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, como trabalho e moradia, que garantem a dignidade da pessoa humana. Sendo assim é necessário priorizar aquele que dá finalidade à posse e a utiliza de forma a atender sua função social, em detrimento daquele que detém sua propriedade, mas permanece inerte a ela, e é isso que a jurisprudência vem fazendo ao negar provimentos de reintegração de posse e julgar procedentes ações de usucapião, a fim de proteger cidadãos e famílias que necessitam mais e fazem melhor uso da terra que seus proprietários.

4.1 A posse como garantidora de direitos fundamentais

 

Os direitos fundamentais estão elencados na Constituição Federal e dizem respeito às garantias essenciais a todo cidadão brasileiro, sem as quais não haveria de se falar em dignidade da pessoa humana. Acerca dos direitos sociais tem-se que:

(...) como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitem melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao aferimento de igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.” (SILVA , 1955, p. 276-277)

 

Desse modo, a utilização da posse, em respeito a sua função social, é meio para a concretização de direitos, tais como moradia, trabalho e dignidade, de forma a se tornar uma necessidade social e econômica imprescindível ao bem estar da pessoa humana.

A função social da posse traz valores subjacentes ligados à própria existência humana, como a vida, a saúde, a moradia, a igualdade e a justiça. A norma a admite, posto que quando reconhece a possibilidade de usucapir bens imóveis através das modalidades especiais, com prazos reduzidos para cinco anos, ali o legislador confere à posse categorização social. O que justificaria usucapir área urbana de até 250m2 ou 50 hectares em área rural em lapso de tempo reduzido, sem justo título e boa-fé, se não fosse a função social aplicada? O que justificaria o legislador, na Lei 10.250/2001 (Estatuto da Cidade), admitir a usucapião coletiva voltada para a população de baixa renda - ou até mesmo a expropriação judicial promovida no artigo 1.228 § 4º, do Código Civil, se não fosse a primazia da utilização social do bem? (CORREA; SOARES, 201[?], p. 14).

Em todas as situações descritas acima é possível identificar a valorização do social em detrimento do individual, pois aquele que utiliza a posse de forma a conferir-lhe uma função, seja para ‘’ a) favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; b) manter níveis satisfatórios de produtividade; c) assegurar a conservação dos recursos naturais’’ (CORREA; SOARES, 201[?], p. 12) tem prioridade em seu uso, pois, visto que o proprietário não usufrui corretamente de sua propriedade, não cumpre com sua finalidade, seja para trabalho, seja para moradia, aquela pessoa que dá essa finalidade à posse, cumprindo os devidos requisitos legais, terá direito sobre ela, de forma a passar por um verdadeiro processo de inclusão social.

Sendo a posse, em sua função social, meio tão importante para a realização do indivíduo, a jurisprudência vem desenvolvendo grande importância no cenário nacional ao promover sua garantia para aqueles que nela vivem ou trabalham. Apesar da usucapião ser um processo demorado e que demanda vários requisitos para ser concedida, pleiteá-la em juízo é imprescindível para o reconhecimento da função social da posse e a garantia de um novo direito de propriedade a surgir. Como exemplo, há a seguinte apelação que nega reintegração de posse em vista do cumprimento de sua função social por outrem:

0003045-53.2002.8.19.0061 - APELACAO - 2ª Ementa DES. GILDA CARRAPATOSO - Julgamento: 31/07/2013 - DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL AGRAVO INTERNO EM APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL. DECISÃO MONOCRÁTICA QUE JULGA IMPROCENDENTE O PLEITO REINTEGRATÓRIO. AGRAVO INTERNO INTERPOSTO PELO AUTOR. DEMANDANTE QUE ASSEVERA, EM DEPOIMENTO, QUE O DEMANDADO INICIOU O ATERRO DE PARTE DO TERRENO OBJETO DA LIDE QUANDO POSSUÍA 13 (TREZE) OU 14 (QUATORZE) ANOS. AGRAVADOS QUE EXERCEM A POSSE DE ÁREA OBJETO DO LITÍGIO HÁ MAIS DE 40 (QUARENTA) ANOS, COM CRIAÇÃO DE GALINHAS E PLANTAÇÕES, EXERCITANDO A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE. ESBULHO ORIUNDO DE ATO VIOLENTO, CLANDESTINO OU COM VÍCIO DE PRECARIEDADE NÃO COMPROVADO. POSSE CONSOLIDADA PELO DECURSO DO TEMPO. IMPOSSIBILIDADE DE DISCUSSÃO ACERCA DA PROPRIEDADE DO BEM, EM SEDE DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. AGRAVANTE QUE NÃO TRAZ ARGUMENTO NOVO A ENSEJAR A ALTERAÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. AGRAVO INTERNO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. (TJRJ, 2013, p. [?])

 

Portanto, a noção e verificação da função social da posse são imprescindíveis para a concretização de princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, como trabalho e moradia, que garantem a dignidade da pessoa humana. Sendo assim é necessário priorizar aquele que dá finalidade à posse e a utiliza de forma a atender sua função social, em detrimento daquele que detém sua propriedade, mas permanece inerte a ela, e é isso que a jurisprudência vem fazendo ao negar provimentos de reintegração de posse e julgar procedentes ações de usucapião, a fim de proteger cidadãos e famílias que necessitam mais e fazem melhor uso da terra que seus proprietários.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A função social da posse é um principio implícito no ordenamento jurídico brasileiro, pois não possui previsão ou fundamentação na legislação, de forma que resta interpretá-la por analogia à função social da propriedade, prevista no artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal e à luz do Código Civil de 2002, que prevê diversos tipos de usucapião.

Figurando de modo imprescindível para a concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, a função social da posse possibilita à sociedade o acesso à moradia e ao trabalho através do aproveitamento da terra, sendo assim garantidora do principio da dignidade humana.

Porém, é fato que no Brasil impera a má distribuição agrária e, enquanto poucos possuem grandes áreas de terras e não a utilizam, muitos sequer possuem terras e, em decorrência disso, têm seus direitos ao trabalho, moradia e dignidade violados. É em consequência desse cenário que a legislação prevê as espécies de usucapião, de forma que os indivíduos que cumprirem os requisitos para usucapir propriedade alheia venham a ter assegurados seus direitos.

Portanto, a função social da posse é essencial à realização humana no que diz respeito a trabalho e moradia, contribuindo também para a erradicação da pobreza no país. É imprescindível valorizar o ‘’utilizar’’ em detrimento do ‘’ter’’ e proteger aquele que dá finalidade à posse, de forma a alcançar uma sociedade mais igualitária e garantir o princípio da dignidade da pessoa humana para todos.    

     

REFERÊNCIAS

 

ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002. p. 40.

 

BRASIL. Código Civil. Vade Mecum. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

BRASIL. Constituição Federal. Vade Mecum. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

BRASIL. Lei             10.257/01: ESTATUTO DA CIDADE.       Disponível      em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm> Acesso em 7 set 2015

 

CORREA, Cláudia Franco; SOARES, Irineu Carvalho de Oliveira. A função social da posse como instrumento da regularização fundiária em favelas. Disponível em: < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=843a4d7fb5b1641b> Acesso em: 29 out. 2015.

 

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito das coisas. v. 4. São Paulo; Saraiva, 2010.

 

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas – v. 4.  29. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014

 

GIL, A. C. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das coisas. 13. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012.

 

TAMAKI, Luiz Henrique. Função social da posse. HARMS, Marisa. In Revista dos Tribunais, Ano 104, vol. 956. 2015.

 

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Função Social da Posse. 2013. Disponível em Acesso em 7 set 2015

 

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10 ed. São Paulo: Malheiros. 1995