Daniel Medeiros*

 Na manhã daquela terça-feira, 24 de agosto, há 61 anos, o país era sacudido pela notícia do suicídio de Getúlio Vargas. Ato final, trágico e desconcertante, de uma trama que contou com um coro golpista capitaneado pela UDN e por seu líder, o “corvo” Carlos Lacerda, e pela cúpula do Exército e da Aeronáutica, fortemente influenciadas pelas lições da Escola Superior de Guerra e a tese do inimigo interno, o “comunismo” - entendendo-se por “comunismo” tudo o que colocasse em risco os interesses do capital norte americano, suas ambições geopolíticas e as associações com os grupos econômicos, rurais e urbanos, no Brasil.

Some-se a isso uma classe média desinformada e açulada por uma crise econômica crescente e insatisfeita com as tentativas de adoção de políticas de distribuição de renda, particularmente o aumento do salário mínimo. E então tivemos o cenário do golpe que virou tragédia.

O suicídio de Vargas, na bacia das almas, tirou o doce da boca dos golpistas, instilando as massas desamparadas contra os inimigos do “pai dos pobres”. O momento do golpe se perdeu e teve de esperar um momento mais propício, que viria dez anos mais tarde.

 A política de reconhecimento dos direitos das massas e sua inserção no jogo político era inaceitável pelos setores acima citados: militares, classe média, empresários, fazendeiros e seus patronos internacionais. As regras do jogo secular, garantia da perpetuação de poderes e propriedades, poderiam mudar rapidamente - e privilégios consolidados (como uma herança “legitimamente” defendida) corriam riscos. Embora nem tanto: o velho caudilho era, na verdade, um reformista moderado. No entanto, as concessões insuflavam novas demandas e dívidas sociais de sempre pareciam, pela primeira vez, capazes de ser cobradas por seus titulares: os camponeses e os operários. E os devedores não estavam dispostos a acertar as contas.

Vargas caiu porque enredou-se nos escândalos de corrupção de seus próximos – assessores e parentes – e porque não conseguiu manter a política de “agradar gregos e troianos” que garantiu seus primeiros quinze anos no poder. Em um país de cobertor curto, a política de estender direitos sem tocar em privilégios tem limites. E o limite havia chegado. E Getúlio resolveu esticar a corda, um pouco mais. E as forças da reação estavam bem despertas. E os erros do velho caudilho tornaram-se as razões para “legitimar” sua queda. E ele caiu. Mas de pé. Só para contrariar. Como disse, mais tarde, Carlos Lacerda, líder da oposição, em um rasgo de sinceridade: “estávamos com a mesa posta para o jantar. Na hora agá, Getúlio veio e puxou a toalha”.

De lá para cá, outras versões dos fatos foram construídas. Umas mais heroicas: a do defensor das riquezas nacionais, dos valores e direitos dos trabalhadores, do mártir das causas populares; e outras detratoras: o caudilho ditatorial, corrupto, populista, demagogo, incompetente que se matou para não cair e não revelar o “mar de lama” de seu governo.

A principal lição continua a mesma: a dívida social continua grande. As políticas de resgate dessa dívida continuam incomodando interesses. O confronto se dá com muitas armas e os erros dos governos populares e populistas são muitos. E eles são fatais. Bom, no caso de Getúlio, foi.

* Daniel Medeiros é Doutor em Educação Histórica pela UFPR e professor de História no Curso Positivo.