VIVENDO À SOMBRA DO MORTO: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE O USO DO RÁDIO NA EXALTAÇÃO DOS “HERÓIS” FARROUPILHAS 1985

Luciano Braga Ramos[1]

 

Resumo

A presente comunicação tem por intenção analisar como foi reelaborada a memória farroupilha, a partir dos discursos radiofônicos, elaborados para as comemorações do sesquicentenário da Revolução Farroupilha em Porto Alegre. Para tanto, busco as fontes arquivadas no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS), do Fundo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Entre os inúmeros documentos, algo que me chamou a atenção foram as trinta e nove chamadas radiofônicas produzidas a mando do governo do Rio Grande do Sul, e distribuídas entre as principais emissoras de rádio do estado. Essa documentação se torna importante, para se compreender a necessidade que as sociedades têm, pelo trabalho de memória, da “presença dos mortos” na organização política da sociedade num presente específico. No caso analisado, especificamente, tratarei das comemorações da Revolução Farroupilha em 1985.

Palavras-chave: Rádio – Memória – Revolução Farroupilha.

 

INTRODUÇÃO

            Toda sociedade, sempre tem, e procura manter, o seu panteão de “heróis”.[2] Homens que fizeram parte de um suposto “passado heroico”, e que muitas vezes se tornaram “heróis” justamente pela mão de agentes sociais no presente que rebuscaram um passado, entendido como “adequado” para suas necessidades políticas e sociais. No caso da Revolução Farroupilha, essa teve a predileção das elites políticas e sociais, em tempos distintos para ser, uma espécie de reserva não só de memória, mas, de parte do seu produto, os “heróis”. Assim, pretendo dar continuidade à pesquisa referente à documentação aqui analisada, e que já rendeu outros trabalhos de pesquisa, – as chamadas de rádio de 1985.

            Se tratando de um trabalho de memória, sabe-se que esta, na verdade, ao invés de, estar nas brumas do passado, ao contrário, a mesma é uma prática do presente. Ou seja, necessita do presente para que possa se constituir enquanto memória de um passado, que justamente interessa aos sujeitos do tempo presente ao acontecimento, ou conjuntura que se torna fonte do pesquisador. Portanto, para esse trabalho busco o entendimento de memória no conceito de Ulpiano Bezerra de Menezes, que diz; que a memória acontece no presente para atender as reivindicações dos homens e das elites no presente. (MENEZES, 2000). Da mesma forma Jaques Le Goff, compreende a memória como:

 

(...) propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. (LE GOFF, 2003, p.419).

 

            Considerando a memória da Revolução Farroupilha, o ato de comemorá-la, busca um passado distante o suficiente para criar seus heróis, de forma que estes possam sofrer os revezes das representações com pouca contestação. Assim, aflora um panteão de “heróis” que acaba por trazer, novamente, os “mortos à casa dos vivos”. Para a ideia de questionar a forma como foi trabalhada essa presença do morto, busquei referencial em Michel de Certeau, quando o mesmo afirma em “A escrita da história” (2011), 

 

A escrita não fala do passado senão para enterrá-lo. Ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto, ela honra e elimina. Aqui a linguagem tem como função introduzir no dizer aquilo que não se faz mais. Ela exorciza a morte e a coloca no relato, que substitui pedagogicamente alguma coisa que o leitor deve crer e fazer. Esse processo se repete em muitas outras formas não científicas, desde o elogio fúnebre, na rua, até o enterro. Porém, diferente de outros “túmulos” artísticos ou sociais, a recondução do “morto” ou do passado, num lugar simbólico, articula-se, aqui, com o trabalho que visa criar, no presente, um lugar (passado ou futuro) a preencher, um “dever fazer”. (CERTEAU, 2011, p. 110).

 

            Portanto, rediscutir a maneira como, a elite política no governo, por meio da imprensa radiodifusora apresentou para a sociedade rio-grandense, seus vultos do passado, e compreender como eles fizeram uso de seus “mortos”, seja o passado enquanto tal ou o morto enquanto sujeito e objeto da memória. O trabalho de Certau dá lastro para a presente análise documental, quando estabelece que, a análise ou o uso de um determinado passado está sujeito à perspectiva de quem escreve. Então numa perspectiva da história cultural, podemos questionar a produção dessa documentação, estabelecendo outros paradigmas para o uso da memória da Revolução Farroupilha e de seus vultos. Dessa forma a análise de um trabalho de rememoração pode ter outras interpretações, pois de acordo com o historiador, a história:

 

(...) faz mortos para que os vivos existam. Mais exatamente, ela recebe os mortos, feitos por uma mudança social, a fim de que seja marcado o espaço aberto por esse passado e para que, no entanto, permaneça possível articular o que surge com o que desaparece. Nomear os ausentes da casa e introduzi-los na linguagem escriturária é liberar o apartamento para os vivos, através de um ato de comunicação, que combina a ausência dos vivos na linguagem com a ausência dos mortos na casa. Dessa maneira a sociedade se dá um presente graças a uma escrita histórica. (CERTEAU, 2011, p. 110).

 

            Deste modo, da forma que o autor explanou o uso da escrita da história, abre a possibilidade de se compreender que a memória e a história são objetos do seu tempo. Tempo em que são postas em prática pelos sujeitos sociais e seus interesses de grupo. Então, também para esse trabalho, torna-se pertinente uma reinterpretação daquele trabalho de memória desenvolvido via rádio no ano do sesquicentenário da Revolução Farroupilha.

 

  1. O “ETERNO” RETORNO DOS VULTOS

            No ano do sesquicentenário da Revolução Farroupilha, novamente aconteceu o retorno dos vultos farroupilhas e de seus feitos. Como já foi antecipado, não poderia ser diferente, afinal de contas toda comemoração está baseada em algo que um grupo entende como digno de ser rememorado. Mas também, esse passado tem que ter um sentido para reunir em seu entorno um grande público que acaba por “comprar” a ideia como se esse passado fosse natural a todo povo rio-grandense. O que acontece na verdade em 1985, é novamente uma retomada, uma rememoração, que acabou por dar, novamente, fôlego a memória da Revolução Farroupilha. Assim, passo à análise das chamadas radiofônicas para a compreensão dos leitores sobre a influência que pode ter tido o rádio na “distribuição” da memória farroupilha naquele momento. A primeira chamada dizia o seguinte:

 

Memória da Revolução Farroupilha.

A história é a memória coletiva e todo o povo que esquece seu passado, passa a repetir os mesmos fatos, experiências e caminhos, porque embora os tempos sejam diferentes, os seres humanos são iguais na sua essência.

O exército farroupilha que em seu apogeu chegou a 3.300 homens estava reduzido a mil combatentes. Este punhado de homens enfrentou o pacificador Caxias, com 12 mil soldados, até mil oitocentos e quarenta e cinco, em mais de 32 combates, sendo que nos de Ponche Verde os farroupilhas perderam cem homens, no de Batovi, mais de 80 e no de Porongos, 100. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).

           

            O locutor, dessas chamadas, embora não fosse o autor das mesmas, fazia na verdade a interlocução de um material que tinha seus agentes envolvidos com o aval dos órgãos do governo. Nas chamadas radiofônicas, foi possível identificar que as mesmas foram responsabilidade da Secretaria de Educação e Cultura, e organizadas pelo Departamento de Educação Especializada. No entanto, no mesmo fundo encontramos documentos que atestam a participação de intelectuais das principais universidades de Porto Alegre e da região, assim como dos professores de escolas particulares e principalmente das estaduais.[4] Uma pergunta que ainda não encontrei resposta, e que, portanto, é uma lacuna, é a seguinte: Como esses intelectuais agiram ou reagiram, à proposta abraçada pelas instituições a que pertenciam, visto que as mesmas se associaram ao governo do estado no trabalho de rememoração da Revolução Farroupilha?[5] Levanto essa questão, já que é perceptível na citação acima o mesmo retorno à narrativa factual, que pode levantar hipóteses sobre como era dirigido o trabalho de história, que seria narrada aos ouvintes naquele trabalho final de memória que se traduziam nas tais chamadas radiofônicas.

            Dando sequência a análise, foi perceptível que houve uma continuidade no retorno desses “mitos”, dando a impressão de uma “história que pouco muda”. É possível encontrarmos referências sobre o uso da memória no discurso de heroicidade dos farrapos, como segue abaixo:

 

Durante o desenrolar da Revolução Farroupilha aconteceu um fato que demonstra o patriotismo dos soldados farrapos. Rosas, ditador argentino, escreveu uma carta ao general Davi Canabarro oferecendo ajuda para combater os legalistas. A carta de Rosas dizia o seguinte: “Meus soldados estão prontos para cooperar com os valorosos rio-grandenses. A um aceno, cruzarão a fronteira e derrotarão os imperiais. Aceitais este auxílio, que vos dará a vitória?” A resposta de Canabarro: “Senhor, o primeiro de vossos homens que transpuser a fronteira fornecerá o sangue com que assinaremos a paz de Piratini com os imperiais, pois acima de nosso amor à República está o nosso brio de brasileiros. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).

 

            A citação acima, também foi usada nas rememorações do centenário da Revolução Farroupilha, para aquele momento, observou-se que a intenção dos intelectuais era provar a brasilidade dos gaúchos. Supostamente para o sesquicentenário, não seria diferente, no entanto, para além desse fim, o que importa para essa análise, é a heroicidade que essa narrativa faz de Davi Canabarro, representado como brasileiro obstinado que renuncia a república pela qual lutava na defesa contra a invasão estrangeira. Entretanto, para o momento de redemocratização da república brasileira, se pode perceber uma inconformidade com o discurso de Canabarro renunciando a república, voltando para o lado do governo imperial, tido por eles como opressor. Por outro lado, a narrativa sugere os interesses individuais de uma elite, não refletindo o interesse de todos os rio-grandenses.

            Liderando o panteão de “heróis” farrapos, no trabalho de memória sobre a Revolução Farroupilha, esteve à frente, o general Bento Gonçalves da Silva, logicamente por ser estancieiro, considerado um dos líderes da revolução, e por ter sido aclamado presidente da República Rio-Grandense. Novamente, em 1985, Bento Gonçalves seria aquela “personagem frequentada por tabela” [6], que reforça a ideia do que podemos chamar da necessidade da “presença do morto” na reconstrução da memória dos vivos na busca pela ancestralidade, que sabemos idealizada. Nas quatro chamadas radiofônicas encontradas narrando, especificamente, à trajetória de Bento Gonçalves, foi possível dar uma sequência a elas, para percebermos como foi representado Bento Gonçalves na sociedade rio-grandense cento e cinquenta anos depois.

 

Memórias da Revolução Farroupilha.

Bento Gonçalves pertencia a uma poderosa família. Seu pai, na década de 1770 promoveu a conquista do território entre os rios Jacuí e Camaquã, que pertencia à estância dos sete povos, recebendo sesmarias. Bento Gonçalves da Silva iniciou sua vida como tropeiro, voluntário do exército de Dom Diogo e foi nomeado Capitão de Guerrilhas. Participou de vários combates, chegando a posto de coronel no Exército Imperial e comandante geral da Guarda Nacional. Em 1814, se casou com Dona Caetana Garcia. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).

 

            Observa-se, que num primeiro momento, enfatiza-se a origem rural de Bento Gonçalves, ressaltando sua formação militar. Porém, essa memória no ano do sesquicentenário pode trazer aspectos controversos, se levarmos em conta que, o sesquicentenário da revolução coincidia com o fim, depois de vinte anos do tão impopular regime militar. Outro elemento que pode ser contraditório é o fato de no ano de 1985, o discurso da reforma agrária ganhava vulto nos mesmos noticiários que divulgavam as comemorações da Revolução Farroupilha.[7] Ao contrário, Bento Gonçalves era representado como um indivíduo que na busca por essa ancestralidade, poderia ser lembrado como pertencente a uma família que deu origem ao latifúndio no Rio-Grande do Sul no século XVIII. Também as narrativas procuravam trazer ao presente uma representação de um sujeito que pudesse ser “bem visto” independente de sua condição social conforme a narrativa idealizada:

 

Bento Gonçalves era um homem de estatura mediana para alta, esbelto e flexível. O cabelo crespo, de um castanho agrisalhado coroava-lhe a testa e invadia-lhe, em amplas suíças, o rosto cuidadosamente escanhoado. Simpático por natureza, tinha o sorriso fácil e as maneiras de um cavalheiro. Mas quem já o vira encolerizado, sabia-o capaz de enfrentar qualquer inimigo. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).

 

            A ideia de se buscar em um sujeito do passado uma ligação, para “provar” uma suposta continuidade com o presente, numa espécie de espelho que reflita às gerações de 1985, abria espaço para a construção daquilo que o grupo deseja mostrar. Claro, que nem um grupo que planeja se apropriar de um determinado acontecimento do passado e de seus “mortos”, vai fazer uma representação negativa daquele determinado passado. Antes, tal grupo representa a figura do “morto”, com adjetivos que estes desejam que a sociedade perceba, nos mesmos, e que também, essa sociedade se perceba como “herdeira do morto”, pela memória forjada deste no presente.

            Outro aspecto da ancestralidade, que valoriza a imagem do morto, e para além de seus “atos de heroísmo”, é a sua ligação com as questões que identifiquem esse com o lugar de origem comum com os supostos herdeiros. No caso de Bento Gonçalves, essa suposta ligação, foi ressaltada. Em uma das narrativas radiofônicas de 1985, que reproduziu o que seria a conversa que Bento Gonçalves teve com o Regente do Império do Brasil, Feijó:

 

Palavras do General Bento Gonçalves, mostrando o ânimo dos gaúchos diante da prepotência imperial: “Em nome do Rio-Grande eu lhe digo que nesta província extrema, não toleramos imposições e humilhações, nem insultos de qualquer espécie. O pampeiro dessas paragens tempera o sangue rio-grandense. Preferimos a morte em campo de batalha às humilhações nas salas blandiciosas do Paço do Rio de Janeiro. O Rio-Grande é a sentinela do Brasil e olha vigilante o Rio da Prata. Merece, pois, consideração e respeito”. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).

 

            Uma das particularidades da narrativa pode ser o potencial de representação que supostamente parece remeter mais ao presente, que intenciona representar um passado, mas, direcionado esse como crítica a situação da qual passava o Rio-grande do Sul no processo de redemocratização.[8] Dessa maneira, encontramos supostamente a pertinência do uso do passado – do morto – para as necessidades práticas do presente daqueles indivíduos.[9] O general Bento Gonçalves, foi o personagem mais citado nas chamadas no que chamo da representação do morto, como “herói” mais lembrado. Não por acaso, já que sendo ele a figura principal dos acontecimentos, o mesmo, em outras conjunturas sempre teve seu lugar de destaque no “panteão cívico” rio-grandense.

            Outra personagem que teve destaque individual nas chamadas radiofônicas, e que é importante para essa análise, foi Giusepe Garibaldi. E nesse sentido, para o uso da memória naquele determinado presente, não seria conveniente, visto a tentativa de levar as comemorações do sesquicentenário da Revolução Farroupilha do centro para as periferias do estado? E não era essa a proposta, que aparentemente pretendia unir os rio-grandenses novamente no entorno das comemorações em questão? No ano do sesquicentenário novamente apareceu o adjetivo de Garibaldi que sempre voltava – e ainda volta – a cada vinte de setembro: “heróis dos dois mundos”. As rádios em uma das suas locuções dariam uma breve biografia “heroica” de Garibaldi dizendo:

 

Memórias da Revolução Farroupilha.

(...) patriota revolucionário, italiano, nascido em Nice e denominado “herói dos dois mundos”. Entrando para a marinha da Sardenha aderiu, em mil oitocentos e trinta e três, ao movimento “Jovem Itália”, de Mazzini. Envolveu-se em uma conspiração que, descoberta um ano depois, obrigou-o a fugir para o Brasil. Bento Gonçalves da Silva, enquanto esteve preso na fortaleza de Lage, no Rio de Janeiro, entrou em contato com Garibaldi que viera visitar o italiano Zambecari. Em mil oitocentos e trinta e seis, já na Província, Garibaldi recebeu um comando farroupilha e, três anos mais tarde, conheceu Ana Ribeiro da Silva – Anita – com quem fugiu para Montevidél. Faleceu na Itália, em mil oitocentos e oitenta e dois.

Gaúcho!... vive com emoção as comemorações do sesquicentenário da Revolução Farroupilha. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).

 

            Percebe-se, lógico, que há uma relação com o indivíduo, no sentido da valorização do mesmo como aquele herói que pertenceu tanto ao Rio Grande, como a Itália, mas também sua ligação com italianos que estavam no Brasil. A presença do morto surgiu com Garibaldi como uma espécie de “monumento” pertencente aos “dois mundos”, mas estreitando sua relação com os brasileiros pela sua união com Anita. Para o passado se tornar memória precisa de uma ligação, no final da chamada o locutor sela essa intenção de memória quando convida os ouvintes a viverem as comemorações farroupilhas. Pode-se intuir que esse movimento do discurso é o que acabou por reforçar o “mito” de Garibaldi. Discurso esse se diga sempre um tanto apelativos, como o que segue abaixo:

Memória da Revolução Farroupilha.

José Garibaldi nunca esqueceu do Rio-Grande e da Itália. Ao responder uma carta de Domingos José de Almeida, recorda, assim, sua passagem por nossa terra: “Quando penso no Rio Grande, nessa bela e cara província, quando penso no carinho como fui recebido por vossas famílias, onde fui considerado um filho... Quando penso em vossos valorosos concidadãos e nos sublimes exemplos de amor pátrio e abnegação que deles recebi fico realmente comovido... Quantas vezes fui tentado a revelar ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa gente viril que sustentou por mais de nove anos a mais encarniçada luta contra um poderoso Império”.

Povo rio-grandense! Comemora com entusiasmo o sesquicentenário da Revolução Farroupilha. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).

 

            Novamente, a narrativa até seus ouvintes à representação de um sujeito que fez parte de um passado, estabelecendo a ligação com aquele presente. Isso no Rio Grande do Sul pode ter um significado interessante, pois rememorar Garibaldi poderia significar, mais do que uma ligação entre o Rio Grande e a Itália, num passado já distante, é criar um sentimento de pertença no presente com as colônias de italianos aqui radicados. Criando, portanto, uma espécie de amalgama que daria sentido e coesão entre os rio-grandenses naquele momento de 1985, principalmente quando a narrativa conclama o povo rio-grandense a se mobilizar para o evento.[10] Tal ligação adquiriu mais sentido ainda, quando as chamadas radiofônicas estabeleceram a ligação de Garibaldi com Anita, conforme segue a narrativa:

 

Anita Garibaldi – heroína brasileira, seu nome de família era Ana Ribeiro da Silva. Natural de Morrinhos, Santa Catarina, consorciou-se em Laguna, em mil oitocentos e trinta e cinco, com Manuel Duarte de Aguiar, de profissão sapateiro. Em mil oitocentos e trinta e nove, ao ser proclamada a República Juliana, aderiu ao movimento, unindo-se a Garibaldi. Acompanhou o guerrilheiro italiano ao Uruguai e, com ele, foi para a Itália. Formou no exército de patriotas que combateu pela independência de seu país adotivo e tomou parte na defesa de Roma contra a invasão franco-austríaca. Morreu no cerco de Roma antes de completar 30 anos. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).

 

            A ligação de Garibaldi com Anita teve para os grupos envolvidos com os problemas da memória uma função prática, como um elemento facilitador para a realização do trabalho de memória para os sujeitos interessados em rememorar esses acontecimentos. A final, a união de Anita com Garibaldi, para o trabalho de memória reforça o sentido de pertença dessa memória, não somente entre rio-grandense e descendentes de italianos, mas estende os tentáculos da memória até Santa Catarina, criando uma sensação de aproximação, num encurtamento do espaço, ao menos nos receptores do trabalho de memória realizado por estas narrativas que como salientei anteriormente, tinham o rádio como instrumento de alcance daquele trabalho de memória. Por outro lado a figura de Anita nas narrativas incluía a figura que simbolizava a mulher gaúcha – embora catarinense – e sua contribuição para a revolução farroupilha, como uma espécie de exemplo para o presente.[11]

            Não só o trabalho de memória ganhava alcance mais amplo, mas, também, o sentido de tais práticas trazerem a representação do “morto” no presente, no que Pollak chama de personagens frequentadas por tabela. E talvez, nada mais eficaz do que o rádio para a aproximação mental, ou “estreitamento do tempo”, pelo imaginário que a transmissão radiofônica provoca em seus ouvintes. Pois quando escutamos o rádio as imagens costumam aflorar na mente, onde cada indivíduo constrói para si, com os mesmo fatos e narrativas, as imagens e representações mentais da narrativa interpretada pelo locutor.

 

CONCLUSÃO

 

            A memória entrava na casa das pessoas via rádio, trabalhando as representações na construção do imaginário em torno da identidade de gaúcho, dessa forma pela comunicação, poderia se criar um canal de ligação. Tal canal de ligação teria as condições de impor mesmo que inconscientemente o trabalho de memória planejado e reestruturado pela elite gaúcha para o ano do sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Tais elementos de memória podem influenciar na criação mental e intelectual de um grupo, proporcionando o acendimento de sensações de resentimentos e ufanismos como bem observou a historiadora Sandra Pesavento afirmando que:

 

Lidar com sensibilidades é tarefa difícil, mas, sobretudo, instigante, pois não se trata de algo que se situe no domínio do explícito, mas das insinuações, dos silêncios, dos recursos metafóricos da linguagem, das dimensões implícitas do jogo social. (PESAVENTO, In: BRESCIANI; NAXARA, 2004, p. 221).

            De maneira semelhante, ao que a autora queria demonstrar no seu trabalho, o presente artigo analisou, os elementos que traduzem o trabalho de memória que por meio dos seus “mortos” acaba criando a sensação de ufanismo agregados aos resentimentos pela narrativa epopeica de seus “heróis” do passado. Pois o presente trabalho, quando se propôs a falar do papel dos mortos no trabalho de memória da elite de 1985, no Rio Grande do Sul, pretendia mesmo era compreender qual o sentido do uso dos “heróis”. Talvez, boa parte dessa resposta esteja na obra citada aqui, e a mesma servindo por isso para tal conclusão.

            Assim, usando o artigo de Sandra Pesavento, podemos dizer que, o uso dos mortos, para além do fato alegórico para a festa da rememoração, os mesmos têm que criarem sentido de nostalgia para seus receptores. Assim se compreende, porquê, um Domingos José de Almeida, pode ser um vulto da Revolução Farroupilha, mas de “segunda grandeza”, e suponha-se que somente um Bento Gonçalves, um Giusepe Garibaldi, ou uma Anita, ganharam o espaço que ganharam nas narrativas radiofônicas, porque não basta ser um vulto, tem que ser “herói”.

            Analisando o trabalho de Pesavento (2004), compreendemos que, para um morto “ter” capacidade de aglutinar ao entrono de suas memórias um considerável público que se identifique com o mesmo, não basta ser um vulto, tem que ser o vulto! Pois assim, para o ano de 1985, no contexto das comemorações farroupilhas, haveria a capacidade daquele trabalho de memória via rádio, supostamente potencializar ou mesmo ascender num vasto público os sentimentos de ufanismo e resentimento. E o fermento para isso seria as “belas” narrativas dos fatos “heroicos”, que admitem a criação dos mitos. E a Revolução Farroupilha, a cada vinte de setembro, ainda vem fazendo reascender os ufanismos e resentimentos, quase sem lugar para esquecimentos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FONTES

 

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – AHRGS.

 

Fundo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Caixa 02. Correspondência da Secretaria de Educação para o presidente da Comissão do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha Julho de 1985.

 

REFERÊNCIAS

 

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3. ed. – Rio de Janeiro; Forense, 2011.

 

GOLIN,Tau. A ideologia do gauchismo. 3ª ed. Porto Alegre, Tchê: 1983.

 

GONZAGA, Sergius. RS: cultura e ideologia. 2ª ed. Mercado Aberto. Porto Alegre, 1996.

 

MACIEL, Maria Eunice. Memória, Tradição e Tradicionalismo no Rio Grande do Sul. In: Bresciani; Naxara (organizadoras). Memória e (res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.

 

MENEZES, Ulpiano T. B. Educação e museus: sedução, riscos e ilusões. Porto Alegre: Faculdade Porto-alegrense de Educação, Ciências & Letras, jan/jun 2000. p.91-101; nº27.Memória.

 

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed., Campinas, São Paulo: 2003.

 

PESAVENTO, Sandra Jathay. Resentimento e Ufanismo: Sensibilidades do Sul Profundo. In: Bresciani; Naxara (organizadoras). Memória e (res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.

 

POLLAK, Michel. Identidade e Memória. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. Vol. 5, nº 10,1992. Disponível em: Acesso: 07/03/2012.

 

 

           

 

 

[1] Graduado em História pela Universidade Luterana do Brasil; Especialização em História do Rio Grande do Sul pela Universidade do Vele do Rio dos Sinos. Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor da rede pública do Estado do Rio Grande do Sul.

[2] De acordo co José Murilo de Carvalho: “Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu panteão cívico”. (CARVALHO, 1990, p. 55).

[3] Entendo que o uso do termo “morto” por Michel de Certeau, é utilizado em um sentido mais amplo, que compreende como sendo o morto, o próprio passado, enquanto objeto da memória que retorna ao presente, e que serve de ferramenta para a pesquisa de história. Porém no presente trabalho, penso que o termo “morto” serve ambas as perspectivas; de analisar o passado enquanto tal, mas também, o próprio discurso a respeito do morto enquanto vulto do passado e por isso objeto da história.

[4] Documentos que atestam a informação podem ser encontrados nas caixas 1 e 2, do Fundo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha. AHRGS.

[5] Quanto a esse assunto, cabe um estudo mais aprofundado, que se pretende também buscar. Apenas aqui, foi levantado o questionamento como forma de reflexão sobre a retomada da narrativa factual da Revolução Farroupilha.

[6] Sobre o conceito de “personagens frequentadas por tabela” consultar Michel Pollak – ver referências.

[7] O jornal Zero Hora, à época do sesquicentenário enfatizava as questões citadas acima quase que diariamente. Ver às edições pesquisadas no Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, para o ano de 1985.

[8] Esse discurso de “regionalidade” do Estado do Rio Grande do Sul, apareceu por parte do governo do estado nas páginas do Jornal Zero Hora, constantemente nas edições de setembro de 1985, que antecediam a culminância das festividades farroupilha no dia 20 de setembro. Fontes consultadas nas edições da Zero Hora do mês de setembro de 1985. Arquivadas no Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Pesquisa realizada no segundo semestre de 2015.

[9] De acordo com Sergius Gonzaga: “(...). O processo de transfiguração do gaúcho-pária em gaúcho-aristocrata, cheio de virtudes civis e militares, não foi instantâneo nem uniforme: durou várias décadas, encontrou muitas formulações e teve seu coroamento apenas no século XX, quando a oligarquia precisou aglutinar a seu projeto político as novas forças sociais existentes na província. (GONZAGA, 1996, p. 118).

[10] Para o ano de 1983, Tal Golin, afirma que: “A história do tradicionalismo rio-grandense está ligada ao Estado com a mesma naturalidade que o couro ao boi. O seu oficialismo decorre de sua natureza, nascido ao embalo dos braços do poder. Em muitos casos chega a ser a expressão cultural de órgãos ligados ao Estado. É totalmente impossível tentar ver o Tradicionalismo funcionalmente ativo sem a impulsão dos instrumentos de poder. Como no Rio Grande do Sul o aparelho do Estado jamais foi o resultado da luta política do povo, chega até ser pueril frisar, mais uma vez, que ele expressa o governo da classe dominante”. (GOLIN, 1983, p. 77).

[11]  Sobre a presença da figura feminina nas tradições gauchas busquei no trabalho de Maria Eunice Maciel, o ponto de vista da autora sobre a construção da mulher sobre o adjetivo de “prenda”. Segundo a autora, outro exemplo de construção: “(...) é a prenda, a mulher tradicionalista. Primeiramente constituído exclusivamente por homens (pois pretendiam recriar o galpão, que é um espaço masculino), aos poucos as mulheres começaram a participar do movimento, especialmente quando esse começou a realizar bailes ou apresentar danças folclóricas em eventos especiais.

Caso se procure um respaldo na história como garantia de autenticidade, tal como é feito no gauchismo em geral, a companheira dos gaúchos dos primeiros tempos de ocupação e povoamento do território, (...) eram as chinas. Porém como esse termo é usado no Rio Grande do Sul para designar a prostituta da campanha, ele foi logo descartado, pois as mulheres que participavam do movimento eram as irmãs, noivas e namoradas dos rapazes que o fundaram”. (MACIEL, In: BRESCIANI; NAXARA, 2004, p. 255).