ZÉ – 1ª PARTE

GILBERTO NOGUEIRA DE OLIVEIRA

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ENFIM, UM SUPER-HERÓI TOTALMENTE NACIONAL

                                                                  PRIMEIRA PARTE

     Os homens seguiam pelo caminho estreito e lamacento, montados em seus cavalos, em direção à Vila Rock. Essa vila era um lugarejo em que o Coronel Jonh San mandava e cometia desmandos, pois era o maior latifundiário daquela região e não admitia que se falassem numa tal de reforma agrária. O Americano, como era conhecido o Coronel San, mandara executar, no centro da Vila, dois pobres coitados só pelo fato das vítimas serem canhotas. Só usavam o facão com a mão esquerda e o Coronel dizia que eles eram comunistas.

      De repente, alguém gritou:

      -Coronel! Eu soube que Zé está vindo para cá com seus homens! Eles foram vistos a três quilômetros daqui!

      Zé era um homem pacato e tinha vinte e cinco anos de idade. Ficou revoltado depois que o Americano invadiu seu pedaço de terra no processo de expansão de seu latifúndio. A partir daí, Zé formou um grupo e saiu pela região invadindo as terras dos ricos e poderosos e assentando camponeses pobres em suas antigas propriedades. Zé era um negro descendente de escravos e não tinha medo de nada mas queria conservar sua vida para lutar pelos camponeses pobres. Também ele havia perdido tudo.

      -E aí Coronel San, o que quer que eu faça?- perguntou o rapaz delator na esperança de receber um sorriso ou um elogio do Coronel. Mas se enganou: o Americano virou-se para ele e disse:

      -Pegue sua bicicleta e vá até o Comando da Polícia na cidade e diga ao comandante que Zé invadiu a Vila Rock.

      O Americano deu as costas e saiu da venda de Seu Nenê sem ao menos agradecer ao rapaz.

      -Coronel! - O Americano voltou-se irritado- E se eu encontrar Zé no meio do caminho?

      -Você não é homem não, rapaz? Se encontrar o Zé, você se esconde atrás de uma árvore. Quando acabar de se cagar todo, você segue sua viagem; mas chegue lá,   viu   garoto?   Se   vire!-   disse   o Americano ríspido.

                 -Sim... sim, Coronel. Muito obrigado pela confiança.  O Americano entrou em sua camionete junto com dois seguranças da  Policia  Militar  e mais seis na  carroceria  do  veículo,  todos  eles fortemente armados e pagos pelo governo para a segurança de sua família e seu latifúndio.

      Uma hora depois, Zé e seu grupo invadia a Vila Rock que ficara sem resistência alguma. Saltou do cavalo, bateu os pés no chão com força para que a lama se soltasse da bota. Em seguida entrou na venda de Seu Nenê e disse:

      -Solta uma branquinha aí para meus camaradas!

      -Eu não posso servir nada para vocês. É ordem do Americano- disse Seu Nenê com voz trêmula.

      -Mas eu vou pagar! Isso aqui não é uma venda?- insistiu Zé.

      -É sim, mas...

      -Meus camaradas estão com sede e com fome e se o senhor não vender o que a gente quer comprar, a gente pega tudo de graça mesmo assim- disse Zé decidido.

      Era uma venda típica da zona rural. Vendia bananas, fumo de corda, farinha, carne seca e mais alguns cereais. Tudo a preços exorbitantes.

      Passaram-se duas horas. Zé e seu grupo comia bolachas e tomavam cachaça. De repente, quatro Jeeps da Policia Militar invadia a Vila Rock com uns vinte soldados. Estavam bem armados e chegaram atirando para dentro da venda de Seu Nenê. O dono da venda foi o primeiro a ser atingido com uma bala de fuzil, na cabeça, espalhando seu cérebro pelas paredes da venda. Zé foi atingido por uma bala de revolver, de raspão, na perna e saiu correndo pela porta do fundo. Conseguiu se esconder atrás de alguns cestos que estavam no quintal da venda. De repente ouvia-se um grande estrondo. Foi uma granada que a policia havia jogado dentro da venda, abrindo suas paredes e matando todo mundo que estava lá dentro.

      Apenas Zé e Jão Valente escaparam com vida. O comandante da policia deu uma olhada nos destroços da venda, cuspiu com desprezo sobre as cinzas e deu ordem para a retirada de seus homens.

      Logo anoitecia e Zé saía de seu esconderijo em direção à mata.

                                                                                                           

       Andava pelo caminho só e triste, pensando nos companheiros quando de repente ouviu um barulho na margem esquerda da trilha.

      -Quem está aí?- perguntou, apontando o fuzil.

      -Sou eu Zé! Jão Valente! Como você conseguiu escapar?

      -Me escondi atrás de uns cestos- disse Zé- Os meganhas pegaram a gente desprevenidos, não foi? Eu nunca mais largo minha arma!

      -Eu ia fugir no cavalo, mas quando alcancei a boca do caminho eles acertaram no meu cavalo. Então fugi a pé, mesmo.

      -Para onde vamos?- perguntou Zé

      -Vamos para o sítio de Seu Zeca. Ele é gente boa. Não vai entregar a gente, não- disse Jão Valente.

      - O bom é que eles estão pensando que todos nós estamos mortos- disse Zé.

                                                        *

      Eram cinco horas da manhã e a madrugada estava fresca e úmida. Dona Zazá abriu a porta do fundo da casa para dar milho às galinhas. De repente ouviu um barulho na cobertura do engenho que ficava perto da casa:

      -Quem está aí?

      Como não houve resposta, Dona Zazá foi chamar seu marido:

      -Zeca, acorda! Ouvi um barulho estranho no engenho.

      -E aquele vira-lata nem latiu!- respondeu Seu Zeca levantando-se de um pulo.

      Seu Zeca pegou a espingarda que ficava pendurada na parede por um prego e saiu em direção à porta do fundo, gritando:

      -Tem alguém aí? Vou começar a atirar!

      -Sou eu, Seu Zeca.- disse Zé saindo de trás da moenda.

      -Deus seja louvado! É você mesmo ou é assombração! Eu soube que todo mundo tinha morrido- disse Dona Zazá, espantada.

      -Só sobramos nós dois- disse Jão Valente saindo de trás do fogão.

      -Venham! Entrem! Alguém pode ver vocês aí fora- disse Seu Zeca clareando o rosto dos homens com um fifó à querosene.

      Todos entraram na casa e Dona Zazá serviu o café da manhã para os dois homens.

      -Não sei como agradecer a vocês- disse Zé-  Ninguém deve   saber que estamos vivos, certo?

      -Não se preocupe. Eu vou cortar seu cabelo e sua barba e ninguém vai lhe reconhecer- disse Dona Zazá.

      -Eu vou ficar escondido aqui por dois dias até as coisas esfriarem. Depois nós fugiremos para a cidade- disse Zé.  Tudo bem. Eu vou pegar seus documentos que escondi embaixo do colchão. Vou pegar algum dinheiro que tenho da venda do melaço. Vocês vão precisar- disse Dona Zazá.

      Dona Zazá e Seu Zeca era um casal com seus sessenta anos de idade, que moravam em um pequeno sitio, comprado com dinheiro do grupo de Zé e que servia de esconderijo para alguém do grupo em caso de grande necessidade.

      -Sua perna está sangrando, Zé- disse Seu Zeca, preocupado.

      -Foi só uma bala de raspão. Já estanquei a ferida com seiva de bananeira- respondeu Zé, sorrindo.

      -Quer que eu faça um curativo?-perguntou Dona Zazá

      -Não carece não. Eu vou tomar um banho e vou dormir um pouco- disse Zé.

      -Antes vamos cortar seu cabelo e sua barba- disse Seu Zeca.

                                                      *

      Zé e Jão Valente foram para a cidade no dia seguinte, a fim de encontrar apoio para sua causa. Ia procurar Olavo, um militante do Partido Comunista naquela cidade.

      Os dois chegaram à cidade e caminhavam pela avenida com calçamento de pedras retangulares até chegarem ao hotel da praça. Entraram no hotel ainda desconfiados e perguntaram ao recepcionista, que também era o dono do hotel:

      -Quanto é a diária?- perguntou Jão Valente, que agora se chamava João dos Santos.

      -Quinze cruzeiros para os dois- respondeu o dono do hotel.

      Jão Valente olhou para um jornal sobre o balcão. Lia-se:

      "VALENTE CORONEL DO EXERCITO NACIONAL, ACABA COM O BANDO DO CRIMINOSO ZÉ"

      Na reportagem falava que todo o bando de assassinos do dito  RR, Recôncavo Revolucionário, havia sido exterminado e que o seu  líder, Zé, havia morrido com um estilhaço de granada na cabeça.

      Zé recebeu a chave do quarto e deu as costas. Então comentou com Jão Valente:

      -Quando eu voltar à ativa, esse coronelzinho de merda vai ficar desmoralizado.

                                                       *

                                                                                                            

      Zé e Jão Valente saíram para andar um pouco. Passaram numa banca de revista e compraram uma para ler. Zé dobrou a revista e colocou-a embaixo do braço. Voltaram para o hotel, pediram sua chave e subiram as escadas de madeira. Entraram no quarto e Zé recostou-se no travesseiro e começou a foliar a revista. Começou a ler uma reportagem sobre o Festival Nacional da Canção e, logo ao virar a página seguinte, começou a ler sobre as guerrilhas no país. Leu toda a reportagem com grande interesse. Ao terminar, falou para Jão:

      -Vou seguir esse exemplo.

      Voltou ao inicio da revista, e logo deixou-a de lado. Pegou o jornal da capital e começou a procurar o nome dos jornalistas e o número do telefone do jornal. Recortou aquela parte e colocou no bolso da calça. Foi tomar um banho para dormir.

      Acordou no dia seguinte e não viu Jão Valente na outra cama. Assustou-se e levantou de um pulo. Olhou pela janela e viu Jão Valente conversando com uma mulher. Voltou para dentro e se vestiu para sair. Foi ao centro telefônico que ficava na praça principal, na parte térrea da prefeitura local. Entregou o número do telefone a uma senhora de cabelos brancos para que fosse feita a ligação:

      -Aguarde um pouco que eu vou tentar- disse a mulher.

      -Tudo bem- respondeu Zé.

      Após quinze minutos a telefonista conseguiu a ligação e mandou que ele fosse para a cabine.

      -Alô? Eu queria falar com o jornalista mais corajoso que tiver aí?

      -Eu sou um jornalista corajoso. Quem está falando?-disse a voz.

      -Eu não posso me identificar mas se você quiser viajar até minha cidade, vai fazer uma reportagem bomba.

      -E seria sobre o que? E se for trote?- perguntou a voz

      -Não é trote e vai ser bom pra sua carreira- disse Zé.

                                                                                                           

      -Eu só vou se você der uma pista- disse a voz.

      -É sobre a chacina da Vila Rock- disse Zé.

      -Como lhe encontro? Você lutou lá?- perguntou interessado.

      -Venha e se hospede no hotel em frente ao rio. Eu lhe encontro. Venha sozinho e nada de fotos- disse Zé, desligando.

                                                                              *

       No dia seguinte ao telefonema, o jornalista chegava à cidade. Era um homem de uns trinta anos, alto e um pouco barrigudo e, como era de se esperar, barbudo. Entrou no hotel e dirigiu-se à recepção. Pediu um quarto enquanto abriu o jornal que estava sobre o balcão. O jornal elogiava o ditador militar de plantão. Mais abaixo tinha outra reportagem que taxava Zé de "O perigoso Zé Comunista e seu bando de assassinos que imitava o bando de Lampião e Corisco" e um pouco mais abaixo estava a foto do herói nacional (fazendo pouse) que o abateu para a tranquilidade da família e dos bons costumes. O jornalista, com seu faro aguçado, pensou:

      -"É isso! Ele pode estar vivo e a reportagem é minha!"

      Subiu as escadas de madeira até o quarto 201. Colocou sua pasta de couro sobre a cama e foi tomar um banho.

                                                      *

      Às dezoito horas o jornalista desceu para jantar. Ocupou uma mesa e pediu um cardápio. Meia hora depois, veio sua janta. Começou a cortar um bife, quando apareceram dois homens na escada que dava acesso aos quartos. Um era negro, forte e de estatura média e o outro, um mulato, era mais magro, mas forte. Entraram no salão do restaurante. Ao fundo, numa mesa, sozinho estava o jornalista. Os olhares se cruzaram e Zé e Jão Valente ocuparam a mesa junto à porta da rua. Faziam isso por segurança.

      Depois de jantarem, levantaram-se e caminharam em direção à escada. Ao passarem pela mesa do jornalista, Zé falou para Jão Valente:

      -É o cento e um, não é?

      -Sim.- respondeu Jão Valente olhando para o jornalista.

      O jornalista entendeu a mensagem e continuou a comer seu bife. Seu coração disparou. Começou a pensar:

                                                                                                           

      -"Se Zé era barbudo e tinha cabelos grandes e deve estar morto, quem são esses caras? Mesmo assim eu vou lá conversar com eles."

      O jornalista levantou-se, limpou a boca com um guardanapo de pano e pegou um palito para os dentes. Pegou sua chave com o dono do hotel e saiu lentamente em direção à escada. Ao passar em frente ao quarto cento e um a porta se abriu um pouco e ele ouviu uma voz quase sussurrada:

      -À meia noite, está bem?

      -Tudo bem. Pode ser- respondeu o jornalista.

      O jornalista entrou em seu quarto, um andar acima e sentou-se na cama e tirando os sapatos. Em seguida pegou um velho despertador e ajustou às vinte e três e quarenta e cinco horas. Deitou-se com os pés fora da cama e cochilou um pouco.

                                                      *

      O jornalista assustou-se com o barulho do despertador e levantou de um pulo. Calçou os sapatos e foi até o banheiro lavar o rosto. Em seguida pegou sua pasta e desceu as escadas sem fazer barulho até o primeiro andar. A porta se abriu e ele entrou no meio da escuridão. Jão Valente acendeu a luz num interruptor de louça que ficava na parede perto da porta. Fechou a porta e perguntou ao jornalista:

      -Viajou sozinho? Pelo menos você saltou do ônibus sozinho.

      -Claro! Porque vocês não querem fotos?- perguntou

      -Eu não quero que ninguém conheça minha nova identidade. Eu sou Zé e continuo vivo.

      -Você?!- perguntou o jornalista, surpreso.

      -Sim. Eu.- disse Zé com um sorriso bondoso nos lábios.

      -Como você conseguiu escapar?- perguntou o jornalista com um caderno de notas e uma caneta tinteiro na mão.

      -Minha história é muito longa...- começou Zé.

      -Para começarmos, quem é Zé?- perguntou o jornalista.

      -Eu servi o exercito e cheguei à patente de Sargento- começou sua narrativa- Quando completei dez anos de Exercito, um colega branco me disse: Zé, o que você pretende no Exercito? Eu respondi que pretendia chegar a General, ao que ele respondeu: Qual é Zé, você conhece algum General negro? Aquilo foi a resposta que eu precisava para deixar o Exército e me mandar para o interior do estado para investir o dinheiro que juntei, no sitio que meu pai havia deixado para mim. Lá um dia, remexendo nos livros que meu pai deixara na estante eu descobri alguns livros sobre a revolução russa e a revolução cubana. Então comecei a ler "O Estado e a Revolução" de Lênin, escrito em espanhol. Quando abri o livro havia uma dedicatória que dizia: "Ao camarada Ezequiel, com carinho, por ter-me abrigado como  hóspede  aqueles dois  dias. Havana, 29  dezembro de  1959. F. Gonzalez." Então eu fiquei a imaginar quem foi meu pai. Lembrei que quando eu era criança, minha mãe se queixou de seu desaparecimento por um mês. Só sei que ele foi assassinado no sítio em junho de 1964. Não esqueci aquilo. Vendi o sítio anos depois a um vizinho e vim para essa região.

      -Veio sozinho?

      -Não. Trouxe minha mãe- respondeu Zé

      -Chegando aqui, comprei outra terra. Logo depois minha mãe morreu acometida por tétano. Fiquei na fazenda por mais um ano, quando ela foi invadida pelo Americano e anexada ao seu latifúndio. Fiquei muito revoltado com isso, e um dia eu vou matá-lo. Só deu tempo para pegar alguns livros e uma roupa para fugir.  -parou um pouco e levantou-se para beber água. Voltou e sentou-se na beira da cama e olhou para o jornalista. Depois de um curto silencio, o jornalista perguntou:

      -E aquele livro, você ainda tem?

      -Sim. Tudo que eu tenho está em lugar seguro.

      -E você aí, quem é?- perguntou a Jão Valente.

      -Só escapamos nós dois. Eu sou conhecido como Jão Valente e acompanho o camarada Zé desde o inicio.

      -E como foi o inicio?- perguntou o jornalista com interesse- como eu posso ter certeza de que vocês são realmente Zé e Jão Valente?

      -Quando fugimos do ataque dos milicos, tive que cortar o cabelo e a barba, senão seríamos reconhecidos- disse Zé- no inicio viajamos juntos para Cuba e durante seis meses fizemos treinamento de táticas de guerrilha. Quando voltamos, reunimos quinze homens. Sete era  do Exercito e os outros eram civis ou estudantes que  trancaram    as suas  matrículas para se engajarem em nosso grupo.

      -Como se chama seu grupo?- perguntou o jornalista

      -Recôncavo Revolucionário- disse Zé

      -Vocês vão reorganizar a luta armada?- perguntou ele

      -Claro! Não podemos ficar parados!- disse Jão Valente

      -Eu queria lhe fazer um pedido- disse Zé

      -Faça. Eu cumprirei- respondeu o jornalista

      -Eu gostaria que você mantivesse essa entrevista em segredo por quinze dias a contar de amanhã porque  precisamos fazer uma ação de grande importância para o nosso movimento. No dia marcado você lança a entrevista em seu jornal e viaja para cá- pediu Zé.

      -Você pode ficar tranquilo- garantiu o jornalista.

      Os três homens conversaram até as três da manhã e depois despediram-se com um aperto de mãos. O pensamento de Zé era formar outro grupo e invadir o latifúndio do Americano e distribuir as terras para os agricultores da região. Seria um ataque surpresa, pois o Coronel San tinha certeza de que todo o grupo havia sucumbido ao ataque da policia militar.

                                                       *

      Jão Valente acordara. O despertador marcava oito horas e trinta minutos. Levantou-se e foi ao banheiro. Logo em seguida, Zé acordava. Meia hora depois, eles desciam as escadas de madeira a fim de tomarem o café da manhã. Entregou a chave ao homem da recepção e Jão Valente notou que o jornalista ainda não acordara, pois sua chave não estava no quadro.

      Depois do café da manhã saíram para andar um pouco no cais do porto. Observava com interesse o movimento de chegada e saída dos saveiros. Chegavam carregados com mercadorias industrializadas para o comercio local e saiam com farinha de mandioca e banana da terra para a capital do estado.

      O sol estava forte e fazia calor. Entraram numa loja e compraram dois chapéus que logo passaram a usar. De repente viram o trem aparecer lá no fim da avenida, com seu apito estridente. Minutos depois o trem passava por eles soltando fumaça. Voltaram ao hotel e, na entrada encontraram o jornalista já de saída para a capital.

                                                       

      -Já estou viajando- disse ele- Vocês vão ver só o escândalo que vou aprontar com essa matéria. Eu não sei é se eles vão me deixar vivo depois dessa.

      -Boa viagem e tenha cuidado- disse Zé.

      A saudade das matas e dos morros do Recôncavo apertavam o coração de Zé. Decidiram voltar ao campo no dia seguinte. Acordaram às nove horas e pagaram a conta do hotel. Saíram para passear um pouco. Quando deu meio dia, entraram num restaurante muito simples para almoçar. Saíram do restaurante uma hora depois e ficaram perambulando pela feira até às quinze horas.

      -Daqui a pouco vamos sair da cidade- disse Zé

      -Está bom. Deixa o sol esfriar um pouco.

                                                        *

      Quando o sol caía, eles caminhavam em direção à saída da cidade. Estavam voltando para o campo.

      Quando escureceu eles passavam por uma ponte muito antiga. Logo passaram por uma fazenda que tinha um sobrado do século dezenove, todo iluminado internamente com candeeiros a querosene. Seguiram adiante, agora saindo da estrada principal, de pedras irregulares e ganhando um caminho que seguia até um antigo engenho de cana, mas que ainda funcionava, pois logo ao lado havia um grande monte de bagaço de cana e outro de lenha. Alguns cachorros latiam com suas passagens enquanto guardavam a porta de uma casa de taipa. Era noite de lua e eles resolveram continuar andando pela noite a dentro. Seguiam em direção ao sítio de Seu Zeca. Pouco mais tarde chegaram lá e bateram na porta do fundo da casa.

      -Quem é?- perguntou Seu Zeca.

      -É o mesmo que saiu daqui- disse Zé sorrindo.

      -É o Zé?- ouviram a voz de Dona Zazá atrás da porta.

      -Sim. É ele mesmo- disse Zé.

      A porta foi aberta e os dois homens entraram. Largaram a sacola de roupas num canto da sala e Zé deu um beijo na cabeça de Dona Zazá.

      -Como vai, minha velha?

      -Aqui tudo em paz. Pensam que vocês morreram queimados.

                                                      

      -Com a gente aqui, vocês correm perigo, então nós vamos fazer uma casinha pequena lá em cima, na mata para a gente se esconder. Fica melhor.- disse Zé.

      Zé pegou os dois fuzis embaixo da cama de Seu Zeca. Depois pegou um saco de balas e colocou dentro da sacola.

      -Vamos descansar um pouco e, antes do amanhecer a gente se manda para a mata. Eu vou levar um facão e uma enxada.- disse Jão.

      -Amanhã a gente manda um recado para Jorjão arranjar mais armas e munições- disse Zé.

      -... e gente também!- disse Jão Valente

      -Isso tem que se pensar com mais cuidado- disse Seu Zeca.

                                                                                                           

      Seu Zeca e Dona Zazá voltaram para a cama e os dois homens deitaram-se na pequena sala, no chão de cimento vermelho. Fazia calor. Zé logo adormeceu e Jão valente foi pitar um fumo de corda.

      Pouco depois Zé acordava com o canto do galo que vinha da porta da frente. Olhou para o telhado e viu o clarão da lua que passava por uma telha de vidro e iluminava parcialmente a sala. Olhou para o relógio. Eram quatro horas e trinta minutos e tinham que correr. Sacudiu o braço de Jão Valente e, este acordou assustado.

      -O que foi?

      -Está na hora de correr. Vamos subir o morro- disse Zé

      Dona Zazá acordou com a conversa dos dois e disse:

      -Vou esquentar um café para vocês dois.

      -Carece não.- disse Jão Valente abrindo a porta dos fundos e olhando o caminho iluminado pela lua. Pegou a enxada e o facão e encostou na parede da casa, junto aos fuzis. Voltou para dentro e tomou mais um cafezinho. Então Zé disse a Dona Zazá:

      -Eu quero que a senhora dê um recado a Jorjão. Diga a ele para vir aqui hoje à noite. Não diga que eu estou aqui não. Diga que Seu Zeca quer falar com ele sobre uma empreitada.

      -Está certo. Deus acompanhe vocês- disse Dona Zazá.

      Os homens subiam o morro por um caminho difícil e margeado por uma plantação de cana-de-açúcar. Pouco depois venciam o canavial e sentaram-se perto da mata para descansar um pouco e esperar o amanhecer.

                                                     

      Quando amanheceu eles se levantaram e ficaram a observar a região, do alto do morro. Dava até para ver a Vila Rock. Logo entraram na mata e começaram a subir mais ainda. Escolheram um lugar para ficar. Se esconderiam num jirau, no alto de uma jaqueira. Lá ficariam camuflados pelas folhagens.