O artigo sobre “As várias faces da pesquisa com línguas indígenas brasileiras”, de Yonne Leite é um texto produzido a partir de um discurso proferido por ela na conferência do XIX Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, na cidade de Lisboa – Portugal, em 2003. Leite, em sua palestra discute a questão da história do reconhecimento e da autonomia, no Brasil, do campo de estudo das línguas indígenas. O trabalho está dividido em cinco tópicos, a saber: Introdução; A primeira face - a relação entre a linguística indígena e a antropologia; A responsabilidade política e o retorno; A pesquisa linguística; O que se espera de uma descrição de línguas indígenas brasileiras e qual deve ser o resultado desse trabalho de campo.
Sobre a autora
A Dra. Yonne Leite, com 50 anos dedicados à pesquisa de línguas indígenas no Brasil, sobretudo, da língua Tapirapé foi professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional e no Departamento de Línguas Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, onde formou gerações de linguistas brasileiros. Em sua trajetória acadêmica graduou-se em letras neolatinas pela UFRJ, em 1957 e doutorou-se em linguística pela University of Texas at Austin (1974). Foi professora adjunta da UFRJ e bolsista em produtividade em pesquisa do CNPq. Leite recebeu a medalha Oskar Nobling: honra ao mérito linguístico e filológico (1976) e a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico (2002). Foi presidente da Associação Brasileira de Linguística (1979 -1981) e da Associação Brasileira de Antropologia em (1998 - 2000).
A professora Yonne Leite foi considerada uma das mais renomada e conhecedora de línguas indígenas da família Tupi-Guarani no Brasil. Ela doou, em 2010 seu acervo audiovisual sobre a língua do povo Tapirapé (MT), com mais de 40 anos de pesquisa para o Museu do Índio FUNAI/UNESCO. Ao longo de mais de 40 anos de carreira, Yonne Leite escreveu cinco livros, os mais populares são: Como falam os brasileiros, com Dinah Callou (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 3a ed., 2006) e Origem das línguas (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2a ed., 2004). Também produziu dezenas de capítulos de livros, artigos, trabalhos em anais, apresentação em encontros, cursos e palestras.
Sobre o artigo
Primeiro tópico – Em a primeira face: a relação entre a linguística indígena e a antropologia Leite discute, a princípio, a tardia fundação da universidade no Brasil, que somente ocorreu, quase que na metade do século XX, assunto este, que segundo a autora foi até motivo de tese de doutorado pela universidade de São Paulo – USP. Assim, Leite enfatiza que, se a demora na criação da universidade já foi um atraso para o desenvolvimento das ciências no Brasil, quanto mais os estudos em línguas indígenas que não haviam pesquisadores interessados em estudar esse tema e que, de fato só foi ocorrer nos anos 80. Neste sentido, a autora faz uma reflexão e relembra os trabalhos no início de sua carreira nos estudos com línguas indígenas e salienta que o único caminho que havia nesse período para um linguista pesquisar era participando de encontros da
Associação Brasileira de Antropologia. Ou seja, a única maneira era via a área de antropologia. Daí essa estreita relação entre linguística e antropologia.
Desta forma, a autora relata que deu início a seus estudos com línguas indígenas no Departamento de Antropologia do Museu Nacional, em 1959, com Joaquim Mattoso Câmara Jr, que criou o setor de linguística especializado na pesquisa das línguas indígenas e dos falares regionais do Brasil, junto a esse departamento. Daí, na visão de Leite essa relação de convivência diariamente com os antropólogos do museu foi responsável por uma das faces que o trabalho com línguas indígenas no Brasil assumiu de fato, sua própria identidade de “linguística”.
Ainda outro ponto importante destacado por Leite, é sobre o trabalho de campo, que representa uma etapa marcante na vida de um pesquisador, pela experiência adquirida, que o singulariza como linguista. Experiência essa, primeiramente vivenciada por Franz Boas (1911) em suas pesquisas de “observação participante” com indígenas da América. A autora chega a comparar dois tipos de pesquisadores: o que não vai a campo e fica somente remexendo arquivos em bibliotecas e museus e o linguista que trabalha com línguas indígenas que vai a campo e presencia a realidade, convivendo com seus informantes, o qual a autora denomina de “humanista”. Para Leite é essa experiência social com o outro que faz a diferença, pois, segundo Leite (2003, p. 4) não há receitas prontas, nem para recolher os dados e nem para o direcionamento do comportamento social dos indivíduos. E é nesse ponto que reside o encanto que se traduz nas seguintes palavras da autora: “Quem está no campo está fazendo a cabeça funcionar. Não tem essa esquematização que já vem pronta. Depois tem a vivência que é um barato”. Para ela não há nada melhor do que essa vivência e convivência com outra cultura diferente da do pesquisador.
Leite, na parte final desse tópico dirige sua atenção para suas experiências na aldeia dos Tapirapé, com quem ela conviveu boa parte de sua vida pesquisando a língua desse povo. Ela relata que, mesmo sendo doutora em linguística isso não representava muita coisa naquela comunidade, pois, de todo o conhecimento que ela precisa para sobreviver naquela aldeia não possuía nenhum: nem pescar, nem caçar, nem plantar e nem sabia cultivar nada. Mas, isso não foi preciso, porque, a receptividade do povo Tapirapé foi tamanha que ela se sentiu em sua própria casa.
Segundo tópico – Em a responsabilidade política e o retorno, a autora mostra a desigualdade social e econômica que existe no Brasil e, essa visão a autora passa ter no momento em que ela se depara com a realidade nas aldeias indígenas. Leite percebe que há uma distância entre esses dois mundos: o do branco e o do índio, que se perpetuou na sociedade brasileira. Uma das soluções encontrada por ela foi a ideia de assessoria a projetos de educação bilíngue. Para a autora sua experiência na área de educação contribui com o ensino aos indígenas, que necessitam desse conhecimento para defender seus direitos constitucionais. Assim, para Leite a pesquisa com línguas indígenas tem essa outra face, que ela chamou de “retorno à população, a participação política, o dever de procurar assegurar àqueles que são o objeto de estudo os direitos básicos da cidadania, como terra, saúde e educação” (2003, p. 6). Entretanto, para a autora a participação no processo de alfabetização bilíngue de educação bi-cultural, a qual é assegurada na Constituição Federal de 1988, é o meio pelo qual deve ser partilhado por todos.
Terceiro tópico – Em a pesquisa linguística, a autora afirma que não pode se falar de línguas e povos indígenas brasileiros sem que inclua o uso de palavras como “perdas, danos, extinção, aliadas à diversidade, multiplicidade, patrimônio e importância científica e cultural”. Para ela essa é uma responsabilidade da comunidade de linguistas.
Neste aspecto, a autora cita alguns pesquisadores que contribuíram e ainda contribuem com as pesquisas das línguas indígenas, dentre eles, Aryon Rodrigues, o qual desenvolveu o trabalho “Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas”. (Delta, São Paulo, 1993) estudos dos grupos extintos desde as 76 “nações tapuyas”, os quais englobariam 68 línguas. O levantamento feito por Fernão de Cardim em 1584 e constante de sua obra “Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias” citado por Rodrigues, que calculou que, no início da colonização eram faladas 1175 línguas, o que posteriormente apenas 15% teriam sobrevivido. Outro estudo citado por Leite (2003, p. 7), é o do pesquisador e antropólogo Darcy Ribeiro (1957), que estimou em 1 000 000 a população indígena na época da chegada da frota de Cabral, que teria baixado para um máximo de 100 000 no século atual. Mas, nas estimativas de Leite a população indígena é de 350 000 pessoas e 206 etnias. Ela também afirma que “são cerca de 180 línguas, das quais a grande maioria está localizada na região amazônica, para uma população que se distribui em 41
famílias, dois troncos, uma dezena de línguas isoladas” (2003, p.7), baseada na “teoria do determinismo ecológico”. Teoria essa, que segundo a autora é contestado por Anna Roosevelt, pesquisadora do Museu de História Natural de Nova Iorque, com base em evidências de “pesquisas arqueológicas”.
Ainda neste tópico Leite cita outras pesquisas, como a conduzida por Michael Heckenberger, no Alto Xingu (Mato Grosso) da “perspectiva histórica sobre a sociedade alto-xinguana”; Colette Grinevald (1998), que calculou o número de línguas na América do Sul em mais de 400 e, por conseguinte, Leite apresenta dados de diversas regiões, como as 760 línguas de Papua Nova Guiné, as 850 língua faladas na Índia, a variedade genética sul-americana (118 famílias linguísticas). Por outro lado, a autora afirma que mesmo com as imposições das entradas e bandeiras, dos descimentos e da política colonial de homogeneização, o Brasil ainda é, no contexto sul-americano, o país com a maior diversidade genética. Todavia, Leite (2003, p. 9) ressalta que, “o país tem uma das mais baixas concentrações de população por língua”. De acordo com a autora (2003, p9), “O número de falantes vai de um máximo de 20 000 a 10 000 (Guarani, Tikuna, Terena, Makuxi, Kaingang) aos dedos de uma mão, quando não resta um único e último falante. A densidade populacional média é de menos de 200 falantes por língua”.
A autora ressalta que as classificações linguísticas sofrem constantes modificações, na medida em que cresce o número de descrições, de reexames de dados já disponíveis e do trabalho de comparação, o que permite rever hipóteses sobre a pré-história e a história indígena. Leite aponta para os estudos de Michael Krauss “The world's languages in crisis. Language” (1992), no qual esse autor chamou a atenção que, neste século XXI, três mil das seis mil línguas existentes no mundo desaparecerão e dois mil e quatrocentas estarão perto da extinção. Leite cita que, no Brasil quem alertou primeiro para urgência de estudos das línguas indígenas foi José de Oiticica, em 1933, o qual propôs um programa integrado de pesquisa e documentação das línguas brasileiras e também para as da América do Sul.
Para Leite a outra face do fazer linguística com as populações indígenas se liga à quase obrigatoriedade de tentar reavaliar, através dos dados que recolhe, as relações históricas estabelecidas, algumas vezes inconclusas, algumas vezes sequer iniciadas. Então, a autora se pergunta: O que os linguistas estão fazendo para o resgate do que sobrou?
A resposta para essa pergunta ela encontrou nas teses de doutorado e dissertações de mestrado feitas por Lucy Seki e Ángel Corbera Mori na época em que foram respectivamente, coordenador e subcoordenador do GT Línguas Indígenas da ANPOLL.
E os resultados computados por esses pesquisadores, de acordo com autora apontaram 83 línguas descritas, agrupadas em 23 famílias e 7 línguas isoladas, organizadas pela classificação genética de Rodrigues (1986), que nos permite ter uma visão panorâmica da diversidade e ampliação do campo, conforme exposto no gráfico a seguir:

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