VIVI E VIVENCIEI A AMAZÔNIA! NÃO SOU UM PESQUISADOR DE BIBLIOTECA!
Por Sydney Pinto dos Santos | 30/06/2025 | HistóriaVIVI E VIVENCIEI A AMAZÔNIA! NÃO SOU UM PESQUISADOR DE BIBLIOTECA!
Texto produzido em outubro de 2021 em Santa maria do Uruará – Pará
Por: Sydney Pinto dos Santos[1]
Quaisquer discursivas hoje, mesmo em seminários, simpósios, encontros internacionais, palestras e outras obsequiosidades esdrúxulas, decorrentes de falas de especialistas, os quais muitas vezes nunca pisaram de verdade na Amazônia, e que, às vezes são especialistas formados em bibliotecas mundo afora, mas sem nenhuma ligação com a real realidade e necessidade de um povo, o qual ao longo dos anos ou mesmo séculos, desde chegada dos primeiros exploradores, souberam cuidar da “própria casa”. E, a cuidaram com sensibilidade, sapiência, sabedoria e muito conhecimento sobre o que ser um “amazônida”.
Porém, muitas vezes, ficamos “relegados” a opinar sobre nosso próprio espaço, vivências, costumes e cultura, apenas quando os saberes dos especialistas ficam limitados; os quais procuram incrementar seus “conhecimentos” sobre a Amazônia, procurando extrair dos nativos daqui as melhores histórias, informações, conteúdos e saberes construídos ao longo dos tempos, fomentando a sua maneira de olhar e “construir” o espaço amazônida.
Por isto que digo, que não sou um especialista de “biblioteca”; pois, meus conhecimentos, vivências, experiências e conhecimentos foram, desde tenra idade, construídos no imo da Amazônia, na área de várzea, em palafita, na proa de uma canoa. Uma vivência, onde a sobrevivência não estava na escolha do que se comia, se vestia, se calçava ou do que se poderia apreciar. Estava na essência da própria natureza, daquilo que ela pode e poderia nos oferecer, mesmo que limitado.
Indo desde a dormida cedo em redes, com a luz tênue de uma lamparina, “movida” à querosene ou óleo diesel, o qual soltando uma fumaça preta e densa, era inspirada pelos adormecidos; sem contar com o fogão a lenha, que tinha que ficar com uma brasa para o dia posterior, já esperando para ser “incentivado”, e esperando a refeição do raiar do dia, passando pela esperança de um dia ter uma casa coberta de outro material que não folha a palha; ou obtendo os diferentes apetrechos de pesca e vivência que permitisse uma integração maior e melhor com o “mundo lá fora”.
Assim, minha identidade como pesquisador da real vivência e vivenciamento das augúrias, necessidades e das interações e inter-relações na Amazônia, não foi construída através de livros escritos e impressos no sul do país, muito menos, em jornais televisivos que implicam em distorcer com grande audácia a realidade; foi vivida na proa da canoa nos dias escaldantes (mormaço) ou nas noites escuras imperiosas pelos fenômenos meteorológicos, como ventanias, temporais, chuvas e trovoadas. Como de costumeiro, ou atrás de um pescado para suprir a fome, ou ainda para conseguir a alimentação dos animais.
Pois, além da busca pelo pescado, nas noites cheias de carapanãs, formigas, água e tudo o mais que pudessem contribuir para uma vida cheia de empecilhos e vicissitudes; ainda tinham os animais nas marombas, os quais precisam se alimentar, e assim necessitavam de um esforço tremendo na busca de seus alimentos, fosses bois e vacas, fossem porcos ou mesmo galinhas. Tudo implicava num esforço desconhecido pelos “especialistas” que nunca viveram e/ou conviveram na Amazônia.
Quem dos amazônidas ribeirinhos, não comeu uma piracaia, inclusive de acari bodó à beira de um rio ou de um igarapé, regada à agua e farinha puba ou pirão (chibé) e sal. Quem dos criadores da várzea, não acordou cedo para ir de canoa a remo até o capinzal, tirar a corte de terçado, os melhores capins para o rebanho que se encontra em cima da maromba; fosse canarana (Hymenachne amplexicaulis), rabo-de-rato ( ), pomonga (Leersia hexandra ), ou até mesmo premembeca (mais usado na alimentação de suínos). Quem não alimentou seus galináceos com flor de caraparu, apé, e outros tipos de aguapés? Quem dos amazônidas não atolou o pé nas fezes dos bovinos sobre os assoalhos das marombas, depois da noite chuvosa, para tentar tirar o leite das vacas que tiveram sua pele crua picada, à noite toda, pelos carapanãs? Quem não se atolou no verão para capturar os tamuatás apresados nos poços de lama, da baixada da água? Quem não furou os pés com espinhos de jiquiri ou cortou os pés no verão com uruá enterrado na lama ou encravado no terroado? Quem não se furou com esporão de mandíi, surubim ou outro tipo de bagre? Ou foi mordido por piranhas ou traíras? Ou ainda foi “choqueado” por poraquês na intenção de atravessar os pântanos, alagados e poças de água no verão?
Muitas são as “atividades” dos caboclos amazônidas, que fazem inveja a qualquer treinamento preparatório de sobrevivência e ações das Forças Armadas, pois a vivência por si só no ambiente amazônico, seja na área de várzea, no inverno ou verão; ou nas áreas de terras firmes, já se torna um exercício físico e psicológico natural.
Imagine um amazônida, antes do advento do motor rabeta, que passa a noite toda acordado na atividade pesqueira, pegando temporais, chuvas torrenciais á noite escura dos ambientes lacustres; sem contar com todo tipo de mosquito e carapanãs. Como rema quilômetros de água para chegar ao seu destino; assim como fazendo força no “barranco”, tentando atravessa-lo com a ajuda da “vara”. Sem contar que na época do verão anda quilômetros na poeira quente, atravessando terroados[2] e tesos, e também igarapés com sacas de peixes na cabeça ou ombro. Sem contar, os riscos que corre nos poços, onde piranhas, traíras, poraquês e arraias não dão tempo; assim como os variados tipos de cobras com as jararacas, comboias, e sucuris, as quais estão por todo lado.
Nunca vi um amazônida se reclamar, por captar a água dos igarapés e rios barrentos para utiliza-las em suas atividades básicas, como lavar roupas, fazer comida, e assim como bebe-la, depois de colocar a mesma no pote. Onde tirada com o púcaro e colocada no caneco de lata de leite moça (depois de usada) e outros recipientes nada convencionais, são as formas mais simplórias e corriqueiras de se viver em ambiente tão hostil, mas agradável, do ponto de vista da vivência e convivência com a natureza.
Logo, buscar a verdade sobre a Amazônia, é interagir com uma diversidade de atitudes, comportamentos e costumes dos povos que aqui vivem, sejam eles pescadores, criadores, ribeirinhos de toda espécie, sejam os da agricultura familiar, ou os caboclos que além de contar as verdadeiras, sabem “enfeitar” suas histórias com os causos. Não é apenas pegar um livro e folheá-lo ou assistir um jornal televisionado e transmitido à milhares de quilômetros de distância.
Viver a verdade da Amazônia, é comer a farofa de piracuí (farinha de peixe), produzida a partir do acari; e tomar o açaí , tipo da “colher em pé”; é comer a rapa da produção de queijo caseiro; é pescar jacaré na noite escura à luz de laterna e comer o mesmo no guisado; é comer tracajá assado pegados de “sossocar[3]” nas lamas e barrancos; é pescar na lama tamuatá; e andar atrás de gado no terra rachada (terroado), e assim caminhar na poaca ao meio dia, ou no juquiri, é remar pelos rios; é empurrar pelos barrancos do inverno; e tomar xibé; é se cortar com uruá nas corridas pelos campos; é correr na frente de búfalo bravo; é atravessar igarapés, no verão amazônico, cheios de piranhas, traíras, poraquês; é despescar malhadeiras com sucuriju preso a ela; ou tomar leite de manhã (tipuca) retirado diretamente das ubres das vacas leiteiras.
Viver e vivenciar e dialogar com a realidade amazônica, é muito mais de que ficar ouvindo ambientalistas de sala vip de aeroportos; ou de discursos de políticos do mundo com propósitos sobre ela nada ortodoxos; ou de grupo de interesses que veem a Amazônia não pelo que ela e seu povo precisam, mas pelo o que ela pode oferecer aos interesses de grupos de políticos e empresários alheios à sua dura e real realidade. É ouvir as falas, clamores e projetos práticos para as diferentes realidades existentes dos diferentes atores sociais que aqui moram, vivem, convivem e sobrevivem. É morar sobre a água durante 6 meses sobre a água da várzea ou das terras firmes (colônias); é interagir com a produção da farinha de mandioca, desde derrubada de uma pequena parcela da mata onde se implantara o roçado de maniva, até a venda da produção; era carregar madeira no ombro; é fabricar canoas e todo tipo de embarcação de toros brutos de madeira; é ser humilhado por órgãos de fiscalização do governo, por ter matado uma caça para a sua alimentação, enquanto os verdadeiros depredadores da natureza, ficam impunes.
A Amazônia não é somente para os “amantes da natureza”, não é para discursos na ONU; não é para babacas imbecis metidos a ativistas ambientais de vitrine; é um espaço para moldar verdadeiros homens e mulheres; é um local para lembrar de Marechal Cândico Rondon e seus descendentes e outros desbravadores, quem tinham em seu tino o caráter e a dignidade de um patriota, não interesses escusos. Amazônia não é só índio, os irmãos, que procuram ganhar novos espaços na economia e na vida social; não é só onça, nem jacaré, nem boto nem pirarucu. Amazônia é riqueza, é alegria, é vida pulsante, é vivência dos diferentes povos que buscaram se alocar, respeitando a mãe natureza e suas inúmeras espécies; é conviver com o natural dia e noite, sem se queixar da vida; é comer farinha puba, quando somente ela está disponível na mesa; é tomar o café da manhã ao som da melhor orquestra do mundo: a dos passarinhos e pássaros. É navegar as turbulentas e barrentas águas do Amazonas, e por conseguintes, de outros rios que nele desemboca; é comer macaxeira cozida, quando faltar pão à mesa; é ser irmão neste espaço, e ser respeitado muito longe; é construir uma identidade sem medo de ser feliz e pertencer a esta pátria chamada Brasil.
[1] Professor e Pedagogo da Rede Pública de Ensino do município de Prainha
Pesquisador e escritor da Margem Direita e da região do Uruará do Município de Prainha;
Emancipalista da Margem Direita (Santa Maria do Uruará).
Mestrando em Educação – com especialização em Ensino Superior (FUNIBER/UNINI)
Terapeuta TRG (IBFT e pós – graduado em Psicologia e Psicanálise Avançada (FACUVALE)
[2] Terroados – são saliências no solo que aparecem depois que as águas baixam na área de várzea e, por causa da luz solar, ressacam consideravelmente, deixando o solo rachado e “afiado”, podendo cortar a pele dos pés, salvo o indivíduo caminhar descalço por estes espaços.
[3] Sossocar – arte ou ação de pescadores ribeirinhos de enfiar uma vara ou haste de madeira, de tamanho entre 2,5 ou 3 metros, na lama ou capim com água, no sentido de encontrar quelônios, jacarés ou peixes.