A AMAZÔNIA E O PRINCÍPIO DA SOBERANIA: Suas limitações frente ao desmatamento
Por tirciane chuvas aragão albuquerque | 23/06/2016 | DireitoA AMAZÔNIA E O PRINCÍPIO DA SOBERANIA:
Suas limitações frente ao desmatamento[1]
Tirciane Chuvas [2]
Sumário: Introdução; 1. O Caso Smelter Trail e os Danos Transfronteiriços; 2. Os Danos Ambientais na Amazônia; 3. Soberania Brasileira sobre a Amazônia; Considerações Finais; Referências.
RESUMO
É indiscutível que o Direito Internacional Público tem como um dos princípios fundamentais o respeito à soberania do Estado, mas atualmente já não se pode mais falar em soberania absoluta. A ordem jurídica e o bem estar da humanidade, na tentativa de preservar o meio ambiente, impõem limitações. O caso Smelter Trail, por sua vez, foi um marco que influenciou a criação dessas limitações, que ganharam status de princípio e foram ratificadas pelo Brasil nas Conferências das quais foi signatário. Mas aqui, vivemos uma realidade diferente. O problema do desmatamento da floresta amazônica, por exemplo, é grave. Assim, a percepção do caráter transfronteiriço dos danos ambientais torna cada vez mais insustentável o discurso dogmático da soberania absoluta dos Estados. Porém, mesmo tendo sido signatário das Conferências do Rio e da África do Sul, percebemos que o Brasil não adota essa postura. O princípio da soberania estatal deve nortear os Estados, mas as mudanças históricas impuseram um novo rumo às premissas deste princípio, e é preciso reavaliar seu significado a fim de assegurar a devida proteção ambiental.
PALAVRAS-CHAVE
Princípio da Soberania - Limitação - Amazônia- Danos Ambientais
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal Brasileira de 1988 consagrou, no artigo 225, o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Constituições de países do mundo inteiro também prevêem em seus textos a garantia de um meio ambiente preservado. Não são direitos tão evidentes quanto à Saúde e à Educacao, mas a exploração desmedida e a escassez de recursos naturais têm evidenciado cada vez mais o tema “meio ambiente” nos debates internacionais. A floresta amazônica, por sua vez, pela dimensão e singularidade, ocupa lugar de destaque nesses debates. Sua contribuição para o equilíbrio ambiental do planeta é indiscutível, posto que a área contém a maior coleção de espécies vivas animais e vegetais do mundo e é responsável por 10% das reservas de carbono (AMAZÔNIA, 2011).
Apesar dos esforços empreendidos nos últimos anos na tentativa de evitar uma tragédia maior, o desmatamento da floresta amazônica representa uma grave ameaça. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), através do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (DETER), revelam - desde o início de sua atuação, em 2004 – que houve períodos em que a degradação florestal sofreu desaceleração, mas de forma geral, as ações de desmatamento têm causado danos irreparáveis para o meio ambiente (INPE, 2011).
Este trabalho tem como escopo relacionar o desmatamento da Amazônia e os limites hoje presentes no princípio da soberania dos Estados. Pretende-se analisar, sem, no entanto, ter a pretensão de esgotar o tema, de que forma esses limites surgiram; como se percebe hoje o caráter transfronteiriço dos danos ambientais; as mudanças no discurso dogmático da soberania absoluta dos Estados; e de que forma esse princípio norteia a realidade brasileira no que tange à proteção da mais importante floresta do mundo, a Amazônia.
- O CASO SMELTER TRAIL E OS DANOS TRANSFRONTEIRIÇOS
A preocupação mundial com o meio ambiente implicou nova leitura do Direito Internacional, fazendo surgir novos princípios e doutrinas. Essa abordagem poderia ser vista como ameaça à soberania dos Estados sobre seus recursos naturais, princípio clássico e fundamental das relações inter-estatais. Dentre os princípios do Direito Internacional Público que mais contribuem para a garantia da paz encontra-se o princípio da não ingerência nos assuntos internos de outro Estado, através do qual existe uma esfera de competência reservada exclusivamente ao Estado territorial, na qual não caberia a nenhum outro interferir.
O caso Smelter Trail veio dar outros contornos ao princípio da soberania dos Estados, tendo início a partir de uma queixa apresentada pelo Governo dos Estados Unidos contra o Governo do Canadá à Comissão Mista Internacional, baseando-se nos termos do Tratado de Águas de Fronteira, de 1909. A empresa canadense Consolidated Mining And Smelting, do ramo de zinco e chumbo, foi acusada de poluir áreas do estado de Washington com emissões de dióxido de enxofre. A Comissão Mista Internacional finalizou o relatório em 1931, reconhecendo e recomendando a realização de acertos definitivos por parte da empresa canadense e estipulando indenização pelos danos causados. A decisão do Tribunal, a favor dos Estados Unidos, estabeleceu como princípio a prevenção do dano ambiental transfronteiriço, preceituando:
[...] Nenhum Estado tem o direito de usar ou de permitir o uso de seu território de tal modo, que cause dano em razão do lançamento de emanações no, ou até o território de outro. (PACHECO, 2009. p. 8)
Foi uma decisão emblemática, que marcou a História e influenciou toda uma geração, pois trouxe à tona uma clara noção do dano transfronteiriço e a possibilidade dos prejuízos ambientais ultrapassarem as fronteiras. Destaca-se aqui a definição de “fronteira” além do aspecto físico, posto que, quando se fala em meio ambiente e em desastres ambientais, tem-se que os danos podem tornar-se irreversíveis e ir além do comumente conhecido e previsivelmente alcançado, pois percorrem uma vastidão imensurável em questão de dias, quiçá, horas, ou seja, atravessam os limites antes “domináveis” e passam para o campo do incontrolável.
É justamente pensando nesta problemática que o Direito Ambiental Internacional abrange e converge os regramentos que visam evitar ou amenizar possíveis danos ambientais. Considerando que o meio ambiente está fortemente ligado à sustentabilidade e ao desenvolvimento econômico, destaca-se que o Direito Internacional deixou de limitar-se aos Estados e à relação entre eles, para abarcar os indivíduos como portadores de direitos e de deveres. Compreende-se que os danos causados em possíveis degradações ao meio ambiente em regiões transfronteiriças trazem problemas muito além dos visíveis a curto prazo; tais desastres podem acarretar desestabilização econômica e problemas de saúde a curto, médio e longo prazo.
Assim, afirma-se que as posições dos Estados e dos atores globais ficaram mais claras e suas responsabilidades mais urgentes e suscetíveis às cobranças, considerando que a visão definida de fronteira é variabilíssima quando tratamos de meio ambiente, e toda catástrofe ambiental ou dano causado ao nosso habitat será compartilhado, direta e/ou indiretamente, por vários povos e nações.
Parte daí, então, o princípio pelo qual os Estados podem ser responsabilizados à luz do Direito Internacional. Devido ao caráter transfroteiriço dos danos ambientais, a solução para os efeitos globais advindos da degradação ambiental têm sido buscada com a proposição de tratados, acordos, convenções e a realização de reuniões internacionais. Dentre as declarações internacionais mais conhecidas, vamos encontrar limites à soberania territorial do Estado nos Princípios da Declaração de Estocolmo (1972) e da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992. Em relação aos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, destaca-se, por exemplo, o Tratado de Cooperação Amazônica de 1978 (SANT`ANNA, 2009, p. 76).
- OS DANOS AMBIENTAIS NA AMAZÔNIA
Não é novidade que a floresta amazônica é a maior floresta tropical do mundo, ocupando os territórios do Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. No coração da região amazônica, encontra-se a Amazônia Brasileira, englobando quase 68% da Bacia Amazônica (SILVA, 2008, p. 186). Aqui, a Amazônia brasileira é denominada Amazônia Legal e engloba nove estados brasileiros: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão. São cerca de 775 municípios, onde viviam há 10 anos mais de 20 milhões de pessoas – aproximadamente 12% da população nacional, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ((IBGE, 2011).
Porém, a importância da região é proporcional aos danos que está sofrendo. Dados do INPE (Instituto nacional de Pesquisas Espaciais), obtidos pelo Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (DETER), referentes aos meses de fevereiro a abril de 2010, revelam que nesse período houve um desmatamento de 197,3 km2 na região. Já em março e abril de 2011, as ações atingiram preocupantes 593 Km2, sendo 480,3 Km2 somente no Estado do Mato Grosso. (INPE, 2011)
São danos irreparáveis, que trazem à tona a dimensão dos mesmos sobre o patrimônio ambiental que pertence à coletividade, e em se tratando de ações continuadas que perduram por um longo tempo, pode-se falar em danos históricos progressivos:
[...] tais danos são tratados pelo Livro Verde da Comunidade Européia, [...], esclarecendo Catalá, ao comentar legislação, que os danos progessivos são conseqüência do efeito acumulativo das atividades de vários agentes, em que é impossível determinar qual delas produziu o dano concreto. Isoladamente, nenhuma das fontes poluidoras tem potencialidade lesiva para romper com o equilíbrio ecológico. (ESTEIGLEDER, 2004. p. 151-152)
- SOBERANIA BRASILEIRA SOBRE A AMAZÔNIA
Atualmente, ainda estamos longe de afirmar que a degradação da floresta amazônica está causando prejuízos substanciais a Estados vizinhos ou à Sociedade Internacional como um todo, não havendo nenhum estudo científico específico que determine seu real impacto no meio ambiente global. Dessa forma, não há o que falar da responsabilidade internacional do Brasil por danos a áreas fora de sua jurisdição. Porém, é mister analisar a polêmica idéia de governança global da floresta amazônica.
Não é de hoje o receio da sociedade internacional diante da aparente “ineficácia” do governo brasileiro em controlar o desmatamento da floresta amazônica, tanto que alguns líderes mundiais teriam proposto algum tipo de “internacionalização” da região, como o ex vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore: "Ao contrário do que os brasileiros pensam a Amazônia não é deles, mas de todos nós" (SILVA, 2002).
Mesmo tendo participado de inúmeros debates mundo afora, questiona-se, sob a ótica do Direito Internacional, se o Brasil assumiu alguma obrigação concreta de proteger e conservar a floresta amazônica, e se o descumprimento dessa obrigação poderia legitimar a ação dos demais Estados e, eventualmente, suscitar a ingerência ecológica na região.
Desde já, há que se ter em mente que no Direito Internacional as obrigações dos Estados não se presumem, pois devem estar previstas seja em norma internacional convencional ou costumeira. Mais importante ainda, qualquer restrição à soberania territorial de um Estado tem de estar prevista em norma ou princípio internacional de forma específica e clara. Nesse diapasão, se no direito convencional não se vislumbra nenhuma cessão ou limitação de soberania do Brasil no que tange à floresta amazônica, a dúvida poderia ainda persistir quanto ao direito costumeiro. Isso porque poder-se-ia assimilar a obrigação de não causar danos ao meio ambiente global à obrigação de proteger direitos humanos. Exceto a consagração do princípio de que os Estado são responsáveis por danos significativos causados a áreas fora de sua jurisdição, nada no Direito Internacional nos leva a inferir que o meio ambiente possua status tão elevado quanto ao de algumas proibições relacionadas à proteção de direitos humanos, não constituindo, portanto, norma própria a legitimar qualquer tipo de ingerência estrangeira ou internacional.
Assim, não podemos afirmar que existe um direito de ingerência ecológica, e qualquer tentativa nesse sentido seria uma violação ao princípio de não-ingerência nos assuntos internos, esse sim, poderia ser alçado à categoria de norma de Direito Internacional porquanto reforça dois outros grandes princípios: o da igualdade jurídica entre os Estados e o da soberania estatal permanente sobre seus recursos naturais, como vimos anteriormente.
Não se pode negar e nem impedir o interesse da sociedade internacional na preservação e conservação da floresta amazônica, mas esse interesse restringe-se apenas ao plano teórico-intelectual, ou quando muito, ao da cooperação internacional.
Embora a Convenção de 1972 reconheça a soberania do Estado sobre a área natural situada em seu território, ela estabelece que essa área constitui uma herança de toda a comunidade internacional, de modo que todos os demais Estados têm o dever de cooperar na sua conservação. Porém, em momento algum a Convenção limita a soberania do Estado brasileiro sobre a área protegida. A única “sanção” que poderá sofrer é a de não ver atendido eventual pedido ao Comitê de assistência internacional. Dessa forma, não vemos aí nenhuma possibilidade para qualquer tipo de ingerência ecológica na área protegida, pois competirá sempre ao governo brasileiro, em caráter exclusivo, adotar as políticas que melhor atendam aos interesses do povo brasileiro, e não da Sociedade Internacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É visível o desenvolvimento que o Direito Ambiental Internacional experimentou desde o Caso da Fundição Trail. Décadas se passaram desde então, e a vitória dos Estados Unidos, nesse caso, foi o início de uma nova mentalidade: a ideia de que, na luta em prol do meio ambiente, o mundo não tem fronteiras. Porém, o Direito Internacional em seu estágio atual não parece respaldar nenhuma forma de limitação da soberania brasileira sobre a floresta amazônica, tanto no que diz respeito à responsabilidade internacional do Estado por danos ao meio ambiente global – não havendo aí nenhum vínculo direto entre os atos praticados e o eventual dano – e tampouco no tocante às supostas pretensões de soberania compartilhada.
O problema do desmatamento na Amazônia é, de fato, grave. Autoridades americanas chegaram a declarar que poderiam intervir na região, caso o governo brasileiro não fosse competente para cuidar dela. Aliás, manifestações nesse sentido não são recentes e desde a Conferência de Estocolmo, de 1972, que ameaças de uma eventual intervenção têm sido feitas.
Embora o Brasil tenha assumindo publicamente o compromisso geral de proteger o meio ambiente mundial, essa obrigação não está substancialmente concretizada para realmente criar algum tipo de responsabilidade internacional ou ainda o direito de ingerência ecológica.
Dizer que a floresta é de interesse comum da humanidade significa apenas que é um bem importante para todos, nacionais e estrangeiros, de modo que deve ser protegido em prol de toda a humanidade. Essa obrigação, com efeito, já se encontra prevista na própria Carta Magna, conforme foi dito. Contudo, a proteção da floresta amazônica deve estar em consonância com outras necessidades de caráter sócio-econômico, pois o bem maior a que se deve proteger é o próprio Homem, o qual merece e deve viver de forma digna. Caberá, portanto, ao Estado brasileiro e à sociedade brasileira como um todo encontrar a melhor solução na busca do desenvolvimento com o menor impacto possível ao meio ambiente, o que se costuma chamar de desenvolvimento sustentável.
Em suma, entende-se que, com base no Direito internacional em vigor, a soberania brasileira sobre a floresta amazônica não está ameaçada e tampouco reduzida. Constatado isto, não se quer aqui defender uma violação ao princípio da Soberania dos Estados, mas claro está que os limites, à luz do Direito Ambiental, são necessários para minimizar as ações nocivas que vêm afetando de forma irreversível o meio ambiente. Limites que, se devidamente impostos, poderiam garantir o equilíbrio entre a satisfação das necessidades humanas e a conservação ambiental.
REFERÊNCIAS
Amazônia. Disponível em: ˂ http://www.amazonia.org.br/˃. Acesso em: 14 de mai. 2011.
ESTEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade Civil Ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE. Disponível em: ˂http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/geografia/mapas_doc5.shtm˃. Acesso em: 15 mai. 2011.
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE. Disponível em: ˂http://www.obt.inpe.br/deter/˃. Acesso em: 20 mai. 2011.
PACHECO, Ana Carla de Albuquerque. Soberania Nacional e Meio Ambiente Global: Desafios ao Direito do Século XXI. Disponível em: ˂http://www.usp.br/fdrp/noticias/3_semana_juridica_2010/papers/Ana%20Carla%20de%20Albuquerque%20Pacheco.pdf˃. Acesso em: 15 de mai. 2011.
SANT`ANNA, Fernanda Mello. Cooperação Internacional e Gestão Transfronteiriça da Água na Amazônia. 2009. Disponível em: ˂ www.teses.usp.br/teses/.../8/.../FERNANDA_MELLO_SANTANNA.pdf˃. Acesso em: 15 de mai. 2011.
SILVA, Solange Teles da. Tratado de Cooperação Amazônica: estratégia regional de gestão dos recursos naturais. Revista de Direito Ambiental: Editora Revista dos Tribunais, 2008. Ano 13, n. 52.
SILVA, Washington Luís Alves da. Amazônia: estão de olho nela! Adaptado da revista Cadernos do Terceiro Mundo. São Paulo, 2002. Disponível em: ˂http://www.geomundo.com.br/meio-ambiente-40165.htm˃. Acesso em: 15 mai. 2011.
[1] Paper apresentado como requesito parcial para obtenção da nota na disciplina de Direito Ambiental do curso de Direito da UNDB, ministrado pela professora Thaís Viegas..
[2] Acadêmica do 4º período noturno do Curso de Direito da UNDB (karinalamara@hotmail.com).