Todos já devem ter ouvido essa frase em algum momento da vida. Alguém que posse de uma carteirinha coloca no nariz do outro o peso de uma autoridade, pretensamente outorgada pelo Estado e se coloca acima das leis. Ela faz parte da cultura brasileira e representa uma manifestação de poder simbolizando que o Estado foi apropriado por uma minoria, que por exercer alguma função importante nesta instituição, considera-se protegido por ela.

Foi somente após as revoluções liberais, principalmente, a Revolução Francesa, é que o estado deixa de ser a representação da nobreza e seus asseclas transformando-se numa instituição de todos e para todos, pelo menos no sentido filosófico. O filósofo suíço Jean Jacques Rousseau no século XIX concebe o Estado como uma instituição artificial a serviço da lei da ordem e o soberano (ou o governo) é como qualquer cidadão, um súdito da lei e não acima dela. Para Rousseau, os indivíduos são cidadãos do Estado e súditos da Lei, incluindo aí os próprios soberanos. Infelizmente no Brasil, o Estado continua representando no imaginário de boa parte de nossa elite (já que não temos mais a nobreza), uma instituição a seu serviço, apesar de que nossa constituição deixa bem claro que todos somos iguais perante a lei. Como escreveu Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil: o liberalismo em nosso país foi um grande equívoco, ou seja, as elites se apropriaram dele de acordo com os seus interesses patrimonialistas e não como uma instituição voltada para a sociedade como um todo.

Mais recente acontecimento na cidade de Santos, quando vimos pela mídia um desembargador flagrado sem máscara que se tornou obrigatória na cidade por conta da pandemia. Ao ser autuado, humilhou os seguranças chamando-os de analfabetos e ainda por cima teve a audácia de rasgar a multa, num claro desrespeito a uma autoridade do estado, no caso a prefeitura. Por ser um Desembargador deveria ser expulso do judiciário, pois não se concebe um agente da lei, desrespeitá-la por se julgar acima das leis. Felizmente a tecnologia torna possível desmascarar a prepotência de agentes públicos, incluindo aí maus policiais que usam a farda como pretexto para humilhar cidadãos, principalmente quando se trata de pessoas negras.

O mais triste é que o acontecimento não é nenhuma novidade neste país e com certeza apenas um insignificante número de casos chega à imprensa. O episódio ocorrido há alguns anos em Brasília em que um estagiário foi humilhado por um juiz pelo simples fato de estar na fila de espera para utilizar o caixa eletrônico em um órgão público, é outro exemplo que mostra o poder da "carteirada". Esse tipo de comportamento está tão enraizado em nossa cultura, que as pessoas acabam considerando normal que alguém que representa a lei, utilize essa prerrogativa para obter vantagens e privilégios. A partir daí, maus advogados, se valem do conhecimento da lei para se colocarem acima dela. Quem nunca ouviu um deles tirar a carteirinha da OAB e usá-la como instrumento intimidatório?