VIDA MARAVILHOSA - O ACASO E A NATUREZA DA HISTÓRIA - STEPHEN JAY GOULD - RESENHA

Por Carlos Henrique de Oliveira Filipe | 09/09/2008 | Resumos

 

VIDA MARAVILHOSA – O ACASO NA EVOLUÇÃO

E A NATUREZA DA HISTÓRIA

STEPHEN JAY GOULD

RESENHA

Carlos Henrique de Oliveira Filipe

Carlos Henrique de Oliveira Fichfilipe@click21.com.br

2008

A obra divide-se em cinco capítulos:

Capítulo Um - A Iconografia de uma expectativa, subdividido em:

?gfgfjfhgghfyhfghhdfgysfsfgsdrtfysfsfgsdrtfUm prólogo ilustrado;A escada e o cone: iconografias do progresso;

Fazendo correr novamente a fita da vida: o experimento crucial;

Os significados de diversidade e disparidade.

Capítulo Dois - Algumas informações sobre Burgess Shale, subdividido em:

A vida antes de Burgess: a explosão cambriana e a origem dos animais;

A vida depois de Burgess: faunas de organismos de corpo mole como janelas para o passado;

O cenário de Burgess Shale:

- Onde

- Por quê: os meios da preservação

- Quem, quando: a história da descoberta

Capítulo Três - A reconstrução de Burgess Shale: rumo a uma nova concepção da vida, subdividido em:

Uma revolução silenciosa;

Uma metodologia de pesquisa;

A cronologia de uma transformação;

Taxonomia e o status dos filos;

A classificação e a anatomia dos artrópodes;

O drama de Burgess:

- Ato 1 - Marrella e Yohoia: o nascimento e a consolidação da desconfiança

- O universo conceitual com que Whittington se defrontou

- Marrella: primeiras dúvidas

- Yohoia: aumenta a suspeita

- Ato 2 - Firma-se um novo ponto de vista: homenagem a Opabinia

- Ato 3 - A revisão se amplia: o êxito de uma equipe de pesquisa, 1975-1978

- Estabelecendo uma estratégia para uma generalização

- Orientadores e estudantes

- A temporada de Conway Morris nos armários de Walcott: uma indicação transforma-se numa generalidade e a transformação se consolida

- Derek Briggs e os artrópodes bivalves: o fragmento final não tão brilhante mas igualmente necessário

- Ato 4 - Conclusão e codificação de um raciocínio: Naraoia e Aysheaia, 1977-1978

- Ato 5 - A maturação de um programa de pesquisa: a vida após Aysheaia, 1979 - Dia do Juízo Final (não existem respostas definitivas)

- A saga corrente dos artrópodes de Burgess

- Órfãos e especialistas

- Um presente de Santa Claws

- Prossegue o desfile das fantásticas maravilhas

- Wiwaxia

- Anomalocaris

- Coda

- Síntese do bestiário de Burgess Shale

- Disparidade seguida de dizimação: uma regra geral

- Avaliação das relações genealógicas entre os organismos de Burgess

- Burgess Shale como uma amostra representativa do Cambriano

- Predadores e presas: o universo funcional dos artrópodes de Burgess

- A ecologia da fauna de Burgess

- Burgess como uma fauna mundial primitiva

- Os dois grandes enigmas de Burgess Shale

- A origem da fauna de Burgess

- A dizimação da fauna de Burgess

Capítulo Quatro - A visão de Walcott e a natureza da história, subdividido em:

- A origem da adesão de Walcott ao cone da diversidade

- Uma nota biográfica

- A razão mundana para o fracasso de Walcott

- A base racional mais profunda para a calçadeira de Walcott

- O caráter de Walcott

- A visão geral de Walcott sobre a evolução e a história da vida

- A calçadeira de Burgess e a luta de Walcott com a explosão cambriana

- Burgess Shale e a natureza da história

- Uma defesa do elevado status da história natural

Capítulo Cinco - Mundos possíveis: o poder da "simples história", subdividido em:

- Uma história das alternativas

- Padrões gerais que ilustram a contingência

- O padrão Burgess de máxima proliferação inicial

- Extinção em massa

- Sete mundos possíveis

- A evolução da célula eucariótica

- A primeira fauna de animais multicelulares

- A primeira fauna da explosão cambriana

- A subseqüente origem cambriana da fauna moderna

- A origem dos vertebrados terrestrês

- Passando a tocha aos mamíferos

- A origem do Homo sapiens

- Um epílogo sobre Pikaia

A obra apresenta ainda:

- Prefácio e agradecimentos;

- Bibliografia

- Créditos.

CAPÍTULO UM - A ICONOGRAFIA DE UMA EXPECTATIVA

No Capítulo Um, na divisão "Um prólogo ilustrado", o autor nos apresenta Charles R. Knight, o mais célebre dentre os artistas que se dedicaram à reanimação de fósseis. Baseando seus panoramas nos animais de Burgess Shale, Knight cometeu uma série de erros, baseado no descobridor da fauna de Burgess Shale, Charles Doolittle Walcott (1909). Walcott, interpretando equivocadamente esses fósseis, os incluiu em alguns grupos modernos, considerando-os coletivamente como versões primitivas ou ancestrais de formas posteriores mais aperfeiçoadas.

Não houve qualquer contestação séria ate 1971, quando o professor Harry Whittington, na Universidade de Cambridge, publicou a primeira monografia de um amplo reexame, começando com as suposições de Walcott e terminando com uma interpretação radicalmente diferente não só da fauna de Burgess Shale, mas de toda a história da vida. Whittington e seus colaboradores demonstraram que a maioria dos organismos de Burgess não pertence a grupos conhecidos, provavelmente excedendo, em diversidade anatômica todo o espectro da fauna invertebrada existente nos oceanos modernos.

Cerca de vinte espécies não podem ser associadas a nenhum grupo conhecido, devendo ser classificados como filos distintos. Incluindo representantes primitivos de todos os quatro grandes grupos de artrópodes (Trilobita, Crustácea, Chelicerata e Uniramia), Burgess Shale também apresenta cerca de vinte a trinta espécies de artrópodes que não podem ser colocados em nenhum grupo moderno. Comparativamente, a nova interpretação apresenta-nos modificações importantes daquela feita por Walcott:

a) Sydneyia, o maior dos artrópodes de Burgess conhecidos por Walcott, considerado por ele como um ancestral dos quelicerados, teve seu lugar ocupado por Anomalocaris, o terror dos mares cambrianos, um dos "inclassificáveis" de Burgess Shale;

b) Knight reconstituiu cada animal como um membro de um grupo conhecido. A versão moderna apresenta fatos singulares;

c) As criaturas de Knight seguem a convenção do "reino pacífico". Estão todas relacionadas, mas sem interação. A versão moderna retrata as relações ecológicas comportamentais, tais como animais se enterrando no lodo e aspectos de predação;

d) O que foi representado por Knight como animais era, na verdade, partes do corpo do Anomalocaris.

Na divisão "A escada e o cone: iconografias do passado", o autor debate, basicamente, três assuntos: a iconografia, a evolução e a chamada "árvore da vida". Gould argumenta que não há nada melhor do quer uma máxima habilmente construída para inspirar ortodoxia e unanimidade de ação. Ressalta ainda que a iconografia da persuasão, mais do que palavras, penetra profundamente no âmago de nosso ser.As iconografias mais conhecidas da evolução estão todas direcionadas no sentido de afirmar uma superioridade humana. Cita como exemplo Regular Gradation in Man, do médico britânico Charles White. Nesse trabalho, White inclui toda a diversidade dos vertebrados numa única seqüência heterogênea, das aves até os crocodilos e pelos primatas mais próximos do homem, passando pela escada racista convencional de grupos humanos até atingir a perfeição do homem branco (europeu).

Outro exemplo é a ilustração de Henry Fairfield Osborn, explicando o crescimento linear da capacidade cognitiva. Partindo do menor cérebro até o maior, temos o Chimpanzé, seguido do Trinil (Pithecanthropus), Piltdown, Neardenthal e o Homo sapiens. Os erros verificados foram os seguintes:

a) Os chimpanzés não são nossos ancestrais:

b) O Pithecanthropus (Homo erectus) é um possível ancestral e o único membro legitimo da seqüência;

c) O Homem de Piltdown é uma fraude, produzida com um crânio humano e uma mandíbula de macaco;

d) O Homem de Neardenthal foi provavelmente primo próximo pertencente a uma espécie distinta, e não nosso ancestral. Detalhe: ele tinha um cérebro tão grande como o nosso ou ainda maior.

A seguir, o autor nos apresenta dois erros no uso da iconografia para explicar a escada do progresso, o segundo dos quais nos ajuda a compreender os equívocos da interpretação dos fósseis de Burgess Shale. O primeiro erro, chamado de "pequena piada da vida", é provocado pela tentativa de extrair uma única linha de desenvolvimento a partir de uma miríade de ramificações. Nesse contexto, analisa a progressão evolutiva dos cavalos. Não duvida que uma ininterrupta cadeia evolutiva ligue o Hyracotihenium (antigo Eohippus) ao moderno Equus. Mas essa seqüência não é uma escada ou mesmo uma linhagem central. É apenas um caminho labiríntico entre milhares de outros existentes num arbusto complexo. Os cavalos tornaram-se exemplos clássicos de evolução progressiva porque o arbusto ao qual eles pertencem foi extremamente mal sucedido. O Equus é o único galho que restou.

No segundo erro, pode-se abandonar a idéia da escada e ainda assim representar a árvore da vida de modo a corroborar nossa expectativa de um progresso previsível. Citando a árvore da vida, sabe-se que a origem de qualquer grupo taxonômico bem definido remonta a um único ancestral comum, o tronco dessa arvore. Todos os ramos de uma árvore ou morrem ou continuam a se separar, e tal separação é definitiva. Tal árvore não é estática, não apresenta apenas um tipo de crescimento. Pode-se expandir com rapidez até atingir sua largura máxima, e a partir dai se afunilar de modo contínuo. Pode também se diversificar depressa e conservar sua largura máxima, através de um equilíbrio contínuo de inovação e morte, ou ainda ramificar-se desordenadamente. A iconografia convencional agarrou-se ao modelo principal, o "cone da diversidade crescente" ou árvore de natal de cabeça para baixo. Como exemplo, o autor cita a evolução dos celomados, apresentando uma origem ordenada de tudo a partir de um único platelminto, com poucas divisões nos ramos, nenhuma extinção e diversificação comum a todos, com surgimento de vários subgrupos. Apresenta ainda mais seis cones extraídos de manuais modernos e populares (três exemplos abstratos e três exemplos concretos). Todos seguem o mesmo padrão, com os ramos crescendo para cima e para fora, com divisões de tempos em tempos. Se linhagens antigas morrem, outras que surgem ocupam esse espaço. A evolução se dá como se a árvore crescesse funil acima, sempre em expansão. Interpretando de maneira convencional, combina a diversidade na dimensão horizontal e a idade em termos geológicos, nos quais os organismos no gargalo do funil são antigos e os da borda são mais recentes. Interpretamos também o deslocamento para cima como indo do simples para o complexo, do primitivo para o avançado.

O autor declara que o apego às falsas iconografias da escada e do cone é resultado do desejo do homem no sentido de haver um universo com um significado intrínseco definido segundo nossos próprios termos. Ressalta ainda que, tendo a Terra milhões de anos e que o homem surgiu no ultimo segundo do ano geológico, a vida de modo algum poderia existir para nós ou por nossa causa. Talvez o homem seja apenas uma idéia tardia, uma espécie de acidente cósmico, uma quinquilharia pendurada na árvore de natal da evolução. Define ainda a continuada adesão às iconografias manifestadamente falsas da escada e do cone como uma desesperada tentativa de impedir a derrocada de nossas esperanças e de nossa arrogância cósmica.

Na divisão "Fazendo correr novamente a fita da vida: o experimento crucial", Gould nos mostra o uso da iconografia na interpretação da fauna de Burgess Shale por Walcott. Para Walcott, como os animais de Burgess surgiram num momento tão próximo da origem da vida multicelular, teriam que estar na parte mais estreita do gargalo do funil, não apresentando mais que uma diversidade limitada e uma simplicidade anatômica elementar. Dessa forma, Walcott interpretou todos os animais de Burgess como membros primitivos de um ramo proeminente da futura árvore da vida, classificando-os como animais primitivos dentro de um grupo moderno ou como formas ancestrais, que, à medida que progrediam, poderiam se transformar em algum organismo bem conhecido existente nos oceanos modernos.

Em seguida, o autor nos mostra o trabalho de Whittington e seus colaboradores, invertendo o cone e reconhecendo a existência de tantas características anatômicas singulares entre os fosseis de Burgess. Após a diversificação inicial dos animais multicelulares, a posterior história da vida teve seguimento através de um processo de eliminação e não de expansão. Declara ainda que, a despeito da possibilidade de o nosso planeta possuir mais espécies do que jamais teve, a maior parte delas são variações em torno de uns poucos designs básicos originais. A amplitude máxima das possibilidades anatômicas se deu com o primeiro ímpeto de diversificação. Depois há uma redução do numero de espécies, à medida que fracassa a maior parte dos experimentos iniciais e surgem infinitas variações dos modelos sobreviventes. Embora só um pequeno número de espécies de Burgess tenha escapado da extinção, os sobreviventes triunfaram por serem mais complexos anatomicamente e por terem maior capacidade competitiva. Em seguida, Gould nos apresenta outras hipóteses para o padrão de eliminação de Burgess. Pode ter acontecido que os "vencedores" tenham sobrevivido por acaso. Ou talvez ocorram breves períodos de extinção em massa provocados por catástrofes ambientais imprevisíveis, tais como impactos de corpos extraterrestres.

A partir desse ponto, o autor nos leva a uma "viagem" até um determinado tempo e lugar no passado. Tal experimento teórico tem o objetivo de nos fazer decidir entre a interpretação convencional da extinção e sua interpretação pessoal. Nesse experimento, volta-se a fita da vida até o momento adequado, apagando tudo o que já aconteceu. Essa volta nos levaria até o momento adequado, apagando tudo o que já aconteceu. Essa volta nos levaria até os mares de Burgess Shale. Aí dispara a fita e se observa se as repetições se parecem com o original, se um replay for bastante parecido com o verdadeiro caminho que a vida seguiu. Mas se os replays apresentarem resultados bastante razoáveis e sensatos, mas notavelmente diferentes, antão a historia será radicalmente diferente. Rejeitando a escada e o cone, que não apresenta a fita da vida, o autor nos apresenta o acaso. Mas se a escada e o cone são iconografias limitantes da historia da vida, a idéia da dicotomia também restringe o nosso pensamento, pois essa também tem sua pobre e infeliz iconografia apresentado-nos os pólos opostos, o determinismo e o acaso. Ai surge uma terceira alternativa, a contingência, a existência própria e não a titulação do determinismo pelo acaso.

Na divisão "Os significados de diversidade e disparidade", o autor nos apresenta uma distinção entre esses termos. A diversidade empregada pelos biologos tem vários sentidos técnicos diferentes. Podem referir-se à diversidade como o número de espécies distintas em um grupo. Como exemplo, usa-se a diversidade de roedores (mais de 1500 sp.) e a de eqüinos (não chegam a 10 sp.). Mas usa-se o termo diversidade como o sentido de diferença entre traçados anatômicos dos organismos. Outro exemplo usado: três ratos de espécies diferentes compõem uma fauna menos diversificada que a formada por um elefante, um peixe e uma formiga, mesmo que os grupos tenham o mesmo número de espécies. Segundo o autor, a revisão da fauna de Burgess Shale baseia-se na disparidade entre os traçados anatômicos. A diversidade de Burgess não é alta, se levarmos em conta o número de espécies. Eis ai o paradoxo: Como foi que possível tamanha disparidade entre traçados anatômicos evoluiu da aparente ausência de uma diversidade significativa em termos de números de espécies? O autor concluiu que, analisando esse fato pela iconografia do cone, as duas situações são correlatas.

O autor fala ainda de dizimação, nesse capitulo especificamente, como redução do numero de designs anatômicos. Discute ainda a esteriotipação das formas de vida atuais. Aí se apresenta a principal diferença em relação ao mundo dos tempos de Burgess. Hoje, aproximadamente 80% de todas as espécies animais descritas são artrópodes. A concentração da maioria das espécies em poucos planos anatômicos é uma característica fundamental das atuais formas de vida. Empregando o termo diversidade para definir numero de espécies e disparidade para diferença entre traçados, temos ai um fato fundamental e surpreendente da historia da vida, uma acentuada diminuição da disparidade seguida de um notável aumento de diversidade entre os poucos designs sobreviventes.

CAPÍTULO DOIS - ALGUMAS INFORMAÇÕES SOBRE BURGESS SHALE

No Capitulo Dois, na divisão "A vida antes de Burgess: a explosão cambriana e a origem dos animais", o autor nos fala sobre a escala de tempo geológico. A história da vida não se desenvolveu de maneira continua. Foi interrompida por breves episódios de extinção em massa seguidos de diversificação. Esses episódios se refletem na escala de tempo geológico, pois os fosseis constituem o principal critério para estabelecer a ordem temporal das rochas. As divisões da escala de tempo são determinadas por esses acontecimentos de extinção em massa e as diversificações deixam fortes marcas no registro fóssil.

O autor nos apresenta a escala de tempo geológico, com suas divisões em eras, períodos e épocas, ressaltando que as eras assinalam os acontecimentos mais importantes. Destaca, a partir desse ponto, os acontecimentos mais importantes que aconteceram no planeta, tais como a extinção em massa ocorrida no final do Cretáceo (a cerca de 65 Ma), que extinguiu os dinossauros e permitiu a evolução dos grandes mamíferos; a maior extinção já registrada, entre as eras Paleozóica e Mesozóica (225 Ma), que eliminou até 96% das espécies marinhas; e o terceiro e mais antigo dos limites, entre o Pré-Cambriano e o Paleozóico (cerca de 570 Ma).

Este evento assinala um acontecimento diferente e enigmático. Aconteceu talvez, nesse período, uma extinção em massa, o mais enigmático e intenso processo de diversificação, a "Explosão Cambriana" (surgimento, no registro fóssil, de animais multicelulares com partes duras). A Fauna de Burgess Shale registra um momento logo depois da explosão cambriana (cerca de 530 Ma), antes que a extinção fosse mais severa, assegurando a visão de todo o processo de diversificação. Como é a única grande fauna de organismos de corpo mole dessa época, Burgess Shale nos apresenta um panorama inigualável do inicio da vida moderna em toda sua plenitude.

O autor nos lembra de dois clássicos enigmas da explosão cambriana. A Terra tem 4,5 bilhões de anos, e a vida multicelular com designmoderno ocupa pouco mais de 10% da idade do planeta. Porque a vida multicelular apareceu tão rapidamente? Porque o registro fóssil do Pré-Cambriano não apresenta precursores diretos e mais simples dessas criaturas anatomicamente complexas?

As respostas a essas perguntas hoje ainda são bastante difíceis, mesmo com o rico registro da vida pré-cambriana pós-1950. Mas em 1909, quando da descoberta de Burgess Shale, eram inabordáveis. Na época de Walcott não havia sido encontrado nenhum fóssil documentado anterior à explosão cambriana. Toda descoberta de animais pré-cambrianos não resistiram a exames mais minunciosos. Na visão dos anti-evolucionistas, como Roderick Impey Murchison, a explosão cambriana era o momento da divina criação, com uma perfeita adaptação dos animais ao meio circundante. Já Charles Darwin, admitia um registro pré-cambriano rico em precursores. Usou seu argumento clássico de que o registro fóssil é tão imperfeito que não dispomos de evidências para a maioria dos eventos da história da vida, mas seu argumento poderia explicar a falta de um estágio numa determinada linhagem, mas de todas as criaturas? Para Darwin, a problemática continuava insolúvel. Mas as recentes descobertas não corresponderam a sua previsão de um contínuo aumento de complexidade à medida que a vida se aproximava do Cambriano. O problema da explosão Cambriana permanece tão refratário como antes, já que agora a confusão é causada mais pelo conhecimento do que pela ignorância.

Houve uma diferenciação no começo da história da Terra, pelo calor gerado pelo impacto dos corpos celestes e desintegração radioativa de isótopos de vida curta. As rochas sedimentares das séries Isua, no oeste da Groelândia mais antigas (3,75 Ba) registram o esfriamento e estabilização da crosta terrestre. Apesar de por demais metamorfizadas para preservar remanescentes morfológicos de criaturas vivas (embora Schidlowski (1988) tenha afirmado que esse velho potencial de evidências conserva uma assinatura química de atividade orgânica), as rochas Isua apresentam os valores aumentados de C 12 que surgem como resultado de atividade orgânica. Nos sedimentos não metamorfizados mais antigos da Terra (3,5 - 3,6 Ba) foram encontrados tanto estromatólitos como células propriamente ditas.

O autor frisa que embora um começo assim tão simples pudesse ter agradado a Darwin, a história ulterior da vida pré- Cambriana depõe vigorosamente contra a sua idéia de que tenha havido um longo e gradual aumento de complexidade que culminou na explosão Cambriana. Nos 2,4 Ba que se seguiram aos sedimentos de Isua, os únicos organismos eram os procariontes. Embora os surgimento de células eucarióticas (1,4 Ba) assinale um grande aumento da complexidade da vida, os animais multicelulares só surgiram muito tempo depois. A seguir, o autor nos apresenta a fauna de Ediacara. Ediacara contém uma fauna de animais multicelulares anteriores a explosão Cambriana, no entanto, essa fauna não contribui para confirmar as expectativas de Darwin. Em primeiro lugar a fauna de Ediacara é pouco anterior ao Pré-Cambriano, apresentando animais encontrados exclusivamente em rochas pouco anteriores a explosão cambriana, com não mais de 700 Ma. Em segundo lugar, teoricamente esses animais podem representar um experimento independente e fracassado da vida multicelular. O autor sugere ainda que os animais de Ediacara seriam ancestrais dos organismos da explosão Cambriana. Pois além de terem corpos moles não estão confinados a um ambiente específico. Representam uma fauna espalhada pelo mundo todo. O autor ainda pergunta: se os verdadeiros ancestrais das criaturas do cambriano não tinham partes duras, por que não os encontramos nos depósitos da fauna de Ediacara?

O autor em seguida nos apresenta 3 faunas radicalmente diferentes: as criaturas de Ediacara, grandes, com corpos moles e achatados; a fauna Tommotiana, a primeira fauna de organismos com partes duras (a "pequena fauna conchosa"); a fauna moderna, culminando em Burgess com o limite máximo da diversidade anatômica.

Na divisão "A vida depois de Burgess: fauna de organismos de corpo mole como janelas para o passado", o autor inicialmente nos fala sobre a dificuldade de preservação de partes moles e o valor das faunas de organismos de corpos moles (Lagerstätten). Embora raras, sua contribuição para o conhecimento da história da vida é desproporcionalmente alto. A seguir, nos fala sobre as condições prévias para preservação das faunas de corpo mole: rápido sepultamento dos fósseis em sedimentos não agitados; deposição num ambiente isento dos agentes normalmente responsáveis por sua destruição imediata (essencialmente O2) e outros fatores que promovem a deterioração, e o mínimo despedaçamento resultante de danos causados por calor, pressão e erosão. O autor destaca Burgess como uma chave para a compreensão da história da vida por comparação com os padrões de disparidade notavelmente diferentes encontrados em outros Lagerstätten. A seguir nos apresenta duas questões: será que Burgess representa o que acontecia normalmente no passado e não uma característica especial da vida logo após a explosão cambriana? Será que todas as faunas igualmente bem preservadas apresentam uma amplitude semelhante de designs anatômicos? Gould afirma que a resposta básica é ambígua: a disparidade anatômica de Burgess é uma característica exclusiva da primeira explosão de vida multicelular, e nada se aproxima dessa variedade. A partir de Burgess há uma rápida estabilização dos seres vivos que sobrevivem ao processo de dizimação. A boa preservação, segundo o autor, permite identificar um aspecto importante da explosão Cambriana: quase todos os filos modernos apareceram pela primeira vez num momento geológico próximo ao início do Cambriano, juntamente com um conjunto ainda maior de experimentos anatômicos que não deram certo. Nenhum novo filo foi criado, apenas modificações nos já estabelecidos. E a seguir novas indagações: o que desencadeou a produção de designs em Burgess? O que a interrompeu tão rapidamente? O que, se é que algo o fez, favoreceu o pequeno número de designs sobreviventes em relação às outras possibilidades que floresceram em Burgess? O que este padrão de dizimação e estabilização está tentando nos dizer a respeito da evolução da história da vida?

Na divisão "O cenário de Burgess Shale - onde", o autor nos conta a morte da esposa de C. D. Walcott em 1911 e a longa viagem de sua filha pela Europa. Numa carta endereçada a seu irmão Stuart, Helen, filha de Walcott, elogia a beleza da Europa, mas deixa claro que prefere Burgess, onde esteve em 1909 e 1910. A seguir o autor nos faz uma descrição acurada sobre Burgess (posição geográfica, paisagens, acessos). Gould nos apresenta ainda a descrição dos métodos de Walcott tanto em Burgess como no Monte Stephen (1908). Também comenta sobre a nomenclatura dos espécimes de Burgess (Walcott "batizou" seus fósseis com nome de picos e lagos locais).

Na divisão "O cenário de Burgess Shale - Por quê: os meios de preservação", Gould nos relata que Walcott encontrou quase todos os seus espécimes aproveitáveis numa camada de folhelho, com 2,1 a 2,4 m de espessura, chamado por ele de "Leito Filópode". Aí tem início a série de enganos cometidos por Walcott. Filópode é o antigo nome de um grupo de crustáceos marinhos com fileiras de brânquias foliáceas num prolongamento de suas pernas. Marrella é o mais comum dos organismos de Burgess. Em suas anotações, Walcott se referiu a Marrella como "caranguejo rendado". Posteriormente verificou-se que Marrella não é caranguejo e muito menos filópode, mas sim, um artrópode taxonomicamente singular de Burgess. Nesse nível os fósseis são encontrados em um afloramento com menos de 60m de comprimento, na superfície da pedreira. Desde a época de Walcott coletam-se fósseis de organismos moles de outros níveis estratigráficos na mesma área, mas nada se assemelha a diversidade do leito filópode, e a grande maioria das espécies de Burgess é proveniente da camada original de Walcott. Pesquisas recentes explicam como uma pedreira da Colúmbia Britânica abriga uma disparidade anatômica maior que todos os mares do mundo moderno. Os animais de Burgess provavelmente viveram sobre bancos de lama formados ao longo da base de um paredão maciço e quase vertical, chamado Talude Catedral (recife constituído por algas calcárias - os corais formadores de recife ainda não tinham evoluído). Eram habitats de águas moderadamente rasas, iluminação adequada e bem areada com faunas altamente diversificadas. Gould, nesse ponto nos apresenta as dificuldades. Esse habitat pode estipular o desenvolvimento de uma fauna diversificada, e este mesmo habitat também promove uma rápida atuação de animais que se alimentam de cadáveres, além de estimular o processo de decomposição. Para serem preservados os animais teriam que ser removidos para outro lugar, como depressões adjacentes estagnadas, desprovidas de oxigênio. Apresenta-se ai os fatores para superar as dificuldades da preservação: deslocamento de uma fauna de um ambiente não favorável para outro favorável a preservação num rápido soterramento no ambiente anóxico. A distribuição exata dos fósseis confirma a preservação graças a um deslizamento de lama localizada. Outras características apresentadas pelos fósseis confirmam esta idéia: poucas espécies com sinais de deteriorização, nenhum rastro, pista ou vestígio de atividade orgânica foi encontrado, o queconfirma um rápido soterramento.

Na divisão "Quem, quando: história da descoberta", Gould nos conta as duas versões da descoberta dos fósseis de Burgess. A lenda nos conta que o cavalo da senhora Walcott escorregou ao descer a trilha e virou uma laje. Nessa laje estavam crustáceos do Cambriano Médio totalmentedesconhecido. Como a neve havia começado tiveram que aguardar a próxima temporada de coleta para recomeçarem a trabalhar. Interessante, mas totalmente falsa.

A verdade é que Walcott encontrou seu primeiro fóssil em 30 ou 31 de agosto de 1909. Na formação Stephen (unidade maior que inclui Burgess) foram descritos, em 31 de agosto, 3 gêneros: Marrela, Waptia e Naraoia.

Em primeiro de setembro Walcott anotou em seu diário : "continuamos coletando. Encontrado um magnífico grupo de esponjas numa escarpa (in situ)". No dia 2 , descobriu que a suposta carapaça de um ostracode tinha, na verdade, abrigado o corpo mole de um filópode. Em 3 de setembro, foi encontrado um belo lote de crustáceos filópodes. Prossegui-se a coleta até o dia 07/09/09, o último dia da temporada.

O autor sugere que a versão da semana de procura em 1910 até ser encontrado o leito principal é falsa. O diário de Walcott confirma a idéia de Gould. A seguir, nos relata as atividades de Walcott naquela temporada, como coleta e medição de seção.

Walcott voltou sempre durante o mês de setembro , entre 1910 e 1913. Em 1917, aos 67 anos , fez um período final de coleta. Foram levados, ao todo, cerca de 8.000 espécimes para Washington D. C. e hoje se encontram no Museu nacional de História Natural do Instituto Smithsomiano, a maior coleção de fósseis dos Estados Unidos.

Gould explica que Walcott jamais conseguiu tempo para estudar e publicar os elementos essenciais de um estudo adequado de fósseis de Burgess. Walcott chegou a publicar diversos trabalhos "preliminares" sobre fósseis, mais para exercer seu direito sob as denominações taxonômicas.

O autor nos apresenta nesse momento, Percy Raymond, professor de Paleontologia de Harvard. Raymond, juntamente com 3 alunos, reabriu a velha pedreira, além de explodir outra pequena próxima ao sítio de coleta de Walcott. Raymond encontrou poucas espécimes novas. Gould nos diz que os espécimes coletados por Walcott e Raymond serviriam de base para todos os estudos sobre Burgess até a revisão feita por Whittington, no final da década de 60. Ressalta que nenhum estudo publicado até a revisão sequer sugeriu uma interpretação diferente do ponto de vista de Walcott, segundo o qual os organismos de Burgess poderiam ser acomodados dentro dos limites taxonômicos dos filos modernos.

A seguir Gould nos fala sobre sua primeira visita a Burgess e a sua decepção com sua superficialidade de Walcott quanto a descrição dos fósseis. O interessante é que o trabalho que sugeriu a revisão das teses teve raízes modestas. O serviço de levantamento geológico do Canadá, no decorreer de um grande programa de mapeamento, trabalhava nas proximidades de Burgess, em meados da década de 60. Whittington foi indicado como Paleontólogo-Chefe porque era um dos maiores especialistas em artrópodes fósseis. Em 1966 e 1967 Whittington e J. D. Aitken, geólogo, trabalharam nas pedreiras de Walcott e Raymond, ampliando a escavação e extraindo cerca de 72m3de rocha.

Dês Collins (Museu Real de Ontário) organizou em 1975 uma expedição para coleta nas vertentes formadas por fragmentos de rochas em torno de ambas as pedreiras. Mesmo sem permissão para utilizar explosivos ou efetuar escavações, Dês Collins encontrou muito material precioso. Em 1981 e 1982 explorou as áreas circunjacentes, encontrando mais de uma dúzia de sítios com fósseis de organismos de corpos moles em rochas de idades aproximadas de Burgess, em riqueza. Foram descobertos espécimes importantes como Sanctacaris, o primeiro artrópode quelicerado. Sugere ainda que, se o leito filópode de Walcott foi produzido quando uma corrente lodosa provocou um deslizamento de lama, então outros deslizamentos devem ter ocorrido mais ou menos numa época e outros Lagerstätten devem existir em abundância.

A seguir, é relatados o relacionamento do autor com outros paleontólogos, como Bill Schevill, o último sobrevivente da expedição de Raymond, e G. Evelyn Hutchinson, seu guru intelectual. Confessando seu fascínio por Burgess, agradece a todos que conseguiram inspirar a excitação pela profissão.

CAPÍTULO TRÊS - A RECONSTRUÇÃO DE BURGESS SHALE:

RUMO A UMA NOVA CONCEPÇÃO DA VIDA

No Capitulo Três, na divisão "Uma revolução silenciosa", o autor nos questiona sobre as nuances da transformação, já que algumas são patentes e heróicas, outras tranqüilas e silenciosas, embora apresentem resultados não menos significativos. Frisa que a nova interpretação dos fosseis de Burgess está entre as transformações invisíveis por duas razoes fundamentais e que sua capacidade de alterar nossa concepção da vida não pode ser igualada por nenhuma outra descoberta paleontológica. Em primeiro lugar, a revisão de Burgess é um drama intelectual. A nova concepção apresentada de forma hesitante no inicio, foi apresentada numa serie de monografias anatômicas e taxonômicas altamente técnicas no mais antigo periódico cientifico em língua inglesa. Segundo, toda a concepção convencional da descoberta cientifica foi violada pela revisão feita por Whittington. Apesar de Whittington ter descoberto algumas espécies novas, a revisão foi feita basicamente em reexame de espécimes conservados no Museu em Washington. Vale destacar o trabalho de Conway Morris, que já havia captado a idéia central relativa à disparidade dos organismos de Burgess. Nesse ponto, Gould faz uma observação importante: talvez por falta de tempo e ferramentas, Walcott não fez observações importantes. Tudo que Whittington fez foi enxergar melhor e mais longe do que Walcott.

Em seguida Gould nos apresenta sua dificuldade em relatar a revisão de Burgess Shale, e sua opção pela seqüência cronológica dos acontecimentos. Visitou a todos, embora tenha passado vários anos com essas mesmas pessoas discutindo justamente Burgess Shale.Alem desse procedimento, optou também por trabalhar com material publicado, lendo as monografias técnicas seguindo também uma seqüência cronológica, concentrando-se nos trabalhos originais de descrição anatômica, começando com a primeira monografia de Whittington (Marrella, 1971) e terminando com os trabalhos de Whittington e Briggs (Anomalocaris, 1985), Conway Morris (Wiwaxia, 1985) e Briggs e Collins (Sanctacaris, 1988). Destaca ainda o trabalho de três pessoas: Harry Whittington, iniciador do projeto, e seus auxiliares, Simon Conway Morris e Derek Briggs, além de Chris Hughes e David Brutton.

Na divisão "Uma metodologia de Pesquisa", Gould nos explica que uma concepção comum e equivocada afirma que fosseis de organismos de corpo mole geralmente são preservados na forma de uma fina camada de carbono sobre a superfície da rocha. Os organismos de Burgess foram fortemente comprimidos. Esse tipo de compressão não permite a apresentação de sua estrutura tridimensional. Mas os organismos de Burgess nem sempre são completamente achatados, servindo de base para Whittington revelar a estrutura desses organismos. Gould ai nos explica que as partes moles dos organismos de Burgess não foram preservadas na forma de carbono, mas sim por silicatos de cálcio e de alumínio, graças a um processo químico ainda desconhecido. Explica ainda que Walcott ignorou a preservação da estrutura tridimensional, procurando entre seus espécimes aqueles preservados em posição mais esclarecedora, deitados de lado e achatados no sentido de um plano paralelo ao eixo do comprimento. Ignorou os espécimes em posição obliqua ou dorsal.

Ao contrario de Walcott, que utilizou basicamente a fotografia para ilustrar seus espécimes, Whittington utilizou o desenho para fazer o mesmo, utilizando para isso a câmara lúcida, um conjunto de espelhos que projeta a imagem do objeto sobre uma superfície plana. A seguir, Gould nos relata a utilidade desse procedimento na descrição de um espécime, Sidneyia inexpectans, o maior dos artrópodes de Burgess, desde o desgaste e dissecação do fóssil, posições peculiares até a parte e contraparte. Essas três etapas fornecem indicações que orientam a reconstituição tridimensional de fosseis achatados e distorcidos. É importante frisar que algumas das maiores descobertas de Burgess nos últimos 20 anos ocorreram no Instituto Smithsoniano, quando uma contraparte de Walcott, às vezes não catalogada ou até mesmo classificada num filo distante, era reconhecida e reunida à parte correspondente. Outro aspecto interessante é que poucos sinais de atividades orgânicas foram preservados, já que foram arrastados e sepultados longe de seu sitio original.

Na divisão "A cronologia de uma transformação", Gould nos relata o caminho tomado pelos cientistas após uma descoberta tão importante como Burgess Shale. Cita tarefas básicas - cenário geológico (idade, ambiente, geografia), forma de preservação, inventario do conteúdo, descrição anatômica e arranjo taxonômico -, finalizando com a monografia. Frisa que as melhores monografias são trabalhos geniais que podem transformar o modo como encaramos assuntos que despertam nosso interesse. Ressalta que o pior que pode acontecer é avaliar o trabalho monográfico como sendo meramente descritivo.

O genial da reconstituição de Burgess Shale, segundo o autor, é começar com uma criatura achatada e distorcida e chegar a uma imagem aceitável de um organismo vivo, elaborada a partir de informações provenientes de diversas fontes, coisa que o autor se diz incapaz de realizar. A seguir, nos fala sobre a rara capacidade de Whittington de iniciar os trabalhos com fragmentos e terminar com uma descrição do espécime, capacidade essa manifestada desde cedo, com desenhos de modelos de aviões, carros e sobressaindo-se na interpretação de mapas e diagramas. Essa capacidade de passar de duas dimensões para três e vice-versa foi fundamental para a reconstituição da fauna de Burgess Shale. Na época da reconstrução, Whittington era a maior autoridade mundial em trilobitos fosseis.

Em seguida, Gould nos conta sobre o tempo e dedicação que a reconstrução tomou de Whittington. Com cinqüenta anos de idade por ocasião da primeira temporada de coleta (1966), esperava passar um ano ou dois descrevendo alguns artrópodes. Mas, na realidade, Whittington levou quatro anos e meio apenas para descrever sua primeira monografia, a respeito do gênero Marrella. Surpresas e dúvidas, umas após outras, levaram até a consolidação de uma nova interpretação, em meados da década de 1970. Gould compara Whittington a Darwin, quanto à "gestação" extremante longa (21 anos) entre a formulação e a publicação de suas idéias.

No anexo "A classificação e a anatomia dos artrópodes", Gould afirma que os nossos tempos é a Era dos Artrópodes. Cerca de 80% de todas as espécies animais conhecidas são artrópodes, a grande maioria insetos. A seguir, nos apresenta o arranjo taxonômico adotado, o mais próximo do consenso, reconhecendo a existência de três grandes grupos vivos (Uniramia, Chelicerata e Crustacea) e um exclusivamente fóssil.

Já que o principio fundamental do traçado dos artrópodes é a metamerização, a chave do entendimento é reconhecer que uma forma inicial pode evoluir, por meio da redução e fusão dos segmentos e a especialização das partes inicialmente similares, dando origem ao grande numero de anatomias divergentes.

Após uma descrição morfológica dos artrópodes, Burgess nos mostra que a especialização e a diferenciação são extremamente importantes para a história de Burgess Shale.

Na divisão "O drama de Burgess - Ato 1. Marrella e Yohoia: o nascimento e a consolidação da desconfiança, 1971-1974 - O universo conceitual com que Whittington de defrontou", Gould nos mostra o método de trabalho de Whittington, que começou suas ponderações com o espécime do gênero Marrella, o organismo mais abundante de Burgess Shale. Ao contrario de outras espécies, com menos de 10 espécimes e outras com apenas 1, Marrella apresentava mais de 13 000 espécimes.

Marrella splendens é o primeiro organismo de Burgess que Walcott encontrou e desenhou. Apesar de reconhecer que Marrella não era um trilobita convencional, mesmo assim o classificou na classe Trilobita, partindo do principio que todos os espécimes deveriam ser classificados em grupos posteriores conhecidos. Apesar de seu método não ser compartilhado por todos, seu trabalho continuou nessa linha.

Apresentando sua classificação completa dos artrópodes de Burgess em 1912, distribuiu os gêneros em quatro subclasses, todas na Classe Crustacea, incluindo todos os artrópodes marinhos e de água doce. As quatro subclasses são Braquiópodes (crustáceos de água doce), Malacostráceos (crustáceos marinhos), Trilobitos e Merostomados (euripterídeos fósseis e límulos).

Gould, nesse ponto, nos esclarece o que aconteceu com a tabela de Walcott. Dos 22 gêneros, 2 pertencem ao grupo em que os colocou; 3 permanecem inclassificados; 3 não fazem parte da historia dos artrópodes de Burgess Shale; 2 foram colocados em filos próprios, sem relacionamento conhecido com grupos modernos; 11 foram retirados dos gêneros em que foram classificados e reclassificados como artrópodes anatomicamente singulares. Apenas 1 (Naraoia) pertence a um grupo conhecido.

O autor também nos conta sobre o trabalho de reclassificação executada por Leif Stormer. Apelando para uma solução radicalmente oposta à de Walcott, ao invés de distribuir os artrópodes de Burgess entre os diferentes grupos ao longo de todo o filo, ele levou a maioria deles para junto dos Trilobitos. Apesar de uma base lógica (invalidada pelos avanços posteriores na teoria taxonômica), Stormer foi obrigado a forjar uma união taxonômica. O objetivo de Gould em nos apresentar Walcott e Stormer foi que a idéia de ambos era que todos os gêneros de Burgess Shale pertencem a grupos já conhecidos. Frisa que, quando Whittington iniciou seus trabalhos a interpretação de Stormer era a classificação padrão e a mais atualizada dos artrópodes de Burgess Shale.

Na divisão "Marrella: Primeiras duvidas", Gould nos apresenta a monografia de Whittington sobre Marrella (Redescrição de Marrella splendens(Trilobitoidea), de Burgess Shale, Cambriano Médio, Columbia Britânica). Segue um pequeno comentário sobre a introdução, escrita por Y. O. Fortier, diretor do Serviço de Levantamento Geológico do Canadá e uma descrição acurada sobre o gênero.

Whittington trabalhou com Marrella durante 4 anos e meio, trabalhando, dissecando e desenhando os esboços de espécimes fossilizados em diversas posições.

Os estudos realizados por Whittington são, em sua maioria, revisões. Para Walcott, Marrella era um trilobito, enquanto Stormer fizera dele o carro chefe de seus trilobitas. Por isso, Whittington estudou esse gênero dentro do contexto básico da relação entre essa espécie e os trilobitas, objeto de toda uma vida de estudos.

A seguir, Gould nos apresenta como as observações de Whittington foram afastando Marrella splendens dos trilobitas. O trilobito "clássico" apresenta seu esqueleto externo geralmente largo e ovalado, dividido em céfalo, tórax e pigídio. O Marrella apresenta uma singular carapaça na cabeça, com dois pares de espinhos proeminentes, o corpo segmentado uniformemente, de tamanho gradualmente decrescente e o minúsculo botão da extremidade posterior. Nada disso lembra um trilobito.

Stormer, anteriormente, havia feito referência a uma forte semelhança entre os apêndices birremes dos trilobitos e do Marrella, utilizando essa semelhança como base racional para estabelecer seu conceito de Trilobitoidea (literalmente "semelhante à Trilobito"). Mas à medida que seus estudos avançavam, Whittington começou a descobrir diferenças consistentes e fundamentais entre os apêndices de Marrella e aqueles de todos os trilobitos conhecidos.

Walcott, por sua vez, interpretou a carapaça da cabeça e seus apêndices de tal forma que chegou a retocar fotografias de modo a inserir Marrella entre os trilobitos. Diferentemente destes (dois apêndices - as antenas - na frente da boca e três pares atrás da boca), os espécimes analisados por Whittington apresentavam apenas dois pares de apêndices (antenas), ambos pré-orais, ligados à carapaça da cabeça.

O autor nos conta que o reconhecimento da existência de dois apêndices pré-orais e nenhum pós-oral não resolve inteiramente a questão anatômica. Whittington se deparou com 3 grandes alternativas. A primeira é que as duas antenas poderiam representar os ramos externo e interno de um mesmo apêndice ancestral. A segunda alternativa é que as duas antenas poderiam ter origens distintas, tendo surgido como modificações evolutivas de dois pares de membros de dois segmentos diferentes. Na terceira alternativa, a segunda antena, que se parece com uma perna locomotora, poderia pertencer ao primeiro segmento do corpo posterior à cabeça, sem estar ligada à carapaça da cabeça. Nesse caso, a cabeça teria apenas um par de apêndices - as primeiras antenas.

Para solucionar esse problema, Whittington teve que dissecar através da carapaça da cabeça em busca de pontos de inserção dos membros, procurando posições incomuns que pudessem revelar as extremidades proximais dos apêndices. Apos vários estudos, optou pela segunda interpretação - as antenas são apêndices distintos, ligados à carapaça da cabeça.

Gould, na seqüência, nos apresenta o dilema que Whittington teve de enfrentar ao escrever sua monografia sobre Marrella. Nessa época, ele acreditava ainda que os fosseis pertencem aos grandes grupos já conhecidos, sendo que a historia da vida move-se em direção a uma complexidade e diferenciação cada vez maiores. Mas Marrella, a principio, não pertencia a nada conhecido. Whittington também se prendia à idéia que os fosseis de Burgess tinham de ser primitivos. Nesse contexto, explorou a idéia de que Marrella poderia ter sido um ancestral tanto de trilobitos como de crustáceos.

A classificação foi outro problema. Apesar de importantes diferenças, Whittington optou por incluir Marrella entre os Trilobitoidea de Stormer, o que provocou arrependimentos mais tarde.

Na divisão "Yohoia: aumenta a suspeita", Gould nos apresenta a seqüência do trabalho de Whittington. Optando por prosseguir de acordo com a ordem de abundância dos espécimes, seu próximo espécime seria o Canadaspis, mas ele passou esse trabalho para um de seus alunos, Derek Briggs. Os próximos, Burgessia e Waptia, foram entregues a Chris Hughes. Finalmente Whittington optou pelo próximo artrópode mais abundante, o Yohoia.

A segunda monografia de Whittington, Yohoia, 1974, foi extremamente importante. Se o gênero Marrella não podia ser classificado em nenhum grupo conhecido, isso não justificava a elaboração de toda uma nova concepção. Mas o mesmo se aplicara, posteriormente, a Yohoia, o que levaria a uma nova concepção da historia da vida.

Em seguida, Gould nos faz uma descrição de Yohoia, destacando que Walcott o classificara entre os branquióporos e Stormer havia colocado esse organismo entre os gêneros incertos no final da classe Trilobitoidea. Avançando em seus estudos, Whittington percebia que nada relativo à Yohoia encaixava-se em qualquer grupo conhecido. Como o estado de conservação desse organismo era bastante deficiente, Whittington teve muitas dificuldades em decifrar a ordem e o arranjo dos apêndices (importantíssimos na classificação dos artrópodes). Mas Yohoia apresentava a mais curiosa das anomalias, um grande par de apêndices usados para agarrar, constituído de dois fortes segmentos, na base, e por quatro espinhos nas extremidades. Este é um design exclusivo. Alem disso, não apresenta nenhum outro apêndice na carapaça da cabeça - nenhuma antena, nenhuma estrutura alimentar. Com um grande apêndice frontal e a curiosa disposição de seus membros, o autor o considera como um "órfão" entre os artrópodes, já que a disposição de seus membros diverge do típico padrão dos trilobitas.

Whittington compara Yohoia com o artrópode primitivo hipotético de Snodgrass, já que o canal alimentar estende-se por todo o comprimento do corpo.

Em 1975, Whittington havia concluído monografias sobre Marrella e Yohoia com resultados idênticos. Não se encaixavam em nenhum lugar. Os dois organismos eram animais especializados, com características singulares e aparentemente bem adaptados. Mas, ainda assim, Whittington colocou Yohoia na classe Trilobitoidea, mas colocou um ponto de interrogação após a descrição taxonômica formal.

Na divisão "Ato 2: Firma-se um novo ponto de vista: Homenagem a Opabinia, 1975", Gould, inicialmente, nos fala sobre a reação dos cientistas à monografia de Whittington sobre o Opabinia. Em 1912, Walcott havia descrito esse animal como um crustáceo branquiópode, e reconstituições posteriores confirmaram essa classificação. Logicamente, esse organismo foi o próximo objeto de estudo de Whittington.

O Opabinia é um animal raro, com apenas 10 espécimes em bom estado, sendo que Walcott o colocou no alto da classificação por considerar seu corpo alongado, muito segmentado e sem apêndices complexos ou proeminentes como uma forte indicação de ancestral dos anelídeos. Para Walcott, Opabinia era o mais primitivo dos artrópodes de Burgess, o modelo mais próximo de um verdadeiro ancestral de todos os grupos posteriores.

A seguir, Gould nos explica a tendenciosidade científica aparentemente inconsciente de Walcott. Para enumerar as características de um artrópode presentes em Opabinia , Walcott não conseguiu encontrar nenhum apêndice na cabeça do animal, e o "focinho" frontal foi interpretado como um par de antenas fundidas e os olhos eram compatíveis com o modelo de artrópodes (Walcott observou dois olhos, Whittington encontrou cinco). Admitiu ainda que a cabeça não apresentava traços de apêndices: se eram grandes, se quebraram; se eram pequenos, estavam ocultos pela posição dos fosseis. Walcott se "esquecera" de uma outra possibilidade: se os apêndices não podiam ser vistos era porque não existiam. Outro engano de Walcott foi tentar classificar os organismos pelo sexo, encontrando dois espécimes que pareciam não ter focinho central (Whittington posteriormente descobriu vestígios de focinho num desses espécimes). Num dos espécimes, Walcott confundiu um fragmento de verme com uma estrutura delgada, com duas pontas, no lugar do focinho. Concluiu então que havia dimorfismo sexual em Opabinia, com um focinho forte e vigoroso para o macho, e um focinho delgado e delicado para as fêmeas, com a estrutura do macho utilizado para agarrar-se à fêmea.

Outra justificativa de Walcott para incluir esse animal entre os artrópodes está na interpretação dos segmentos pareados do corpo, julgando-os como ramos branquiais ancestralmente birremes. Mas o que realmente o incomodava era que Opabinia não preservava nenhum sinal de afinidade com os artrópodes. Após algumas simulações com anostráceos modernos, acabou por convencer-se e o animal continuou entre os artrópodes.

A questão da confirmação dos estudos de Walcott foi mais longe ainda, já que em 1931, G. Evelyn Hutchinson, ecologista, reconstituiu Opabinia desenhando-o de cabeça para baixo, em posição de natação, transformando as abas laterais em longos apêndices em forma de lamina adaptados ao flanco de uma carapaça de artrópode.

Mas a mais fantasiosa das tentativas de reconstituição foi a efetuada por A.M. Simonetta, em 1970. Ele transformou o animal num artrópode ideal, com uma sutura longitudinal imaginária no focinho e dois pares adicionais de apêndices curtos na cabeça, reconstituídos a partir de um par de olhos e outro a partir de uma saliência da carapaça, além de um apêndice forte e birreme em cada segmento do corpo.

Nesse ponto, o relato de Gould nos apresenta Whittington diante dos 10 exemplares de Opabinia que foram bem preservados.

Todos o haviam classificado como um artrópode, mesmo sem encontrar os apêndices segmentados que caracterizam o grupo. Mas nenhum desses tinha, a seu dispor, todo o ferramental à disposição de Whittington. Todos os animais anteriores foram decifrados assim. O próximo passo foi decifrar Opabinia. Assim, Whittington o dissecou, e nada encontrou.

O resultado é que ele não era um artrópode, muito menos alguma coisa que se pudesse classificar.

Gould, a seguir, nos dá suas características: bilateralmente simétrico, e funcionalmente semelhante à maioria dos animais. Apresenta cabeça, cauda, olhos e intestino que vai da extremidade anterior até a posterior.

Em sua monografia, Whittington afirma que "suas conclusões sobre morfologia levaram a uma reconstituição que difere de todas as anteriores sob vários aspectos importantes (1975)". Esses aspectos interessantes eram:

a) Opabinia não tem dois olhos, mas cinco!

b) O focinho frontal é um órgão flexível, provavelmente com um canal central cheio de fluido.

c) O intestino é um tubo simples, que corre em linha reta ao longo do corpo. Na cabeça, porém, o intestino faz uma curva em forma de U, virado ao contrário. O focinho frontal tem exatamente o comprimento certo para alcançar a boca e a flexibilidade adequada para curvar-se e levar o alimento até ela. Whittington sugere que Opabinia alimentava-se capturando alimento com as "quelas", formadas pela parte espinhosa da ponta do focinho.

d) A porção principal do tronco possui 15 segmentos, cada qual com um par de lóbulos laterais.

e) Cada lóbulo, com exceção do primeiro par, possui uma brânquia em forma de remo.

f) Os três últimos segmentos do tórax formam uma cauda.

Para Gould, embora Marrella e Yohoia tivessem desafiado a calçadeira de Walcott, esses gêneros estavam apenas orfanados dentro dos artrópodes. Com Opabinia, a coisa passou para outro nível. Esse animal não pertencia a nenhum grupo conhecido, moderno ou fóssil. Whittington, a respeito disso, escreveu: "Não se considera que Opabinia regalis tenha sido um artrópode trilobitomorfo ou um anelídeo". Observou ainda que "Burgess Shale contém outros animais segmentados ainda não descritos e com afinidades incertas".

O autor ainda afirma que a reconstituição de Opabinia regalis feita por Whittington em 1975 ficará situada entre os grandes documentos da história do conhecimento humano. Nada nos ensinou tanto acerca da natureza da evolução como o Opabinia.

Na divisão "Ato 3. A revisão se amplia: o êxito de uma equipe de pesquisa, 1975-1978", na subdivisão "Estabelecendo uma estratégia para uma generalização", Gould afirma que "Um é apenas um e assim será cada vez mais." Opabinia encerra toda a essência da mensagem de Burgess Shale no sentido de uma nova visão da história da vida. È um animal tão bizarro e tão diferente como nenhum outro de Burgess. Mas um é apenas um e assim será cada vez mais. Esse animal, como caso isolado, não justificava uma nova interpretação, apenas sugere uma possibilidade.

Mas, quando um fenômeno inesperado ocorre repetidas vezes, transforma-se em expectativa. Opabiniase transformou no símbolo de uma nova concepção da história da vida pela sua mensagem de singularidade taxonômica, usual entre os organismos de Burgess.

Whittington dividiu os artrópodes em três grandes grupos, após selecionar os gêneros que ia estudar pessoalmente. Tinha dúvidas quanto ao fato dos três grupos constituírem conjuntos taxonômicos coerentes. Marrella e Yohoia lhe haviam ensinado a ter cautela. Posteriormente, os três grupos revelaram-se heterogêneos, o que confirmou o status dos organismos de Burgess como criaturas díspares.

Whittington começou o trabalho, no final da década de 1960, com outros dois auxiliares: David Brutton (Universidade de Oslo), que trabalhou com os merostomóides, e Chris Hughes (Universidade de Cambridge), que trabalhou com Burgessia e Waptia (o estudo sobre Burgessia revelou, posteriormente, que não era um branquiópode notostráceo, como Walcott havia classificado, mas outro artrópode órfão de design singular).

Na subdivisão "Orientadores e orientados", Gould nos dá uma visão geral dos sistemas de graduação e pós-graduação das universidades. Discute a eterna luta por financiamento e as dificuldades de convivência entre orientadores e orientados. Discorre sobre o papel dos orientadores, as obrigações dos orientados, e as perdas e ganhos dessa convivência.

O autor nos fala também de sua própria condição, como orientado, e todas as conseqüências dessa convivência. Ainda nos fala sobre a sorte de Whittington ao encontrar dois orientados brilhantes, D. Briggs e S. Conway. Nas conversas com o autor, Whittington afirmou que a revisão de Burgess tornou-se um projeto completo e coerente apenas quando obteve a colaboração de Briggs e Morris.

Na subdivisão "A temporada de Conway Morris nos armários de Walcott: uma indicação transforma-se numa generalidade e a transformação se consolida", Gould nos descreve o trabalho de Conway na classificação dos "vermes" de Walcott. Gould classifica os vermes, de modo geral, como a "lata de lixo da taxonomia", o balde de dejetos para as criaturas que não se encaixam em lugar nenhum.

Simon tinha pela frente cerca de 8 mil espécimes da coleção Walcott, a maior parte sem descrição. Explorando as gavetas do Instituto Smithsoniano, onde estava o material, procurou os organismos mais estranhos em busca de exemplos da mais radical interpretação a respeito da anatomia dos organismos de Burgess. Quanto mais raro melhor. Em dois anos (76/77) Simon publicou cinco artigos a respeito de cinco organismos com singularidades anatômicas de novos filos. Estes organismos apresentam uma notável diversidade em termos de constituição anatômica e de modo de vida. O que os une é somente a peculiaridade:

1) Nectocaris: é representado por apenas um espécime. Do "pescoço" para frente, lembra um artrópode. O restante do corpo, sob vários aspectos, lembra os cordados. Simon o classificou no Filo "Incerto".

2) Odontogriphus: o fóssil não está bem preservado e poucas estruturas podem ser reconhecidas. É um animal alongado, ovóide e bastante achatado, com duas estruturas reconhecíveis: um par de "palpos" e uma borda circundada por um tipo de estrutura alimentar.

3) Dinomischus: Walcott havia separado e fotografado um espécime, mas não publicara nada. Conway dispunha de três espécimes. Esse animal representa outro grande design evolucional: trata-se de uma criatura séssil, com simetria radial, apto a receber alimento de todas as direções. Segue-se então uma minunciosa descrição dos espécimes. Embora com alguma hesitação, Conway afirma que "Dinomischus não apresenta nenhuma afinidade óbvia com outros metazoários e provavelmente pertence a um filo extinto".

4) Amiskwia: apesar de raro, esse organismo foi objeto de diversos estudos. È um animal achatado e provavelmente gelatinoso, desprovido de carapaça externa. Pouca coisa da anatomia pôde ser claramente elucidada, mas o que foi preservado foi suficiente para excluir a possibilidade de colocá-lo em qualquer filo moderno. A região da cabeça possui um par de tentáculos; o tronco exibe dois tipos de nadadeiras, sem qualquer estrutura de sustentação. Provavelmente é um dos poucos animais de Burgess que não vivia na comunidade do fundo do mar. Tratava-se, provavelmente, de um organismo pelágico. Esse tipo de vida explicaria a grande raridade de Amiskwia, Odontogriphus e de algumas outras criaturas. Apenas alguns poucos animais da coluna d'água teriam morrido e assentado no fundo durante o curto período em que o deslizamento de lama se aglutinava para dar origem à camada de sedimentos da bacia estagnada. Simon concluiu que "... Amiskwia sagittiformis não parece ter afinidades mais estreitas com qualquer outro filo conhecido."

5) Hallucigenia: como descrever um animal quando não se sabe qual lado está para cima e quais são as extremidades anterior e posterior? Assim é esse animal. Apresenta uma cabeça bulbosa (não se tem certeza que esse aparato é realmente a cabeça) ligada a um tronco alongado, estreito e basicamente cilíndrico. Sete pares de espinhos pontiagudos ligam-se aos lados do tronco, prolongando-se para baixo, formando uma série de suportes, não se articulando ao corpo. Apresenta ainda sete tentáculos voltados para cima. Simon partiu do pressuposto que o organismo se firmava sobre os espinhos para se locomover sobre o substrato lodoso. Gould salienta que Simon sugere que Hallucigenia não seja um animal completo, e sim um apêndice complexo de uma criatura maior, ainda não descoberta. Gould frisa ainda que certamente não vimos ainda a última surpresa de Burgess Shale.

Na subdivisão "Derek Briggs e os artrópodes bivalves: o fragmento final não tão brilhante mas igualmente necessário", Gould começa se desculpando por não ter dado o valor devido ao trabalho de revisão realizado por Derek Briggs.

Briggs se ocupou dos artrópodes bivalves, o mais convencional dos grandes grupos de Burgess. Walcott e outros descreveram cerca de 12 gêneros de artrópodes bivalves, alguns desses não podendo ser classificados com segurança e outros foram identificados seguramente como crustáceos. Para Derek, apenas algumas dessas descrições deveriam ser refeitas.

Logo no início dos trabalhos, surgiram duas importantes descobertas. A primeira é Branchiocaris. Gould explica que os artrópodes são construídos de acordo com um projeto estereotipado, com a cabeça sendo o resultado da fusão de cinco segmentos originais, com o acréscimo de olhos.

Em 1929, Charles E. Resser, auxiliar de Walcott, descreveu um espécime de Burgess como sendo Protocaris prertiosa. Esse gênero foi estabelecido em 1884 pelo próprio Walcott. Briggs discordou dessa classificação e criou o gênero Branchiocaris.

A carapaça bivalve de Branchiocaris cobre a cabeça e os dois terços anteriores do corpo. Não há qualquer apêndice na parte da cabeça posterior à boca. Esse tipo de arranjo é desconhecido em qualquer outro grupo de artrópodes modernos. Briggs afirma que "esta espécie obviamente não pode ser colocada em qualquer grupo de artrópodes modernos".

A segunda descoberta de Briggs é o Canadaspis. Esse é o segundo animal mais comum de Burgess. Apresenta uma carapaça bivalve, mas sua anatomia é muito diferente deBranchiocaris.

Finalmente, surgia uma espécie em um bem sucedido grupo moderno. Canadaspis não apenas era um crustáceo. Era um malacostráceo primitivo, com sua morfologia própria característica.

Logo a seguir, Gould nos apresenta a seguinte questão: a fauna de Burgess inclui efetivamente protótipos de animais modernos, e dentro desse contexto, trata-se de uma fauna comum do período Cambriano. Mas a enorme diversidade de designs anatômicos que vieram a desaparecer talvez revele o mais importante de todos os padrões da história da vida primitiva.

Para confirmar tudo isso, Gould volta a Simon e os vermes de Burgess. Repetindo a história de Canadaspis, alguns organismos de Burgess encaixam-se perfeitamente em grupos modernos. Em 1977 reconheceu 6 ou 7 gêneros de vermes priapulídeos entre organismos que Walcott espalhara por 3 filos. Além disso, em 1979, organizou os poliquetos de Burgess. Simon encontrou entre os poliquetos de Walcott 2 gêneros de priapulídeos e 4 gêneros de criaturas desconhecidas, sendo que Walcott identificara ainda alguns poliquetos verdadeiros. Com tudo isso, Simon ainda identificou e criou 6 gêneros de poliquetos de Burgess. Tanto os poliquetos como os priapulídeos proclamam a mesma mensagem: a fauna de Burgess Shale continha em abundânciatanto anatomias comuns quantos singulares.

Na divisão "Ato 4. Conclusão e codificação de um raciocínio: Naraoia e Aysheaia, 1977-1978", Gould começa nos dando uma visão geral de todo o trabalho realizado até aqui por Whittington e seus colaboradores. Whittington tornou "órfãos" alguns artrópodes anteriormente colocados em grupos já conhecidos. A seguir, demonstrou que Opabinia não era um artrópode, mas uma criatura com anatomia desconhecida e singular. A seguir, seus colaboradores e alunos transformaram toda uma fauna de anomalias em generalidades acerca de Burgess e sua época.

Mas a história não tinha terminado. Um velho e indefectível elemento de Burgess, Naraoia, foi descrito por Walcott como um crustáceo branquiópode. Possui uma carapaça composta de duas valvas achatadas, lisas e ovais. Mas essa carapaça impõe severos problemas de interpretação, já que elas cobrem a anatomia das partes moles. O caminho de Whittington foi dissecar o organismo através de sua carapaça para revelar as extremidades proximais dos apêndices e seus pontos de inserção. Ao realizar esse trabalho, qual não foi sua surpresa: Naraoia era um trilobito. Concluindo que esse organismo era um trilobito que havia perdido o tórax, colocou-o numa ordem separada dessa classe. Essa mudança de classificação não é tão insignificante assim. Mostra, acima de tudo, que a disparidade anatômica além de todos os limites da variação das épocas posteriores aplica-se a todos os níveis. Em 1985 ele descreveu outro trilobito de corpo mole, Tegopelte gigas, demonstrando assim que Naraoia não é uma solitária extravagância entre os trilobitos.

O mais importante disso tudo foi o fim da Classe Trilobitoidea, uma lata de lixo artificial sem validade evolutiva, segundo Gould.

Gould nos apresenta então a monografia seguinte de Whittington, a respeito de Aysheaia. Segundo as palavras iniciais de Whittington, "os animais dessa comunidade incluem uma espantosa variedade de artrópodes e também formas bizarras, [...] que, como Aysheaia, não podem ser prontamente colocadas nos taxa superiores modernos".

Aysheaia foi descrito inicialmente como um anelídeo por Walcott (1911), mas posteriormente observou-se que, ao menos superficialmente, a criatura quase não podia ser distinguida do grupo dos modernos onicóforos. Apesar de todas as similaridades, Whittington também encontrou diferenças, inclusive a inexistência de mandíbulas. Frente a isso, o excluiu do grupo dos onicóforos e o colocou num grupo singular e independente.

Gould discorda da sistemática em relação a esse animal. Para o autor, esse organismo deveria ser mantido entre os onicóforos. Para ele, Whittington deixou-se levar pela idéia da singularidade taxonômica dos animais de Burgess.

Na divisão "Ato 5. A maturação de um programa de pesquisa: a vida após Aysheaia, 1979 - Dia do Juízo Final (não existem respostas definitivas)", Gould diz que os sete anos que separaram Marrella (1971) de Aysheaia (1978) havia produzido uma extraordinária mudança de perspectiva, indo de um projeto para redescrição de alguns artrópodes a uma nova concepção a respeito de Burgess e da história da vida. Em 1978 a nova concepção já se consolidara, mas o trabalho ainda não terminara. Só ficara um pouco mais tranqüilo, o que de fato ocorreu.

Na subdivisão "A saga corrente dos artrópodes de Burgess - órfãos e especialistas", Gould nos apresenta, inicialmente, um resumo de todo o trabalho de redistribuição. 4 gêneros (Marrella, Yohoia, Burgessia e Branchiocaris) ficaram "órfãos"; Canadaspis e talvez Perspicaris pertenciam a um grupo moderno; Naraoia, reclassificado como trilobito, mas como um protótipo de uma nova ordem; Opabinia, excluído dos artrópodes e Aysheaia ficara num limbo.

Em 1981, Briggs continuou a distribuição dos artrópodes bivalves. Utilizando os espécimes existentes de Odaraia, concluiu que esse organismo era não apenas taxonomicamente incomum, mas funcionalmente único entre os artrópodes.

Também em 1981, com a publicação de uma monografia, por David Bruton, sobre Sidneyia, concluiu-se que esse animal apresenta um mosaico de características tornando-se mais um "órfão", artrópode único desvinculado filogeneticamente de qualquer outro organismo conhecido.

A seguir, é apresentada uma série de organismos que seguem o padrão de Sidneyia: Molaria, Sarotrocercus, Actaeus e Alalcomenaeus. Todos esses organismos apresentam um design altamente especializado.

Já em 1983, Bruton e Whittington se associaram para descrever os dois últimos artrópodes importantes de Burgess, Esmeraldella e Leannchoilia. Considerando apenas o arranjo dos apêndices da cabeça: Sidneyia possui um par de antenas e nenhum apêndice; Esmeraldella tem um par de antenas pré-orais, mas apresenta cinco pares de apêndices adicionais atrás da boca; Leannchoilia não possui antenas, mas exibe grandes apêndices, seguidos por dois pares birremes atrás da boca. Essas características refletem a inacreditável disparidade descoberta sob a similaridade superficial do aspecto exterior.

Na subdivisão "Um presente de Santa Claws", Gould nos conta sobre o trabalho e as descobertas de Dês Collins. Sem autorização para efetuar escavações na pedreira de Walcott, Dês Collins mudou o local de suas explorações.Procurando por áreas adjacentes, encontrou fósseis de animais de corpo mole em mais de 12 locais nas proximidades. A maioria continha espécimes já catalogados por Walcott, mas Dês Collins fez descobertas importantes. A cerca de oito quilômetros da pedreira de Walcott, fez a descoberta da década. Um artrópode grande, com apêndices cobertos de espinhos em sua cabeça. Em conjunto com Derek Briggs, Dês Collins formalizou sua nomenclatura: Sanctacaris (anteriormente tinha sido chamado de "Santa Claws" pelo próprio Dês Collins).

Diferentemente de outros "merostomóides" de Burgess, Sanctacaris parece um genuíno quelicerado. O mais importante é que, com sua descoberta, têm-se agora representados os quatro grandes grupos de artrópodes.

Na subdivisão "Prossegue o desfile das fantásticas maravilhas", Gould nos fala de outros dois organismos, o Wiwaxia e o Anomalocaris. Ao ser indagado pelo autor porque optara por trabalhar durante anos com um animal tão complexo como o Wiwaxia, Conway diz que queria provar a si mesmo que seria capaz de escrever uma rigorosa monografia de acordo com a tradição. Para Gould, essa monografia é primorosa e foi a razão original para que se dispusesse a escrever sobre Burgess Shale.

Segue-se então uma descrição do animal, que assim como outros organismos de Burgess, possui uma anatomia toda particular, além de ser extremamente difícil de reconstituir. Depois de todo um trabalho de reconstituição, Simon não foi capaz de encontrar indícios definitivos a respeito da homologia. Wiwaxia não é artrópode nem anelídeo.

No caso do Anomalocaris, Gould afirma que é uma história que envolve humor, erro, contendas e mais erros. Foram juntados partes de animais, de esponjas, de medusas, de pepinos-do-mar, todas formando um estranho animal. Teorias, erros, mais teorias, alguns acertos, e mais erros foram a tônica desse estranho organismo.

Depois de várias reconstruções, o animal surgiu. A partir de quatro anomalias - um crustáceo sem cabeça, um apêndice alimentar que não combinava com nenhum animal até então conhecido, uma medusa com uma abertura no centro e uma lâmina que saltara de um filo para outro - Whittington e Briggs haviam reconstruído duas espécies distintas pertencentes ao gênero Anomalocaris. Segue-se, nesse ponto, uma acurada descrição desse organismo. Gould afirma que Whittington e Briggs concluíram que Anomalocaris "não era um artrópode mas sim um representante de um filo até agora desconhecido".

Na subdivisão "Coda", Gould diz que as pesquisas com os organismos de Burgess irão continuar, pois muitos gêneros merecem um reexame. Mas lamenta o afastamento de Whittington, Derek e Simon. Mostra esperança na continuação do trabalho desses três cientistas e louva o trabalho deles.

Na subdivisão "Síntese do Bestiário de Burgess Shale. Disparidade seguida de dizimação: uma regra geral", o autor diz que se os componentes de corpo mole não tivessem sido encontrados, Burgess Shale seria uma fauna inteiramente comum do Cambriano Médio. Enfatiza ainda que Burgess apresenta uma amplitude de disparidade no design anatômico que jamais voltou a ser igualada, nem mesmo por todas as criaturas de todos os oceanos modernos. A história da vida multicelular tem sido governada pela dizimação de um grande estoque, gerado rapidamente na explosão cambriana. Os últimos 500 Ma caracterizaram-se pela ocorrência de redução seguida de proliferação de poucos designs estereotipados. Mas Burgess Shale contém uma amplitude ainda maior de experimentos anatômicos, mas não levaram a uma subseqüente diversidade.

Na subdivisão "Avaliação das relações genealógicas dos organismos de Shale", Gould trata das inferências evolutivas e genealógicas, inicialmente de modo geral, depois aplicada aos organismos de Burgess. Discute a distinção entre a homologia e analogia, usando exemplos clássicos, como o número de vértebras nos mamíferos e as asas de aves, morcegos e pterossauros.

Tratando-se especificamente dos organismos de Burgess, Gould afirma que duas as razões pelas quais se têm a capacidade de reconhecer grupos coerentes entre os artrópodes posteriores. A primeira razão é que as linhagens perderam a potencialidade genética original. A segunda razão é a remoção da maioria das linhagens através de extinção, que deixaram poucos sobreviventes, com grandes lacunas intermediárias.

Na subdivisão "Predadores e Presas: o universo funcional dos artrópodes de Burgess", Gould discorre sobre as seis grandes categorias ecológicas inferidas por Whittington e Briggs (essas categorias foram criadas a partir de aspectos anatômicos e genealógicos):

1- Bentos predatórios ou que se alimentavam de animais já mortos: inclui trilobitos e diversos "merostomóides" (Sidneya, Esmeraldella, Molaria e Habelia);

2- Bentos detritívoros (Canadaspis, Burgessia, Waptia e Marrella, p.ex.);

3- Nectobentos que se alimentavam, de cadáveres e, talvez, predatórios (Branchiocaris, Yohoia);

4- Nectobentos detritívoros ou que se alimentavam de cadáveres (Leanchoilia, Actaeus, Perspicaris, Plenocaris);

5- Nectônicos que se alimentavam de material em suspensão (Odaraia, Sarotrocercus)

6- Outros.

Todas as classificações têm uma categoria residual para membros incomuns. Aysheaia pode ter sido um parasito e Alalcomenaeus, possuidor de fortes espinhos, talvez os usasse para apanhar algas ou dilacerar carcaças.

Gould define ainda o grande enigma de Burgess Shale: o mesmo mundo ecológico, respostas evolutivas muito diferentes.

Na subdivisão "A ecologia da fauna de Burgess", Gould nos apresenta a análise ecológica de toda a comunidade de Burgess, feita por Simon Conway Morris, em 1986.

A fauna contém 119 gêneros e 140 espécies, sendo que 37% dos gêneros são artrópodes. Uma esmagadora maioria constituída por bentos e por espécies que viviam próximas ao fundo, e algas que viviam em águas rasas (nomeadas de grupo Marrella-Ottoia). Um grupo mais raro nadava permanentemente na coluna d'água (grupo Amiskwia-Odontogriphus).

Quando classificados segundo o habitat e forma de alimentação, Simon reconhecequatro grandes grupos:

1- animais que coletavam material depositado para se alimentar (a maioria artrópodes);

2- animais que se alimentavam engolindo material depositado (a maioria moluscos com partes duras);

3- animais que se alimentavam de material em suspensão (a maioria esponjas);

4- carnívoros que se alimentavam de cadáveres (a maioria artrópodes).

Uma importante conclusão de Simon foi que a maioria dos organismos eram especialistas em determinados tipos e tamanhos de alimentos, num ambiente nitidamente delimitado. Tal como nas faunas posteriores, as várias espécies estavam dispostas em camadas, formando agrupamentos com interações complexas, e os predadores desempenhavam um importante papel na comunidade de Burgess.

Na subdivisão "Burgess como uma fauna mundial primitiva", Gould parte do pressuposto que se uma fauna como Burgess permanecesse restrita a um só local, não poderia contar uma história que se aplicasse a toda a vida.

O primeiro acréscimo ocorreu próximo ao local original. Outros locais distantes do sítio original foram descritos, e cerca de 75% dos gêneros descritos também estão representados em Burgess Shale. Outro aspecto interessante é que Burgess data do Cambriano Médio. Mas espécimes bem semelhantes aos de Burgess foram encontrados na Fauna Kinzer, do Cambriano Inferior. Na Groenlândia, ocorre o mesmo.

Outro ponto interessante é o trabalho de cientistas chineses descrevendo Naraoia, datando esse fóssil como sendo do Cambriano Inferior. Outros trabalhos desses mesmos cientistas descreveram um rico e bem preservado conjunto de fósseis.

Gould conclui que o fenômeno de Burgess remonta ao início da explosão cambriana.

Em seguida, Gould debate a teoria darwiniana da competição. Descreve a teoria e logo em seguida a rejeita, com uma série de argumentos, todos ligados à fauna de Burgess Shale.

Na subdivisão "A dizimação da fauna de Burgess", Gould nos apresenta dois caminhos: ou a vida começou com um punhado de modelos simples e a partir daí teve um curso ascendente ou a vida começou com todos os modelos presentes e construiu uma história posterior a partir de uns poucos sobreviventes. Afirma que as extinções em massa ocorreram e poucos designs originais sobreviveram, mas não acredita que as extinções tenham sido lances de azar. Nada indica que os vencedores tenham sobrepujado diretamente os derrotados.

Na análise da fauna de Burgess, Gould deixa claro que não há indícios de que, na grande dizimação, os designs dos perdedores eram sistematicamente inferiores. Whittington, Simon e Briggs enfatizaram que um observador contemporâneo não teria sido capaz de selecionar os organismos que alcançaram o sucesso. A dizimação de Burgess pode ter sido uma autêntica loteria, segundo Gould, e afirma que os perdedores de Burgess eram adequadamente especializados e bastante aptos.

CAPÍTULO QUATRO - A VISÃO DE WALCOTT E A NATUREZA DA HISTÓRIA

O capítulo 4 "A visão de Walcott e a natureza da História" é totalmente dedicado a Charles Doolittle Walcott. É feita uma análise profunda sob todos os aspectos, seja familiar, profissional círculo de amigos e idéias.

Na divisão "A origem da adesão de Walcott ao cone da diversidade", subdivisão "Uma nota biográfica", Gould trata de do Walcott administrador, sempre em conflito com o Walcott pesquisador. Para o autor, a vida é curta e não deve ser desperdiçada atolando-se em infelicidade e incompetência, as duas conseqüências experimentadas pela maioria dos acadêmicos que se aventuram na seara administrativa. Mas Gould é forçado a reconhecer que, se Walcott foi um excelente geólogo, foi um administrador ainda melhor, sendo considerado o melhor administrador do Instituto Smithsoniano. Conheceu vários presidentes (alguns intimamente), além de várias personalidades de várias áreas, além de ser um pioneiro da aviação nos EUA.

A seguir, uma ligeira biografia de Walcott. Nascido em uma família de poucos recursos, nunca obteve um título de estudos avançados, embora recebesse vários doutorados honorários. Numa fazenda em que trabalhava, coletou seus primeiros trilobitos, dando os primeiros passos em sua profissão. Desde 1879, quando ingressou no Serviço de Levantamento Geológico dos EUA até 1907, quando foi indicado para dirigir o Instituto Smithsoniano, Walcott manteve um ativo programa de pesquisas de campo e publicação a respeito de Geologia e Paleontologia dos Estratos do cambriano.

Quando da descoberta de Burgess Shale, em 1909, Walcott era o cientista mais poderoso de Washington e uma das maiores autoridades mundiais em trilobitas fósseis e Geologia do Cambriano.

Na subdivisão "A razão mundana para o fracasso de Walcott", Gould nos mostra que Walcott fazia cópias de todas as cartas, guardou cada fragmento de correspondência, registrou diariamente tudo em seu diário, até mesmo o que foi considerado o pior momento de sua vida, a morte de sua esposa, Helena. Todo esse material é rico e diversificado, permitindo traçar um quadro revelador desse homem.

O objetivo da busca nos arquivos de Walcott era permitir que Gould descobrisse porque ele havia cometido o erro fundamental de forçar a inclusão dos organismos de Burgess nos grupos então conhecidos. Após muita pesquisa, o autor descobriu numerosos indícios da existência de um complexo conjunto de fatores, indicadores que Walcott fora levado pelos seus sentimentos e convicções mais profundas para forçar a inclusão de criaturas de Burgess em grupos conhecidos.

Segue-se, antão, um sumário de suas atividades até Walcott assumir seu último posto, em 1907.

Em 1909, descobre Burgess Shale, e, em seguida, mais um relato de suas atividades como administrador e como um pai preocupado com sua filha Helen, em viagem pela Europa para recuperar-se da morte de sua mãe. Há alguns trechos de cartas, trocadas entre ele e a dama de companhia de sua filha, Anna Horsey.

Até sua morte, em 9 de fevereiro de 1927, Walcott escrevera a amigos manifestando o desejo de afastar-se das funções administrativas para se dedicar aos organismos de Burgess Shale.

Na subdivisão "A base racional mais profunda para a calçadeira de Walcott", Gould afirma que Walcott, por falta de tempo, ignorou a anatomia peculiar dos organismos de Burgess e os interpretou à luz de suas entranhadas concepções de vida. Conservador intransigente, os fósseis refletiram suas idéias pré-concebidas, na opinião do autor.

Na subdivisão "O caráter de \Walcott", Gould apresenta Walcott como um "velho americano de origem rural e genuínos antecendentes anglo-saxônicos". Era um conservador por convicção, republicano por opção e um presbiteriano devoto.

Escrevia a amigos sobre religião e sobre o consumo de álcool, da mesma forma que apregoava a igualdade de acesso à educação.

Era um anti-germânico convicto, devido à morte de seu filho durante um combate aéreo na Primeira Guerra Mundial. Chegou ao ponto de mobilizar vários cientistas para expulsar da Academia Nacional de Ciências um antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos, que acusara cientistas americanos de coletar informações secretas para o governo norte-americano.

Na subdivisão "A visão geral de Walcott sobre a evolução e a história da vida", Gould afirma que Walcott se considerava um seguidor de Darwin. A seguir, é feita uma análise das idéias de Darwin, algumas delas bem contraditórias. Para o autor, Darwin reconheceu que a seleção natural nada dizia a respeito do progresso. A seleção natural apenas explica como os organismos respondem de forma adaptativa às mudanças nos ambientes locais e vão se modificando ao longo do tempo. Segundo o próprio Darwin, "após muito refletir, não posso evitar a convicção de que não existe nenhuma tendência inata para um desenvolvimento progressivo". Para Walcott, porém, a adesão de Darwin à noção de que o progresso era uma qualidade inerente ao curso normal da história da vida tornou-se o elemento central de um credo evolucionista. Walcott, um darwinista, expressou sua convicção de que a seleção natural assegurava a sobrevivência dos organismos e um progressivo aperfeiçoamento das formas de vida, numa previsível trajetória rumo ao surgimento da consciência. Num exemplo claro de suas convicções, Walcott assim se expressa: "No início, o domínio coube aos Cephalopoda, depois os Crustacea passaram à frente e então os peixes provavelmente tomaram a dianteira, antes de serem rapidamente sobrepujados pelos Sauria. Na etapa seguinte, esses répteis terrestres e marinhos predominaram até os mamíferos entrarem em cena, havendo desde então uma disputa pela supremacia, que se prolongou até o surgimento do homem ...". Analisando apenas o aspecto evolutivo, Walcott errou de forma primária. Os répteis não substituíram os peixes. Eles eram um grupo de peixes modificados para viver num inusitado ambiente terrestre, e os peixes nunca deixaram de ser os vertebrados dominantes nos oceanos.

É extremamente complicado incluir a interpretação moderna da fauna de Burgess nessa concepção de Walcott. Para ele, a fauna de Burgess, sendo antiga, tinha de incluir uma amplitude limitada de precursores simples de descendentes posteriores mais aperfeiçoados. Se assim fosse, os conceitos modernos de disparidade máxima e dizimação ao acaso são incompreensíveis. Reforçando essa linha de pensamento, Walcott afirma que quase todos os animais, modernos ou extintos, estão classificados dentro de umas poucas divisões básicas ou categorias modernas.

Walcott também defendia que a ciência e a religião não deveriam se opor ou tentar ocupar o lugar uma da outra, pois elas se suplementam. Tal afirmação foi causada por uma cruzada fundamentalista anti-evolução que proibia o ensino da evolução em algumas escolas públicas. Para ele, a evolução, tendo por princípio a seleção natural, que conduz ao progresso, representava a maneira de Deus manifestar-se através da natureza.

Na divisão "A calçadeira de Burgess e a luta de Walcott com a explosão cambriana", Gould, inicialmente, nos fala sobre sua própria obra. Lembra que o 1º capítulo é sobre a iconografia e sua influência sobre os conceitos e como a escada do progresso e o cone de diversidade crescente serviram para uma concepção geral da vida. No 4º capítulo, mostra que nas duas seções anteriores a esta Walcott evoca a escada, e seu argumento mais específico em relação ao Cambriano baseia-se no cone.

Em seguida, Gould nos mostra o trabalho de Ernst Haeckel, todo baseado no uso de árvores evolutivas como iconografia para a filogenia. Diz o autor que todas as árvores de Haeckel crescem continuamente para cima e para fora, formando um cone. A maneira como o morfologista alemão dispôs os grupos reforça a idéia entre posição inferior e primitivo, unindo assim os temas centrais de escada e de cone.

Em todas as suas árvores, Haeckel, um evolucionista, utiliza o conceito primitivo/amplitude limitada-aperfeiçoados/amplitude ilimitada. Assim é para vertebrados, mamíferos, equinodermos, anelídeos e artrópodes.

Walcott, seguindo a árvore de Haeckel para anelídeos e artrópodes, aí colocou todos os animais de Burgess. Walcott fez três árvores incompletas, tentando elaborar uma filogenia para os organismos de Burgess, mostrando assim a limitação da ideologia pela iconografia.

Nesse ponto segue-se uma discussão sobre essas árvores e os cones "forçados", para conferir maior corroboração com as idéias de Walcott.

Em seguida, Gould nos dá duas teorias sobre a ausência de fósseis pré-cambrianos. A primeira teoria é a Teoria do Artefato, que diz que os organismos pré-cambrianos realmente existiram, mas não foram preservados no registro fóssil. A segunda é a Teoria da Transição Rápida, que diz que esses organismos nunca existiram, não na forma de invertebrados complexos que pudessem facilmente ser relacionados a seus descendentes, e a evolução dos modernos planos de organização anatômica ocorreu com rapidez. Gould nos diz que Darwin rejeitou a Teoria da Transição Rápida, afirmando que podem ter existido mares abertos onde hoje estão nossos continentes, e os continentes atuais ergueram-se numa área que não acumulou nenhum depósito de sedimentos durante o Pré-Cambriano, e as regiões de águas rasas que receberam esses sedimentos estão em locais inacessíveis nos oceanos.

Walcott compartilha das idéias da Teoria do Artefato. Para ele, a vida nos mares pré-cambrianos era numerosa e diversificada.

Walcott não foi capaz de atribuir aos organismos de Burgess a singularidade tão evidente porque novos filos representariam um risco para suas próprias crenças, segundo Gould. Por isso forçou a inclusão desses organismos dentro dos filos modernos. O autor nos afirma ainda que a nova concepção de Whittington sobre Burgess esteve ao alcance de Walcott. Os mesmos organismos, a mesma tecnologia, o mesmo ferramental. O que faltou a Walcott foi o tempo para interpretar corretamente toda a mensagem inserida na complexidade anatômica desses organismos.

Na subdivisão "Burgess Shale e a natureza da História", Gould nos fala sobre "Ciência", "Maneira Científica" e "Método Científico", no sentido de estereotipar o que há de pior na ciência. Diz que vários conceitos, como experimento, quantificação, repetição, predição e limitação da complexidade a poucas variáveis passíveis de controle e manipulação são válidos, mas como usá-los em eventos únicos, como a queda de corpos celestes que causaram extinções no Cretáceo? Afirma que as técnicas limitadas do "método científico" não podem chegar ao âmago desse singular evento envolvendo criaturas que morreram a muito tempo numa Terra em que o clima e a posição dos continentes eram muito diferentes dos de hoje.

A seguir, Gould nos apresenta uma ampla discussão sobre explicações históricas e resultados experimentais, e sobre o "rebaixamento" das ciências que tratam da complexidade histórica. O autor lamenta a aceitação dessa situação por vários cientistas. Defende o desafio à ordem existente e a pluralidade em condições de igualdade.

A raiz do problema, segundo ele, é que as ciências históricas utilizam um tipo diferente de explicação, baseada na comparação e na riqueza de dados provenientes da observação.

Para Gould, Darwin foi o maior de todos os cientistas históricos. Ele não apenas descobriu indícios convincentes de que a evolução é o princípio coordenador da história da vida, mas escolheu para tema central de todos os seus escritos o desenvolvimento de uma metodologia diferente, porém rigorosa para a ciência histórica. Mas os cientistas históricos precisam ir além de simples demonstração. Têm também que convencer outros cientistas que essas explicações históricas são também informativas.

No anexo "Uma defesa do elevado status da História Natural", Gould nos diz que, apesar de Whittington e seus colegas escreverem artigos nas mais diversas publicações, tanto para o mundo científico como para leigos, a história de Burgess Shale não empolgou o público.

Gould, nesse ponto, nos apresenta Luie Alvarez, que relacionou a extinção do Cretáceo com o choque de corpos celestes contra a superfície. Nos traz de volta a idéia de que tratar de dinossauros, grandes e ferozes, aliadas a cientistas de jaleco branco, manipulando equipamentos caros, Prêmio Nobel, tudo isso atrai mais atenção do público que a descrição de animais bizarros datados do início da vida. Novamente o conflito ciência pura e ciência histórica.

CAPÍTULO CINCO - MUNDOS POSSÍVEIS: O PODER DA

"SIMPLES HISTÓRIA"

No Capítulo 5 - "Mundos possíveis: o poder da simples história", Gould nos apresenta argumentos, através de exemplos concretos de que alternativas dignas, razoáveis e fascinantes poderiam ter produzido uma história da vida substancialmente divergente.

Gould inicia sua explanação com um dos grupos modernos, um com diversidade explosiva e outro quase extinto. Por ocasião de Burgess, teríamos sido capazes de saber qual seria bem sucedido e qual quase se extinguiria?

A seguir, nos mostra dois filos de invertebrados. O primeiro é o grupo dos poliquetos, que representam uma das grandes histórias de sucesso de vida, com 87 famílias, 1.000 gêneros e aproximadamente 8.000 espécies. O segundo, o grupo dos priapulídeos, com apenas 15 espécies. Por viverem em ambientes incomuns, severos, pode-se argumentar que os priapulídeos têm conseguido se manter precariamente no mundo por terem optado por locais hostis mas desprovidos de competição mais feroz.

Se hoje é assim, nos tempos de Burgess a situação era diferente. Houve época em que nenhum organismo de corpo mole rivalizava com eles em abundância. Mas não há como reproduzir as condições que causaram esse declínio atual.

Outras hipóteses são aventadas por Gould. Um exemplo é Diatryma gigantes, uma ave predadora enorme encontrada no Eoceno. Embora o privilégio do domínio entre os carnívoros pudesse ter cabido às aves, os mamíferos prevaleceram. O porquê disso não sabemos. Também na América do Sul as aves fizeram uma segunda e independente tentativa de se tornarem os carnívoros dominantes. E conseguiram.

Na divisão "Padrões gerais que ilustram a contingência"; Gould afirma que a divisão anterior faz com que a contingência deixe de ser uma afirmação geral para se deslocar para a esfera das coisas tangíveis.

O autor novamente evoca Darwin ao sugerir que, se o tempo geológico tivesse atuado exatamente como Darwin imaginou, ainda assim a contingência teria seu lugar. Darwin encara a história da vida de acordo com as metáforas da competição e da cunha. O processo de substituição avança através da competição, segundo os princípios da seleção natural, e os melhores adaptados vencem. As extinções não ocorrem de forma rápida e simultânea, mas cada grupo vai desaparecendo aos poucos, com seu declínio relacionado à ascensão de outro grupo. Darwin também reconheceu que os principais indícios da evolução deveriam ser procurados nas singularidades, curiosidades e imperfeições. Como exemplo, Gould cita as baleias com ossos pélvicos vestigiais e pandas com seus polegares imperfeitos.

O autor também cita que a contingência tem papel até mesmo no mundo concebido por Darwin. Mas reconhece que a natureza não é ordenada de forma contínua, onde o grande surge a partir do pequeno, mediante o acréscimo de tempo. Em seguida, Gould analisa dois padrões de grande alcance.

Na subdivisão "O padrão Burgess da máxima proliferação inicial", é necessário saber se Burgess foi um acontecimento fortuito ou tema geral na história da vida. Apesar de Burgess apresentar o padrão máximo de diversidade inicial de fósseis convencionais de partes duras, nenhum desses grupos sobreviveu ao Paleozóico. Mas nenhum desses grupos remotos apresenta qualquer sinal que estavam sendo eliminados em virtude da competição com os designs que iriam sobreviver. Gould conclui que o padrão de máxima amplitude inicial é uma característica geral der linhagens de vários tamanhos e de diferentes épocas, e não apenas dos grandes grupos da explosão cambriana.

Na subdivisão "Extinção em massa", Gould afirma que as extinções em massa têm sido relatadas desde a aurora da Paleontologia. Mas dois aspectos da Teoria de Darwin levaram os paleontólogos a incorporar as extinções em massa ao modelo cumulativo. O primeiro aspecto é interpretar as extinções em massa como artefatos de um registro fóssil imperfeito. Embora altas, as extinções se distribuíram de maneira bastante uniforme ao longo de milhões de anos, só transmitindo a impressão de simultaneidade geológica porque a maioria das épocas não está representado por nenhum sedimento, de modo que a prolongado período de extinção talvez esteja comprimido num único plano de estratificação. O segundo aspecto em que tais episódios eram especialmente rápidos, aumentando a pressão ambiental e acelerando o processo de previsível avanço.

Com o avanço das pesquisas e à luz de novos dados, Gould reconhece que as extinções em massa são mais freqüentes, rápidos, com uma magnitude mais devastadora e com efeitos muito diferentes do que o imaginado até então. As extinções em massa foram verdadeiras rupturas no fluxo geológico. Provavelmente são resultados de alterações ambientais de tamanha velocidade e tão drásticas que os organismos não mais conseguiram se adaptar.

Gould nos apresenta outra questão sobre as extinções em massa: elas obedecem a algum padrão, e quais as causas de padrão. Para tentar responder a essa questão, Gould nos apresenta dois modelos, o Modelo do Acaso, onde nos diz que, se uma extinção funcionar como uma loteria, prova-se a importância da contingência, e o Modelo das Regras Diferentes, onde o autor afirma que a maioria dos sobreviventes escapa da morte por razões específicas, muitas vezes por um complexo conjunto de causas. Mas também diz que os traços que aumentam a sobrevivência durante uma extinção o fazem de maneira que são incidentais e não guardam qualquer relação com as razões pelas quais originalmente evoluíram.

Gould teoriza que os animais evoluem de acordo com a seleção natural e por razões específicas. Com uma mudança nas regras advindas de uma extinção em massa, essas mesmas características que garantiram sua sobrevivência até então podem se transformar em sua sentença de morte. Declara ainda que animais de pequeno porte, por razões ainda ignoradas, parecem levar uma ligeira vantagem na maioria das extinções em massa, particularmente no Cretáceo, que extinguiu os dinossauros.

O autor cita também o sucesso das diatomáceas, que sobreviveram sem maiores problemas às extinções do Cretáceo, enquanto a maioria dos outros componentes do plâncton foi aniquilada, graças à sua capacidade de assumir a forma de "esporo latente" em condições adversas.

Esse modelo rompe a continuidade causal de Darwin, e favorece a contingência.

Na divisão "Sete mundos possíveis", partindo do pressuposto que o universo não é interligado, Gould considera sete cenários alternativos, em ordem cronológica a fim de culminar com o Homosapiens.

Na subdivisão "A Evolução da Célula Eucariótica", diz-se que a vida surgiu na Terra há aproximadamente 3,5 Ba. Os fósseis mais antigos que se tem notícia são células procarióticas de 3,5 Ba, e inclui os estromatólitos. As primeiras células eucarióticas surgiram há cerca de 1,4 Ma, e especialistas admitiam que estas são um pré-requisito para a complexidade multicelular. Mas há um longo intervalo desde o aparecimento das células eucarióticas até o surgimento de animais multicelulares, há cerca de 570 Ma. Esses longos intervalos sugerem um importante papel para a contingência e um número imenso de possibilidades irrealizadas.

Na subdivisão "A primeira fauna de animais multicelulares", inicialmente Gould nos mostra a linearidade, passando pelos procariotas, eucariotas e animais multicelulares até mo avanço até ma consciência. Em seguida, analisa mais profundamente essa questão.

Começa nos apresentando a Fauna de Ediacara. É importante por ser o único vestígio multicelular anterior à grande linha que separa o Pré-Cambriano do Cambriano. São organismos inteiramente desprovidos de partes duras. Se a identidade taxonômica pudesse ser mantida, então a suave continuidade do cone seria confirmada.

Dolf Seilacher, paleontólogo, propôs uma nova interpretação para a fauna de Ediacara. Para isso, apóia-se em dois argumentos, um negativo e um positivo. O argumento negativo é que, a despeito da semelhança exterior, esses organismos não poderiam ser associados a nenhum grupo existente. Seu argumento positivo é que os animais de Ediacara podem ser unificados taxonomicamente como variações de um único plano anatômico. Para Seilacher, com um design que não corresponde a nenhum plano anatômico moderno, as criaturas de Ediacara apresentam um experimento inteiramente distinto em matéria de vida multicelular que acabou fracassando.

Gould afirma que, no caso das criaturas de Ediacara tivessem obtido sucesso, dificilmente a vida teria podido chegar à consciência.

Na subdivisão "A primeira fauna da explosão cambriana", Gould nos diz que a primeira fauna conchosa, a Tomotiana, contém muito mais mistérios que precursores, apresentando espécimes que estão além dos limites das variações atuais. O mais impressionante é a enorme disparidade encontrada nos organismos da pequena fauna conchosa. As rochas tomotianas abrigam uma imensa variedade de fósseis que não podem ser classificados em nenhum filo moderno. Rozanov, principal especialista russo nessa fauna, afirmou que numerosas categorias taxonômicas se desenvolveram no início do período Cambriano e rapidamente se extinguiram.

Na subdivisão "A subseqüente origem cambriana da fauna moderna", a primeira fauna cambriana incluiu uma pletora de possibilidades alternativas, todas razoavelmente iguais e nenhuma levando até nossa espécie. Depois que as faunas modernas surgiram, na fase seguinte do Cambriano - Atdabaniana - então os limites e os canais estavam definidos. Burgess Shale representa a fase inicial e de máxima expansão da radiação atdabatiana.

Na subdivisão "A origem dos vertebrados terrestres", analisa-se a seguinte questão: a consciência humana é um produto imprevisível de um broto incindental ou a culminação de uma tendência inevitávelou, pelo menos provável. Por mais provável que fosse o aparecimento dos vertebrados, uma vez que eles surgiram, poderíamos executar a transição para a terra firme. Os vertebrados só puderam surgir graças a um pequeno grupo de peixes, que desenvolveram, por razões imediatas, um membro capaz de suportar seu próprio peso.

Na subdivisão "Passando a tocha aos mamíferos", conjectura-se o predomínio dos mamíferos sobre os dinossauros. Ambos surgiram quase ao mesmo tempo, no final do Triássico. Os mamíferos passaram 100 Ma "escondidos".

Os dinossauros mantiveram um domínio inconteste sobre todos os ambientes até desaparecerem num episódio de extinção em massa causado por um impacto de corpo celeste. Gould afirma que o desenvolvimento de nossa consciência deve-se diretamente à extinção dos dinossauros. Se tal não tivesse acontecido, os mamíferos ainda seriam pequenas criaturas se escondendo.

Na subdivisão "O origem do Homo sapiens", a opinião convencional é que a adoção da postura ereta liberou as mãos para o uso de armas e ferramentas e o feedback das possibilidades comportamentais assim abertas estimulou o desenvolvimento de um cérebro maior. Mas este foi um processo global abrangendo todos os membros da linhagem humana.

Gould nos apresenta o seguinte quadro: o H. erectus foi a primeira espécie a emigrar da África e estabelecer-se na Europa e na Ásia. Mas voltando ao impacto global, imagina-se que todas as populações de H. erectus subiram juntas a escada das capacidades mentais. Mas uma nova concepção alternativa, baseada em diferenças genéticas entre grupos modernos, o Homo sapiens surgiu como um detalhe evolutivo, uma entidade definida, uma população pequena e coesa que se separou de sua linhagem ancestral na África. Essa teoria apresenta implicações interessantes: o Homo erectus asiático desapareceu sem deixar descendência e não é nosso ancestral direto; os homens de Neanderthal eram nossos parentes colaterais e não contribuíram para nossa herança genética. Gould afirma que somos uma frágil e improvável entidade que, após um começo precário como uma pequena população africana, por sorte foi bem-sucedida.

Gould diz ainda que, se o Homo sapiens tivesse fracassado, nenhuma outra espécie teria sido bem sucedida. Apesar de outras espécies apresentarem habilidades mentais elevadas, apenas ela apresenta evidências diretas de raciocínio abstrato. Afirma ainda que embora outros hominídeos possam ter chegado ao limiar do que conhecemos como possibilidades humanas, muitos cenários plausíveis jamais chegariam a produzir um nível de desenvolvimento mental como o nosso.

Na divisão "Um epílogo sobre Pikaia", Gould explica que deixou o melhor para o final.

Walcott colocara Pikaia entre os vermes poliquetos, por ser um organismo laterocomprimido em forma de fita. Simon Conway Morris, ao estudá-lo mais detidamente, concluiu que esse organismo não era um verme anelídeo. Era um cordado, o mais antigo ancestral imediato que se tem registro do nosso próprio filo. Esse animal assemelhava-se, no nível geral, com o moderno anfioxo, e todos os fósseis de verdadeiros vertebrados (agnatos) são posteriores ao Pikaia.

Gould não afirma categoricamente que esse animal é o verdadeiro ancestral dos vertebrados. Outros cordados devem ter habitado os mares do Cambriano. Mas, em virtude da raridade desse animal em Burgess e da ausência dos cordados em outros sítios do Paleozóico Inferior, ele desconfia que nosso filo não estava incluído entre os bem-sucedidos do Cambriano. Esse organismo é o elo que faltava entre Burgess Shale e a evolução do homem.

POR QUE O HOMEM EXISTE? PORQUE PIKAIA SOBREVIVEU Á DIZIMAÇÃO DE BURGESS SHALE.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

GOULD, S.J.. 1990. Vida Maravilhosa: O acaso na evolução e a natureza da história. Companhia das Letras, São Paulo.