“Destas vigílias de inverno ,à volta do fogo, nos castelos, vem a idéia de imitar os modelos de tempos passados, para também adquirir – por novas proezas – fama imperecível. A honra destaca-se, portanto, como uma busca de memória. Como disse Montesquieu, é uma imortalidade da alma, que prolonga o ser do herói recordado; é tão importante ou mais que a conservação da vida, e vai rivalizar com a imortalidade religiosa da alma. Confrontam-se aqui valores de três ordens: conservar a vida é instinto plebeu , que um nobre sacrifica quando o exige sua reputação, preferindo a morte à vida indigna ou sequer pacata. Já a imortalidade religiosa não satisfaz o orgulho do nobre: embora aristocracia e clero sejam aliados na sociedade feudal, e os altos dignatários da Igreja se recrutem da nobreza, divergem os valores que estes dois estados (ou ordens) representam: a humildade cristã opõe-se à afirmação constante de si, em que consiste a honra do cavaleiro suscetível. Assim, à imortalidade cristã da alma, o nobre poderá preferir a do seu nome junto aos pósteros.”

Renato Janine Ribeiro ¹

A arte barroca e o sentido do heróico

O heroísmo é uma questão central para entendermos a arte barroca e a visão de mundo que ela expressa. Não há como tentar compreender o verdadeiro turbilhão de imagens, que sacode a Europa e a América latina num longo período que vai de meados do século XVI ao final do século XVIII, sem nos remetermos a este conceito.

Não há também como entendermos o barroco sem compreender a sua teatralidade, a sua vocação para o drama, para a artificialidade, para o cenário. O personagem central do espetáculo barroco é o herói, quer seja o mártir ou o iluminado, no viés religioso, ou o ser revestido da glória e da honra, no viés aristocrático.

Na cultura clássica, o título de “herói” referia-se ao semideus, filho de um deus e uma mortal ou de um mortal e uma deusa, que eram Heracles, Dionísio, Aquiles, os Dióscuros, Helena e Enéas. Dava-se também este título aos homens célebres que haviam se tornado semideuses , quer pelo acordo das tradições populares e poéticas , lendas locais, ou até por decretos formais.

O que funda a qualidade do herói, portanto, é o nascimento ou as ações intrépidas. Personagens retiradas do cotidiano podem se revestir da glória heróica, desde que tenham dado prova, através da sua conduta ou dos seus feitos, de estar acima do comum dos mortais.

O heróico aristocrático conserva uma relativa autonomia em relação ao heróico religioso. O herói das cortes não é exatamente o mesmo herói que freqüenta os altares das igrejas e, neste sentido, é bastante sintomático que, ao ser heroicizado, Luís XIV faça-se representar por Lê Brun, não como herói cristão, um mártir ou penitente, mas como Apolo, a quem não falta nem mesmo o carro. No entanto, a existência de uma tragédia como Polieucte de Corneille,onde o herói é, ao mesmo tempo, cristão e cavalheiresco é, aos nossos olhos, prova inequívoca  de que existem inúmeros pontos de contato entre as duas acepções de heroísmo.

Passeando por algumas obras e buscando captar o tratamento formal dado ao heroísmo, encontramos “O enterro do conde de Orgaz” de El Greco (1541-1614), pintor maneirista – portanto, predecessor do barroco – e que  é primoroso por fazer coabitar num mesmo espaço aristocracia e religiosidade: é um retrato da nobreza espanhola – com toda a sua peculiar circunspecção e sobriedade – que pranteia um herói. Este herói pertence ao universo aristocrático e cavalheiresco, mas, pertence também ao universo cristão; a corte celeste, à exemplo da terrestre, também se encontra reunida para não apenas pranteá-lo, mas também acolhe-lo no seu seio.

O quadro divide-se, quanto à concepção espacial, em dois planos bastante definidos: há a corte celeste no plano superior, presidida por Jesus Cristo (figura central e mais elevada do quadro) e a corte terrestre, no plano inferior, que promove as exéquias do finado Conde de Orgaz.

A integração entre os dois planos promove-se formalmente através dos panejamentos revoluteantes do anjo, que está colocado entre as duas porções rochosas que ocupam a parte central do quadro e que circunscrevem o plano terrestre tornando-o quase uma caverna. Há  ainda uma integração semântica, oportunizada pelos olhares, voltados para o alto, de algumas figuras: o prelado que está imediatamente à direita do grupo central (Conde de Orgaz, que jaz nos braços de dois prelados , e um infante, a esquerda, que aponta com o indicador direito e olha “para fora da tela”) e três dos nobres que estão ao fundo.

O conde de Orgaz é indubitavelmente um herói, pois possui os atributos dos quais fala Werner Weisbach², um dos grandes estudiosos da arte barroca: usa uma armadura, veste guerreira e heróica por natureza, seu semblante está absolutamente calmo, não convulsionado por nenhuma espécie de dor, e está sendo engendrado no mundo dos mortos pelas mãos de sacerdotes. Estes sacerdotes, a julgar pelas vestes suntuosas, são altos prelados.

O colorismo desempenha neste quadro um papel fundamental. Aos negros do luto da corte espanhola, que os uniformiza de alguma maneira, irão se opor os dourados dos prelados que sustém o conde jazente. O conde é destacado da massa de vestes negras ao fundo pelo brilho de sua armadura e pela gola branca, que também destaca os rostos dos enlutados de suas vestimentas e que encontra eco nos panejamentos brancos que pendem, em drapeado, sob o cadáver do conde.

Há ainda a destacar a massa quase “mural” formada pelos panejamentos dourados, dos quais estão revestidos os dois prelados que sustém o corpo inerte do conde. Estes, cumprem a função dupla de “lançar” o corpo do conde do fundo para a borda do quadro e, como que ‘aconchegá-lo’ numa aura dourada (gloriosa).

Para nos despedirmos desta obra, convém notar que, após El Greco, a  circunspecção da corte espanhola será substituída pelo fervor ardente e gesto extático , e a sobriedade pela melancolia e o gosto pelo tétrico. Em plena era barroca, o heroísmo ganhará nova conotação.

A heroína mais autênticamente católica da era barroca é a mística espanhola Santa Teresa D’ávila, que Gianlorenzo Bernini retratou em um magnífico grupo em mármore, na capela Cornaro em Roma, entre os anos de 1645 e 1648.

O êxtase de Santa Teresa representa a freira espanhola num momento de êxtase celeste, quando um anjo do Senhor está prestes a lhe trespassar o coração com uma flecha candente de ouro.

Esta Santa Teresa, arrebatada para o céu numa nuvem, em direção a caudais de luz que jorram do alto na forma de raios dourados, é uma imagem que visa suscitar sentimentos de fervorosa exultação e místico enlevo. Possui uma tal intensidade de expressão facial que apela para o que de mais profundo existe no imaginário de cada um.

A impressão geral produzida é a de movimento. O artista busca captar os gestos fúlgidos e as poses efêmeras, embora a carne e os tecidos sejam eminentemente materiais. O próprio tratamento que Bernini dá às roupagens era, na época, revolucionário: em vez de as deixar cair em nobres e majestosas pregas, à maneira clássica e consagrada, fá-las revolutear de forma que aumenta a excitação e o movimento. Nada é substancial e tangível, tudo é movimento e eterna mutação.

O artista busca subtrair à pedra sua tangibilidade imediata, através da eliminação da linha absoluta, não sendo mais possível o “efeito silhueta”, tudo é feito para evitar que a forma se destaque pelo seu contorno.

A composição carrega em si a instabilidade que é do movimento; o fúlgido é aí representado da forma mais eficiente: as figuras são construídas não para que se delineiem suavemente sobre um fundo, mas para que tenhamos a impressão que se constituem em grandes massas luminosas, flutuando livremente pelo espaço . no entanto, Santa Teresa está sujeita á lei da gravidade, sendo este fato comprovado pela mão esquerda, que pende suavemente e pelo pé esquerdo, que parece lançar-se para fora do conjunto, sobressaindo-se da nuvem que a sustém.

Santa Teresa é encarada, por vezes, como uma espécie de ninfômana, que recorre aos seus êxtases e transes, tão característicos, para a pura satisfação de um erotismo que é mal dissimulado sob a capa das “bodas místicas” com Jesus. No entanto, quer se trate de uma iluminada ou de uma cortesã, o certo é que ela própria estava convencida da sua inocência e da sinceridade de suas experiências extáticas. Mais do que isto, ainda que tivesse sido uma embusteira, o certo é que sua mensagem é eficaz, arrastou as multidões, ajudou a fixar a ortodoxia católica e serviu de tema a esta obra, certamente o mais belo e paradigmático expoente da escultura barroca.

Peter Paul Rubens (1577-1640) pintou “O torneio” entre 1635 e 1640. Neste quadro, o pictórico e os fatores estéticos dominam o próprio assunto. Há uma viva impressão de movimento, uma rapidez instantânea, tudo isso imerso numa atmosfera teatral, dramatizada.

O torneio é um tema aristocrático e cortesão por excelência, sendo que respira-se um ar ao mesmo tempo bucólico e refinado, onde o desenvolvimento mesmo do torneio lembra mais uma dança, um bailado da corte, do que uma batalha.

Seres elegantes que executam a sua justa com a precisão de um bailado e que estão buscando conquistar, através do torneio, a honra e a glória, o heroísmo. Qual alegoria mais refulgente do herói ocidental do que o cavaleiro, metido na sua armadura reluzente? Qual forma poderia ser mais apropriada para granjear o status do herói do que tornar-se um imbatível campeão dos torneios?

Ainda que haja uma nítida evocação medieval  (o castelo ao fundo, os camponeses que aram a terra e que conferem ao quadro um ar bucólico e, acima de tudo, o tema do torneio), “o quadro é repleto de uma vitalidade barroca, no estilo e de uma atmosfera misteriosa e romântica”.³

Ao invés de buscar o herói na antiguidade, na figura do guerreiro romano, da “virtude antiga”, Rubens busca um herói mais genuinamente aristocrático, cortês e cavalheiresco. Não recua à mitologia, vai à Idade Média, o próprio seio da aristocracia, para aí extrair os seus heróis.

As características mais diretamente barrocas deste quadro são a perspectiva duvidosa (onde predominam as diagonais e as representações em escorço), o tratamento da luz e da sombra onde, ao engendrar-se um universo de nuances sutis de luz, criam-se os “enganos aos nossos olhos”.

Foi Rubens também quem pintou entre 1622 e 1625 “A chegada de Maria de Médicis a Marselha” , onde encontramos a síntese perfeita entre o heroísmo religioso e aristocrático.

Trata-se de um universo teatral, um mundo cenográfico, centrado na ilusão dos sentidos. Poderíamos mesmo ir mais longe e dizer que se trata de um universo “operístico”, de grande ênfase no teor heróico – quanto ao tratamento – e no caráter aristocrático das personagens, em sua maioria, vestidas suntuosamente e de porte altivo.

Rubens dividiu o quadro claramente em duas zonas horizontais, marcadas pela linha diagonal da prancha ligando o convés do navio com a costa invisível. Maria de Médicis, vestida como uma heroína de ópera, está colocada sobre esta prancha, como estaria sobre um palco de teatro. Ladeada por algumas senhoras de seu séqüito, está voltada ao mesmo tempo para a genérica audiência e para o soldado, vestido “à antiga”, que se inclina, num gesto enfático de cumprimento, à sua frente.

Este soldado possui todos os atributos do herói antigo: o capacete, o gesto contemplativo, o olhar para o alto. Este olhar, num quadro religioso, estaria contemplando alguma aparição celestial.

A parte brilhante e ornamentada do navio à esquerda, de um movimento sólido e vertical, assemelha-se muito a um balcão suntuoso de teatro. A figura nele inserida, contempla o desembarque da rainha exatamente como contemplaria um espetáculo teatral que se desenrolasse à sua frente, no palco.

Existe um grupo mitológico de divindades, robustas e nuas, emprestado da antiguidade, emergindo das ondas vítreas de um mar impossível. Existem também glórias aladas, que anunciam a chegada da rainha como anunciariam a aparição de uma grande santa da Igreja.

Este tipo de representação serve tão bem à corte quanto serviria à Igreja: bastaria que Maria de Médicis estivesse, de alguma forma, envolta em nuvens, sendo a contemplação do soldado mais acentuada, e estaríamos diante de mais uma tela de aparição da Virgem, como por exemplo A instituição do rosário (Tièpolo, 1739).

Tudo no quadro de Rubens faz lembrar o “pathos” heróico e histórico, apelando também para a sensualização dos recursos figurativos, que visa impressionar a sensibilidade de modo concreto, através de elementos naturalistas e ilusionistas.

Comparativamente, este quadro tem muito mais pontos em comum com as representações religiosas de heroísmo do que o anterior. O torneio foi substituído pela aparição gloriosa de uma rainha, o passado exclusivamente aristocrático e humano pelas referências à mitologia e à antiguidade. Mais indicativo, há o surgimento do nu.

O nu é buscado independentemente do assunto , e utilizado como valor formal. A própria presença deste elemento , muitas vezes, se basta para conferir ao quadro o “pathos” heróico. Herança grega, de corpos nus, hercúleos e bem torneados, retrabalhada pelo renascimento – que, partindo da reflexão racional, bem como da imitação, idealizou os modelos da antiguidade – o nu é reutilizado, pela arte barroca, como valor formal e índice heróico.

Cabe ainda notar, como observação final, que o velho que emerge das águas, em muito da “representação realista de anciãos dominados por uma emoção religiosa”, da qual fala Weisbach². Sua atitude é quase extática, algo patética (braços que se erguem, em gesticulação operística), ao contemplar Maria de Médicis. Contempla a rainha da França como São Jerônimo contemplaria a Virgem em Glória.

 Notas:

1.RIBEIRO, Renato Janine – A etiqueta no Antigo Regime: do         sangue à doce vida. Coleção “tudo é história”, vol. 69, Editora Brasiliense. São Paulo-SP, 1985, citação á página 55.

2.WEISBACH, Werner – El barroco, arte de la contrarreforma. Espasa-Calpe, Madri, 1948.

3.citação de KITSON, Michael – O barroco. Col. “o mundo da arte”, vol. 9, Encyclopaedia Britannica do Brasil, SP-RJ, s/d.