INTRODUÇÃO

É notório nos dias de hoje, facilmente percebermos a importância que o pensamento psicanalítico tem na nossa sociedade.  Seja pelo número de analistas ou de cursos em geral existentes de teoria psicanalítica, que tem como seu criador o médico Sigmund Freud.  Apesar da estrutura clínica, a psicanálise sofreu forte influência da filosofia, onde o próprio Freud durante sua juventude já demonstrava interesse por essa área de conhecimento conforme aponta sua biógrafa.

Sedento de saber, sonhando com glória e conquista, cogitou primeiro empreender uma carreira política, antes de decidir que seria filósofo... Sonhando com outra identidade e sempre preocupado em superar o pai alcançando, graças a mestres excepcionais, uma cultura erudita, iniciou-se então nos debates filosóficos da época. (ROUDINESCO, 2014, p.37)

Por algum tempo, Freud é tentado a seguir essa carreira e "nessa época pensava em partir para um doutorado em filosofia.... reivindicando o materialismo dialético de Ludwig Feuerbach, filósofo alemão... cujo ensino era muito presente na cultura vienense." (ROUDINESCO, 2014, p. 39)  Partindo das ideias  de Feuerbach, Freud já demonstrava seu interesse por assuntos que mais tarde irá desenvolver de forma exaustiva em sua teoria psicanalítica. 

Sensualismo e crítica da religião: tais eram as teses que inspiraram precocemente Freud... Através do sensualismo de Feuerbach ele assimilava a diferença dos sexos e o reconhecimento de uma alteridade, e mediante a crítica da alienação, abraçava a idéia de que a religião era sempre um obstáculo ao  progresso do conhecimento humano. (ROUDINESCO, 2014, p.39)

Mais a frente, por motivos pessoais Freud acaba por desistir da idéia de seguir carreira como filósofo e "em 1873, aos dezessete anos, ingressou na Universidade de Viena para seguir estudos científicos de medicina." (ROUDINESCO, 2014, p.39).  Décadas a frente Freud inicia uma teoria que vem se mostrar como profunda transformadora da forma como todos pensavam o psiquismo humano até então. 

Ao desistir de ser um filósofo, Freud tinha a convicção de que sua doutrina devia ser antes de tudo uma ciência do psiquismo, capaz de subverter o campo da psicologia e cujos fundamentos se enraizassem na biologia, nas ciências naturais. (ROUDINESCO, 2014, p.97)

 Apesar do seu objetivo de pôr uma conotação científica na psicanálise, Freud nunca mais se desvinculou dos conteúdos filosóficos e segue estruturando sua teoria na contramão dos estudiosos de sua época. 

Num momento em que por toda a Europa se elaboravam vastos programas de pesquisa, com base no estudo dos fatos e dos comportamentos, Freud voltava-se então para a literatura e as mitologias das origens a fim de conferir a sua teoria do psiquismo uma consistência que, aos olhos de seus contemporâneos, não podia em hipótese alguma pretender-se ciência. (ROUDINESCO, 2014, p.100)

Ao conferir uma análise minuciosa da teoria psicanalítica, percebemos a influência da filosofia na mesma e é nos escritos sobre a pulsão de vida e morte que a suas ideias se cruzam com a de outro pensador; Arthur Schopenhauer. "O próprio Freud, ao tomar conhecimento dos textos de Schopenhauer, admite a coincidência de algumas das teses do filósofo alemão com a psicanálise." (GIROLA, 1999) 

Ao longo desse artigo, tentaremos demonstrar a similaridade do conceito de vontade, desenvolvido pelo Filósofo Alemão Arthur Schopenhauer e de pulsão de Sigmund Freud, considerado por muitos uma de suas principais teorias.  Veremos como ambos atribuem, através das teorias citadas, subjetivações parecidas ao psiquismo humano.  Seus conceitos, apesar do tempo de criação, permanecem vivos e estudados até hoje,  e assim se colocam como uma forma de analisar o comportamento do homem.

1– SCHOPENHAUER E A VONTADE

Arthur Schopenhauer, filósofo Alemão ficou famoso por ter escrito o livro "O mundo como vontade e como representação, aos 30 anos de idade.  E a partir disso toda sua produção intelectual posterior apenas retoma e desenvolve temas desta sua obra magna publicada em 1818." (WENDLING, 2010)  Nela, o filósofo trabalha temas que mais a frente serão caros a psicanálise de Freud.  Schopenhauer define o mundo como uma representação da vontade do homem e a partir disso desenvolve uma série de conceitos onde tenta demonstrar a fragilidade da vida e a dificuldade do homem em satisfazer essa vontade.

Segundo o pensador, a vontade é inerente ao ser.  E apesar de Schopenhauer não eliminar o princípio da razão pertencente ao homem ele se "distancia de Kant ao afirmar que a coisa em si (que para este era inalcançável) nada mais é do que a vontade." (GIROLA, 1999).  A vontade dessa forma, se mostra como  irracional e inconsciente e fonte de sofrimento e "Schopenhauer introduz assim o conceito de inconsciente numa perspectiva muito próxima aquela da psicanálise." (GIROLA, 1999)

O mundo como representação é o espelho da vontade... A vontade, considerada puramente em si mesma, é inconsciente... Nascer e morrer são coisas que pertencem ao fenômeno da vontade.... O mundo, em todos os seus fenômenos, é objetividade da vontade...por ela ser a coisa em si, não está submetida ao principio da razão que é a forma de qualquer objeto.... isto quer dizer que ela é livre. (SCHOPENHAUER, 2015, p.3-11)

Como as vontades estão diretamente relacionadas as representações do mundo, elas também podem  ser consideradas como a divisão entre o homem e o objeto, pois sempre que tentamos atribuir significados ao mundo fazemos uso das representações. Assim "a razão do homem está dominada por princípios embutidos a priori e sua consciência  está condicionada as noções de tempo, causalidade e espaço." (SANTIAGO, 2013)  Para Schopenhauer, essas três noções se encontram em todos os indivíduos, sem haver necessidade de conhecimento do objeto, pois já estão a priori em suas consciências.  "Pois o objeto pressupõe o sujeito, mas este permanece fora da jurisdição do princípio de razão"(WENDLING,2010)

Um ponto importante na teoria de Schopenhauer é o de entender como é possível a partir do contato com a experiência tomar compreensão do mundo em si se ela faz parte de uma representação?  Schopenhauer explica isso, tomando como base o próprio corpo do indivíduo.

Somente pela experiência externa, jamais seria possível sair do campo das representações... Assim, o ponto de partida do conhecimento metafísico se encontra nessa encruzilhada entre as experiências externa e interna, que é o próprio corpo...  O corpo é fundamentalmente diferente dos demais e que só ele é ao mesmo tempo vontade e representação, condenando os demais a serem somente meras representações, meros fantasmas. (SCHOPENHAUER apud WENDLING, 2010

Dessa forma, Schopenhauer tenta encerrar a questão limitando todos os demais objetos, com exceção do corpo do indivíduo, a não serem duplos e sim representações na consciência desse indivíduo que serão analisados conforme semelhança com seu corpo.  "O corpo é aquilo que inicialmente possibilita pensar os objetos não como meras representações, mas possuidores de uma realidade em si." (WENDLING, 2010)

Schopenhauer insere a vontade como atuante em tudo que existe, pois " além da representação e vontade, nada existe.  Portanto até mesmo onde temos a impressão de que não existe atuação da vontade, não passa, de uma falsa impressão." (WENDLING, 2010)  O pensador, através dessas ideias, acaba por limitar o papel do próprio saber, relativizando ainda mais a busca do homem pelo sentido da sua existência.

As ciências, embora importantes, não alcançam o sentido último da realidade, da representação; elas carregam consigo um limite cuja transposição é impossível, este limite é o próprio saber, regido pelo princípio da razão, que as obriga a permanecer no campo das representações. (WENDLING, 2010)

A impossibilidade de ter a ciência como base final do conhecimento das coisas relativizaria a possibilidade de conhecimento total, de acordo com Schopenhauer.  Além disso, o homem trava uma batalha pela satisfação do seu desejo, que é representado pela sua vontade livre e irracional, fazendo com  que o indivíduo permaneça em busca constante de significados e realizações, como nem sempre o homem sabe o que quer ou pode fazer o que deseja, tal cenário fatalmente provocará angústia.  Esse percurso é definido no pensamento de Schopenhauer como arrependimento.

O arrependimento não nasce nunca do que é a vontade, mas sim do que é o conhecimento, o qual se modificou... Assim, não posso jamais arrepender-me do que quis, senão do que fiz, por isso que, guiado por falsas noções, fiz algo que não era conforme a minha vontade.  Cobrar o conhecimento disto, quando a consciência se ajustou, eis aí o arrependimento...  Observamos, todavia, que, com o fim de nos enganar a nós mesmos, preparamos às vezes precipitações aparentes, que são, no fundo, atos secretamente premeditados. (SCHOPENHAUER, 2015, p.17)

 

De vários conceitos expostos acima como o inconsciente, a busca por uma satisfação sem um plano pré determinado, a dificuldade de esclarecimento e conhecimento do mundo, a irracionalidade da vontade e o arrependimento, são alguns dos pontos que tem forte similaridade com os conceitos psicanalíticos em relação ao psiquismo humano que veremos mais adiante.  Não foi a intenção do artigo esgotar as teorias de Schopenhauer, apenas levantar alguns temas que nos serão úteis para traçarmos paralelismos com a obra Freudiana.   Também, é importante notificar que os escritos de Freud no qual debruçaremos não contém citação direta a obra referida de Schopenhauer, mas ao longo das exposições, vão ficando claras as similaridades.

2 – FREUD E A PULSÃO

Ao iniciarmos as exposições dos conceitos de Freud sobre a pulsão, seria pertinente começarmos pela forma como ele estruturou o psiquismo humano.  Antes de mais nada, Freud se mostra muito flexível no tocante ao desenvolvimento de suas ideias e seu olhar particular da ciência fica claro quando o mesmo afirma que a psique "trata-se da região mais obscura e inacessível da mente e, já que não podemos evitar travar contato com ela, a hipótese menos rígida será a melhor." (FREUD, 1920)  Isso demonstra a forma como ele vai estruturar toda sua teoria ao longo de suas pesquisas onde a máxima da renovação conceitual é algo de que o mesmo não abre mão. "O avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive se tratando de definições. (FREUD,1915)

A estrutura do psiquismo humano, base necessária de entendimento para o conceito pulsional Freudiano, é divida em três instâncias.

Id, Ego e Superego.  Podemos dizer que o Id seria formado pelos impulsos inatos e pelas energias (pulsões) que compõe o indivíduo.  O Id não é socializado, não respeita convenções, e as energias que o constituem buscam a satisfação incondicional do organismo. (SANTIAGO, 2013)

Dessa forma, segundo a teoria freudiana, existe algo não sociável e envolto pelas pulsões que buscam de forma não racionalizada uma certa satisfação para o indivíduo, tal instância, obviamente, não está sozinha. O "ego, que por sua vez, se desenvolve durante a vida do sujeito; ele é o self do indivíduo, será responsável por estabelecer contato dos seres com o ambiente."(SANTIAGO, 2013) e finalizamos essa tríade com o Superego, que "é responsável pela acumulação de regras sociais.  Por meio dele, o sujeito assimila todas as normas que lhe são ensinadas, inicialmente, pela família e posteriormente pela sociedade." (SANTIAGO,2013)

Partindo do princípio que o psiquismo humano tem todas essas instâncias e fica cabendo a uma delas a tentativa de equilíbrio das possibilidades ou não de satisfação, Freud acaba por definir ao homem uma angústia existencial contínua.

A psicanálise freudiana discute o percurso dos impulsos gerados no Id e das restrições que o Superego lhes impõe.  Muitas vezes, as informações que são geradas no Id não chegam ao Ego, sendo contidas pelo Superego, que agiria como uma espécie de protetor do Ego, assegurando que as pulsões liberadas pelo Id não atrapalhem a vida dos sujeitos em suas relações sociais.  (SANTIAGO,2013)

O superego acaba por se mostrar como um grande "castrador" de muitas vontades do indivíduo, e sua constituição fica dependente da forma como o homem foi exposto aos outros durante seu crescimento.

2.1 – A TEORIA PULSIONAL

Freud foi um pensador que viveu uma época em que inúmeras catástrofes estavam ocorrendo no mundo, como as duas grandes guerras.  Acredita-se que um dos motivos da criação da teoria pulsional foi devido as grandes dificuldades a qual foi exposto.  Fazendo com que dessa forma, o mesmo acabaria por desenvolver uma visão muito pessimista da humanidade.

Viena, 1918 é catastrófico para os impérios centrais...Na Áustria, que tinha perdido parte do seu território e de suas fábricas, instaura-se uma terrível crise econômica... O fantasma da fome ronda por toda parte.  Freud não escapa das duras conseqüências da guerra.  A própria mulher de Freud adoece e a filha dele morre, deixando dois netos. (GIROLA,1999)

É muito provável que esses fatos tenham proporcionado a Freud uma nova forma de entender o homem, além do grande desafio que deve ter sido para ele refletir sobre todos os mecanismos que levam o homem a sua destruição em casos de guerra.  Acredita-se que esse tenha sido um grande motivo para que o mesmo tenha desenvolvido sua teoria do Além do princípio do prazer, tentando demonstrar, de forma pessimista, como funciona as bases da mente humana.      

A teoria pulsional de Freud pode ser divida em dois momentos, primeiro em sua obra, Os instintos e suas vicissitudes  de 1915 e posteriormente em 1920 em Além do princípio do prazer. Naquela, Freud afirma que "o que caracterizaria o funcionamento do psiquismo seria a dominância do princípio do prazer, isto é, a base da atividade pulsional humana estaria no princípio do prazer." (GIROLA,1999) Freud afirmava que o mecanismo de funcionamento pulsional agia conforme a relação de atração e distanciamento das coisas conforme o prazer e desprazer.

Quando a fase puramente narcisista, cede lugar à fase objetal, o prazer e o desprazer significam relações entre o ego e o objeto.  Se o objeto se torna uma fonte de sensações agradáveis, estabelece-se uma ânsia motora que procura trazer o objeto para mais perto do ego e incorporá-lo ao ego.  Falamos da atração exercida pelo objeto proporcionador de prazer, e dizemos que "amamos" esse objeto.  Inversamente, se o objeto for uma fonte de sensações desagradáveis, há uma ânsia que se esforça por aumentar a distância entre o objeto e o ego. (FREUD,1915)

Mais tarde, no desenvolvimento de sua obra posterior, Além do princípio do prazer de 1920, possivelmente influenciado pelos fatores externos já citados e observando os fenômenos de compulsão a repetição, Freud percebe que há algo "além" da dinâmica do prazer, pois muito dela se dá através de experiências desagradáveis.  "Freud constata que, nessas experiências, conteúdos inconscientes reprimidos esforçam-se para se expressar." (GIROLA,1999)

Decidimos relacionar o prazer e o desprazer a quantidade de excitação, presente na mente, mas que não se encontra de maneira alguma "vinculada", e relacioná-los de tal modo, que o desprazer corresponda a um aumento na quantidade de excitação, e o prazer, a uma diminuição. (FREUD,1920)

Dessa forma, Freud aponta que mesmo em situações adversas, que proporcionem sofrimento, o resultado final ainda sim é a inegável necessidade de ir além do princípio do prazer. "Trata-se de uma necessidade cega do inconsciente de realizar o próprio desejo, que, ao ser bloqueado pelo Superego, não tem outra saída a não ser repetir-se indefinidamente." (GIROLA,1999)

Para Freud os instintos "são inerentes a vida orgânica, que visam restaurar um estado anterior das coisas, é um tipo de pulsão que leva a voltar para o estado inorgânico." (GIROLA,1999).  Tal afirmação o faz chegar a uma conclusão intensa a respeito do funcionamento psíquico do indivíduo.  Afirmando, dessa maneira, que o objetivo do ser é chegar a uma espécie de homeostasia.

O instinto somente na aparência é uma força que impele a mudança, na realidade sua natureza é essencialmente conservadora; seu objetivo é voltar a um estado antigo de coisas, um estado inicial de que a entidade viva se afastou e ao qual se esforça por retornar.  Tudo o que vive tende a morrer por razões internas, a tornar-se novamente inorgânico, neste sentido o objetivo de toda a vida é a morte. (FREUD,1920)

A confusa e conflituosa busca de satisfação humana, acaba por colocar a vida em caminhos bem diversificados e até torturantes segundo Freud.  A angústia como caracterização da vida é algo bem notório em sua teoria pulsional.  Apesar disso, é importante salientar que Freud institui a "base do psiquismo três princípios distintos, prazer, realidade e morte.  Tendo esta última o objetivo de restabelecer a paz, vinculando a libido não ligada."(GIROLA,1999)

Todos conceitos expostos até o momento da teoria pulsional freudiana, tiveram o intuito de nos fazer traçar paralelos com as teorias dos dois pensadores aqui expostos, algo que tentaremos expor de forma mais detalhada adiante.

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