VOCÊ JÁ FOI A BAHIA?

Depois de ouvir a canção do Caymmi em uma vitrola portátil  numa morna tarde de sábado, eu e o Pig decidimos conhecer Salvador.  Pig, era o apelido do Rubens Braggion, que o Alemão, outro amigo, lhe colocou por ser muito pequeno. O original era Pigmeu, mas foi encurtado para ficar mais sutil.  Malas arrumadas e passagem na mão,  foi assim que numa fria tarde de julho de 1970, pegamos a estrada num busão que cortou os estados de Minas e Bahia, por uma paisagem seca e árida que predomina a partir do norte mineiro.  Grande parte da região era praticamente desabitada com uma ou outra casinha rústica perdida naquele sertão  sem fim, que Guimarães Rosa usou como cenário para as aventuras de Riobaldo e Diadorin.  Montanhas e montanhas com uma vegetação rala e rochas cor de chumbo a perder de vista no horizonte que iam adquirindo um tom azul escuro.

Durante a viagem me distraia da monotonia da paisagem lendo O Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, um romance de ficção científica, prevendo um futuro nada animador para os jovens que queriam mudar o mundo. Nada com nada. Deveria mesmo ter trazido Os Sertões de Euclides da Cunha ou mesmo o Grande Sertão, Veredas que ainda não havia lido na época.  Mas durante a noite, impossível de dormir no desconforto do ônibus, o livro foi uma boa companhia enquanto meu companheiro de viagem roncava sem cerimônia.

Chegamos a Salvador no início da noite e fomos procurar um hotelzinho modesto para passar a noite e encontrar duas amigas do Rubens que estavam passando férias na cidade natal e que seriam nossas anfitriãs, sem hospedagem. Acomodados tomamos um banho e lá fomos encontrar as garotas que estavam hospedadas na casa de uma tia delas. Fomos recebidos com muita gentileza pela família, que nos ofereceu um café completo, pois não tinham o hábito de jantar, coisa comum na Bahia segundo a tia das garotas. O café foi servido com uma sopa de entrada e complementada com queijos, bolos doces e salgados. Realmente foi um café de dar água na boca de dois famintos turistas de São Paulo.

A família das meninas nos indicou uma pensão nas proximidades, que era barata, com direito a café da manhã, almoço e jantar, e assim sobraria mais dinheiro para os passeios e prolongaria a nossa estada na cidade.  A pensão era conhecida como "Balança, mas não cai", assim chamada por se tratar de um prédio histórico construído século XVIII e que há muito tempo pedia por reformas, por isso o nome estranho.  O quarto  em que ficamos tinha um imenso pé direito e uma enorme janela e era compartilhado com dois jovens da Igreja Adventista que estavam fazendo um trabalho de divulgação na capital baiana. Mas pouco ficávamos na pensão, que servia mais como dormitório. Tomávamos um modesto café da manhã e íamos bater perna. Durante o dia tínhamos vários passeios programados pelos primos das amigas do Rubens que se esmeravam para que conhecêssemos o que havia de melhor na velha capital. Como eles tinham parentes em vários locais, desfrutamos da hospitalidade de várias casas, onde saboreávamos as iguarias típicas como um bom vatapá, acarajés, abarás etc. Passamos um dia maravilhoso em Itapoan, onde não faltou uma pelada na praia, onde provavelmente Vinicius de Moraes criou a bela canção “Tarde em Itapoan” juntamente com Toquinho. Na época a Lagoa de Abaetê ainda era rústica e quase selvagem, com apenas lavadeiras às suas margens e aquela areia branca que fazia doer aos olhos.

Nos dias em que os nossos anfitriões, Renato e Arnaldo tinham seus compromissos, vagávamos pela cidade e passeávamos  pelas  belas e ainda quase selvagens praias. Como era o mês de julho, invariavelmente, chovia a tarde e por isso ninguém frequentava as praias. Garotas nem pensar. A classe média de Salvador não ia à praia, alertou um dos nossos cicerones.  Mas não faltaram passeios interessantes como o centro de tradições baianas, a casa de Rui Barbosa, museus, igrejas e as lambretas (mariscos) harmonizadas com cerveja gelada.

O Pig levou uma câmara que acabou sendo fonte de conflito entre nós. Nenhum dos dois queria carregá-la, pois era uma antiga e modesta Kapsa, enorme e desajeitada. Enquanto os turistas carregavam modernas câmaras penduradas nos pescoços, o Pig carregando a sua velha Kapsa, formava uma figura tão cômica que comecei a rir deixando-o furioso. Como resultado,  deixamos de registrar belas paisagens e bons momentos da viagem. Mas sobraram alguns registros de Amaralina, Jardim de Alá e Itapoan.

Ainda hoje me lembro daquela viagem com pouco dinheiro e sem muito planejamento. Da Bahia que conhecia através dos livros do Jorge Amado, conhecemos pouco, mas o suficiente para alimentar nossa fome de informações. Lá tivemos a hospitalidade generosa da família das amigas do Pig que nem lembro mais seus nomes. Uma delas, eram duas irmãs, encontrei na universidade que me contou que a outra se casara com um holandês e se mudou para a Europa. Os dois rapazes que nos guiaram pelas praias, pelos cabarés e pelas ruas do Pelourinho nunca mais tivemos notícias apesar das promessas vãs de escrever e dar as novas. Lembro-me de que ainda enviei postais de São Paulo para eles e para  a dona da pensão, mas ficou apenas nisso.

No final dos anos 1990, fui diversas vezes para Salvador a trabalho, mas sempre na correria e sem ter endereços não encontrei aquelas pessoas amáveis e hospitaleiras que se sentiam orgulhosas em mostrar a sua terra para os visitantes. Viajando de avião, avistava aquelas imensas regiões que ainda continuam áridas e pouco habitadas. Numa dessas viagens de trabalho levei a mulher e filha e confesso que fiquei desencantado com as mudanças. A Lagoa de Abaeté foi totalmente urbanizada, transformando-se num  local sem a graça de outrora, mais parecendo uma dessas praças que existem em qualquer cidade. O Pelourinho ficou parecendo um cenário de cinema, recentemente maquiado para “inglês ver”. Talvez seja por isso que um dos maiores poetas do cancioneiro da Bahia, Dorival Caymmi, tenha optado por passar o resto dos seus dias em Rio das Ostras no litoral Fluminense