Existem algumas coisas que me incomodaram profundamente nas últimas semanas. Primeiro, ter visto uma declaração completamente estúpida do cantor Lulu Santos, no programa da Hebe Camargo, a respeito de uma reportagem sobre a convivência entre uma brasileira e uma árabe. Depois, a confirmação de que no dia 11/04, entraria em vigor na França a lei que proíbe as mulheres islâmicas de usarem a burca em locais públicos. Em seguida, ter ouvido de um comentarista na TV que a queima do Corão por um pastor norte-americano não representa uma falta de respeito com os muçulmanos. Por último, a tentativa de alguns meios de comunicação de associar o atirador psicótico que matou 12 adolescentes em uma escola de Realengo com a religião de Maomé.
São quatro eventos completamente independentes, mas que se ligam em um aspecto: o preconceito contra tudo que é árabe-islâmico.
No primeiro caso, o quadro do programa da RedeTV até me pareceu interessante. Tratava-se de uma troca de experiências entre uma mulher carioca em visita a um país islâmico (não me lembro qual) e vice versa. Assisti ao segundo. A mulher muçulmana, seguida da sua mãe e com toda a vestimenta típica da sua cultura, percorreu a Lapa carioca e o sambódromo, além de conhecer a igreja da Candelária. Já era de se esperar que o estranhamento seria enorme e que houvesse uma crítica das mulheres aos costumes "mundanos" do povo brasileiro (bebidas alcoólicas, bundas e peitos pulando etc). Nada muito diferente do que a carioca havia feito quando visitara o país islâmico (como deu pra perceber em alguns flashes do programa anterior). Nos comentários, Hebe e Lulu Santos foram extremamente grosseiros com a cultura muçulmana, com o segundo chegando a falar que a repulsa da mãe da menina olhar o que acontecia no sambódromo se devia a um desejo subconsciente e reprimido de se entregar aos prazeres da vida. A conclusão de ambos: "essas mulheres são profundamente infelizes!"
No dia em que escrevo estas linhas, andar de burca nas ruas de Paris dará multa e até cadeia ao infrator. A justificativa: o Estado é laico e como a rua é pública não pode haver qualquer manifestação religiosa. Ok! Vamos seguir o raciocínio... proíbe-se também os crucifixos, as camisas com imagens de Jesus ou santos católicos, os kipás dos judeus, enfim, porque somente a referência ao costume religiosos muçulmana? Lembremos que o país que outrora pregara valores revolucionários em 1789 é um dos mais xenófobos da Europa.
Já o cientista político Carlos Novaes defendeu, e sofreu severas críticas por isso, que o ato de hostilizar símbolos religiosos não é uma falta de respeito, em referência a um pastor evangélico da Flórida (EUA) que havia queimado um exemplar do Corão. Está certo que Novaes citou inclusive o caso do pastor da Igreja Universal que chutou uma santa católica em um culto, mas o assunto em pauta era a reação do mundo islâmico à atitude do pastor "sem noção". Será que se fosse o inverso, um muçulmano queimando uma Bíblia, o cientista político manteria sua opinião?
Por fim, desde o fatídico dia do atentado em Realengo que percebo a tentativa de alguns jornalistas de associar o atirador com a religião islâmica, numa espécie de versão tupiniquim para o homem-bomba muçulmano. Não importa se a polícia achar algo escrito deste psicopata em supostas relações com grupos de radicais islâmicos. A verdade tem que ser dita: este homem não tem a mínima ideia do que seja o islamismo. Sua carta de despedida nos dá a certeza que sua visão religiosa é um emaranhado de ideias desconexas. A conotação deste atentado não é religiosa nem de longe.
Isto tudo me faz lembrar de um estudioso chamado Eduardo Said, que escreveu a obra "Orientalismo". Ele defende que o antissemitismo judaico foi transferido para o antissemitismo árabe após o Holocausto, uma vez que o mundo se chocou com as atrocidades nazistas (lembrando, tanto judeu quanto árabe são semitas). Se procurarmos as charges antijudaicas de outrora e compararmos com as representações dos árabes muçulmanos de hoje encontraremos poucas diferenças. O perigo, a "praga" do mundo mudou de endereço. É claro que nem todo árabe é muçulmano, mas para o mundo ocidental-cristão isso pouco importa ? "não é o povo do homem-bomba", diria um de nós. Afinal, ainda não tem gente que afirma que japonês é tudo igual? Na nossa visão, eles são os estranhos. E o que eu não compreendo, pela diferença, passa a ser perseguido. Assim nasce o preconceito.
Sei não, um de nós está paranóico e eu espero, sinceramente, que seja eu.