VIDA DE MÃE E PESQUISADORA EM TEMPOS DE QUARENTENA

 

Débora Borges Martins[1]

 

Introdução

A presente análise pessoal passou por algumas etapas de construção. Passando pela rede social, algo me chama muita atenção: alguém publicou uma chamada pública para descrever relatos pessoais dos enfrentamentos durante a quarentena: minha vida como mãe, minha vida como dona de casa/esposa, profissional e pesquisadora. Algo real, que realmente me inspirava, como um desabafo, já que não podia pelo presente momento de distanciamento social, marcar um chá com as amigas para desabafar, de sair, de sentar em um shopping e simplesmente ver a vida passar... De uma hora para outra tudo mudou! Quatro meses em casa, sem poder viajar, encontrar com os colegas do curso, sem participar das corridas de rua, simplesmente se distanciar, mas, agora como fica esse isolamento? Como está o nosso psicológico, a nossa privacidade? A nossa produtividade? Essa oportunidade ímpar das organizadoras me ajudou a olhar para mim mesma e ver como estava indo como mulher além de ver dentro de mim essa realização, não foi uma tarefa fácil, pois as lágrimas vieram junto com o pensar. A escrita soou como uma grande amiga na solidão da madrugada...

Não sairemos os mesmos desta pandemia, com certeza sairemos transformados, com certeza os professores agora serão mais valorizados, a ciência também, pelo menos é o que esperamos. Afinal, nunca se valorizou tanto o sistema único de saúde, há uma espera pelo milagre da vacina contra a COVID, a situação econômica do país e o medo que assola todas as famílias. Com isso, neste contexto pandêmico, nós mães viramos professoras de nossos filhos, e eu, como gestora professora formativa, aluna do curso de mestrado e esposa, me pergunto: como dar conta de tudo isso? O ensino inverteu, tivemos que nos reinventar como mães profissionais e orientandas.

MINHA VIDA COMO MÃE

Sou mãe de dois filhos lindos, inteligentes e criativos. Quando digo criativos, peço para que meu querido leitor imagine uma casa com mil brinquedos esparramados, mas imaginem que os brinquedos que mais chama a atenção dessas crianças agora são caixas de papelão, garrafas, vasilhas, baldes, pedaços de madeira, areia etc. Minha sala se tornou uma ponte com travesseiros e lençóis viraram casinha. Apesar disso, esse espaço precisa também tornar-se um espaço formativo. Tenho um filho na fase final da etapa três da Educação Infantil e outro no quarto ano do Ensino Fundamental, é muita energia e criatividade, afinal eles também tiveram que se reinventar e aproveitar o espaço que têm com as novas medidas de distanciamento.

O Levi, de cinco anos, estuda pela manhã. Minha provação começa logo cedo. Tirar ele da cama não é tarefa fácil, imagine fazer com que ele compreenda que apesar de ele estar em casa ele precisa continuar tendo responsabilidades com horário e rotina. Tarefas essas bastante difíceis, mas que, em minha opinião, precisam ser levadas em conta. Afinal, isso faz parte do currículo da Educação Infantil, trabalhar a vida cotidiana agregando valores, responsabilidades e respeito.

Todos os dias, a escola procura desenvolver atividades prazerosas e significativas, levando em consideração o contexto e propiciando, com a nossa ajuda, ambiente favorável de descobertas, exploração além de manter o vínculo com as crianças por meio do ambiente virtual. Fazer com o Levi não perca o vínculo com a escola e acompanhe os coleguinhas e a professora é minha missão todas as manhãs. Por ser o filho caçula, chora muito, dá birra, briga com o irmão, e eu ali me mantendo sempre firme para conciliar tudo isso.

As aulas do meu filho mais velho, o Davi, são no período da tarde. Ele tem nove anos e, como disse anteriormente, ele está no quarto ano do ensino fundamental. É uma criança muito inteligente, mas que precisa de atenção, sentar do lado e assistir as aulas pelo ambiente virtual junto com ele, se deixar ele enrola, quer apenas ficar de conversa com os colegas na mídia social. Enfim, as áreas do conhecimento já são mais complexas e precisam de mediação e acompanhamento.

Sobre este novo contexto de aulas, as que continham experiências sempre eram as mais atrativas. Fizemos tinta de carvão de terra, diversas brincadeiras com interação da família, pinturas, brinquedos não estruturados etc. Com certeza, posso afirmar que professores de meus filhos foram muito criativos e souberam combinar bem o contexto com as atividades das crianças e integração da família.

Nos primeiros dois meses, foi mais fácil mantê-los em casa, participar direitinho das aulas, mas depois foi complicando, as crianças ficaram mais estressadas, agitadas, pedindo para sair, querendo comer fora, brincar com os amigos, e confesso que, com toda instrução que tenho há dias, as crises de ansiedade vêm, e eu desabo. Me pego pensando o que irei fazer para protegê-los, e se as aulas voltarem para o modelo presencial, e se eles não forem assintomáticos e o caso da síndrome multissistêmica associada à COVID, e se caso eles forem e eu for um alvo ou minha mãe que se enquadra no grupo de risco?

Todas essas minhas indagações muitas vezes resultam em insônias, principalmente quando a COVID 19 acometeu pessoas conhecidas e minha família. Manter a fé foi o caminho que encontrei para me ajudar nessa crise existencial, porém ver meus filhos orando para que o papai do céu mate esse vírus para que eles possam voltar a brincar com os amiguinhos me corta o coração. Percebi o valor das interações e como fazem falta não só para mim, mas também para eles.

Uma das coisas que me chocou muito foram os desenhos das crianças. Um dia cheguei ao quarto, peguei o desenho delas, era sobre o que elas estavam sentindo falta e as brincadeiras que queriam brincar, notei que, em nenhuma dessas brincadeiras, nem eu e nem o pai dos meninos estavam incluídos, o que me fez perceber que nenhuma tecnologia é capaz de substituir as relações entre os pares e como tudo isso têm feito falta para eles.

Peço a Deus, todos os dias, que tudo isso passe logo e que a tão sonhada normalidade volte a reinar, que Ele dê sabedoria aos cientistas e que logo essa vacina esteja disponível ao mundo inteiro.

MINHA VIDA COMO PROFISSIONAL

Sou diretora de escola de Educação Infantil, coordeno 20 profissionais e preciso me manter forte para ser o apoio de pais, responsáveis e funcionários da escola. Neste período o município optou por continuar mantendo o vínculo com as famílias. Criamos o blog da escola, grupos de whatsapp, em que os professores interagem com as crianças, sugerem atividades, acompanham os pais no processo de desenvolvimento, levando em consideração os direitos de aprendizagens da criança previsto pela BNCC[2], entendendo o contexto atual e a realidade de cada criança, além de levar em conta as aprendizagens vividas pela criança no cotidiano articuladas ao saber sistematizado.

Além disso, assumi o papel de organização dos cursos formativos no ambiente virtual, venho dialogando e orientando as professoras nesse processo de formação contínua, buscando contribuir na construção do conhecimento e desenvolvimento profissional. Diante disso, posso dizer que esse processo também tem contribuído para o [3]meu desenvolvimento, aprendi a escutar, a entender as indagações, as situações e buscar junto com elas a melhor forma de resolver os dilemas enfrentados no decorrer dessa pandemia.

Sempre me pego refletindo se estamos fazendo o correto. Como está sendo oferecida essa educação? E como mãe e profissional, penso que o mais importante nesse momento é pensar no bem-estar dessa criança, de modo que algo que tem me preocupado muito é se está tendo alimentação para elas, pois, mesmo após o reconhecimento da Educação Infantil como primeira etapa da Educação básica pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LBD 9394/96³) e as Diretrizes Curriculares para Educação Infantil [4]firmarem isso, ainda temos a realidade assistencialista dentro da nossa escola. Por esse motivo, me preocupo com essas crianças, com os cuidados que elas estão tendo, pois nem todos os ambientes são favoráveis.

Outro problema é a devolutiva, muitos pais sumiram, embora tentemos entrar em contato, eles simplesmente não querem saber, acham melhor as crianças perderem o ano do que colaborar com experiências que irão contribuir com o desenvolvimento dessa criança.

Outra coisa que muito me preocupa e me tira o sono é pensar nesse retorno. Como organizar tudo isso? Como garantir qualidade de Educação e bem-estar em um contexto pandêmico? Como impedir abraços? Não quero viver isso... Simplesmente não sei como pensar em uma volta na Educação Infantil impedindo interação. Criança troca garrafinha, chupetas, chupa o dedo, brinquedos as cadeiras, como impedir tudo isso? Como garantir a saúde mental dos funcionários com essa volta? E os bebês? E os maternais, eles não usam máscara... Imagina esse bebê com esse funcionário, esse bebê precisa ser acolhido, como esse profissional vai trabalhar com esse bebê, com equipamentos de proteção individual? Como vai ficar o emocional dessas crianças bem pequenas? Isso me fez refletir e embora eu tente buscar respostas em várias lives, ainda não sei o que fazer e como direcionar tudo isso.

MINHA VIDA COMO CIENTISTA PESQUISADORA

Sou mestranda em Educação pela Universidade de Uberaba, um sonho que estava distante e neste ano de 2020 começou a ganhar forma. Cursei, neste primeiro semestre, duas disciplinas eletivas e uma obrigatória. Fiz artigos, escrevi memórias de aprendizagens, mas confesso que estou lenta, não estou conseguindo produzir com todas essas inquietações, sento no computador para escrever e parece que as ideias somem.

Estou ali assistindo a aula no Meet e ao mesmo tempo as crianças me chamam, brigam, preciso ficar de olho na aula delas. Não tem sido uma tarefa fácil. O bom desse ambiente é que as aulas ficam gravadas e aí posso assistir quando as crianças dormem. Minha orientadora também é flexível e tem me ajudado muito nesse sentido.

Apesar de estar diante de todo esse contexto, procuro me atentar às aulas e estar em dia com as minhas produções. Tenho lido bastante sobre o meu objeto de pesquisa, tenho procurado sempre me inteirar dos assuntos atuais, buscando conversar com os meus colegas, trocando ideias, fazendo uso dessa tecnologia que tenho em mãos da melhor forma possível.

Sempre que estou realizando alguma atividade na cozinha ou mesmo na casa, procuro lives que falam sobre meu objeto de estudo que é a Educação Infantil e vou ouvindo enquanto limpo a casa ou passo uma roupa. E posso garantir que tenho aprendido muito dessa maneira. Eu prometi para mim mesma que quero esse título e vou correr atrás e persegui-lo. Nem passa pela minha cabeça em desistir, mesmo com essa situação adversa em que o mundo inteiro atravessa, quero aproveitar esse tempo para evoluir. Outra coisa que tenho feito é a leitura dos textos, montado a síntese e os mapas conceituais além de colocar na pasta por ordem, o que me ajuda a produzir memórias significativas sobre o assunto.

Embora o mundo inteiro esteja vivenciando o mesmo contexto histórico do “Novo Corona Vírus” precisamos nos inovar e buscar da melhor forma possível vivenciar nossas escolhas. Vivenciar intensamente, mesmo que os conflitos na mente e o medo venha nos atordoar, mas temos que nos manter firmes para não desistir e sairmos transformados disso tudo.

Não sou uma pessoa que tem habilidades com a tecnologia, mas essa pandemia me ensinou muita coisa. Nunca pensei em aprender tanto em tão pouco tempo, aprendi a fazer seminários onlines, lives e até reunião aberta. Tudo isso na raça. Porém, ainda estou em fase de experiência, mas essa busca pelo aprender, pela pesquisa tem me ensinado que todo ser humano é inacabado e que estamos sempre em construção e,como nos diz Freire (1979)[5], com a liberdade o ser humano foi transformando a vida em existência e o suporte em mundo, sendo essa existência que nos faz autônomos, que nos faz assumir nossas escolhas, nossas responsabilidades. E eu escolhi tudo isso e preciso viver, mesmo que o imprevisto dessa pandemia tenha chegado no ano em que escolhi viver meu sonho. Nesse sentido,eu tenho liberdade para escolher entre ficar estática ou transformar contextos. Diante disso, eu optei a ser sujeita em meu processo em construção.

“Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.”

[6]Paulo Freire (1979,p.84)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aliar a vida de mãe, de pesquisadora e profissional não têm sido fácil. Apesar de estar inserida em um contexto crítico, somos frutos de nossas escolhas e, pensando assim, eu tenho o casamento que escolhi ter, tive filhos por opção, ingressei em uma faculdade de Pedagogia, me especializei na área, prestei um concurso de provas e títulos e fui aprovada. Escolhi estar à frente de uma instituição como diretora, sonhei com o título de mestrado que ainda está em construção e escolho terminar. Mesmo em meio a tanta adversidade, eu quero contribuir da melhor forma possível para que o ambiente que eu trabalho ofereça às crianças uma educação de qualidade.

A pesquisa me incentivou a não ser uma pessoa inacabada; que as teorias são hipóteses que precisam ser experimentadas e que o meu processo de busca e experimentação precisa de embasamento teórico e prático, o que depende de mim e das minhas escolhas. Isso me fez refletir como ser pensante e atuante. O pesquisador vê a realidade e confronta. E isso faz parte de minha busca, contribuir para uma educação que realmente foque no aprendiz como protagonista, sendo essa pedagogia o meu objeto de pesquisa, que se torna incrível ao pensar em uma criança que tem o mundo a explorar, a descobrir...  Além de ver a escola como confrontante dessa visão que a criança tem de mundo, articulando ideias e experiências, mostrando para ela que a aprendizagem não está dentro nem fora dela, mas em sua relação com o mundo.

Pensar em como tenho me constituído como mãe, profissional e pesquisadora neste contexto histórico, me fez pensar em minhas responsabilidades, pensar que muitos dependem de mim. Não posso simplesmente pelo mundo estar em crise, fazer um distanciamento, me isolando do mundo. Em uma das minhas aulas em um ambiente virtual, meu professor Orlando Fernández Aquino, embasado na teoria de Vygotski, falou algo que quero levar para minha vida inteira como filosofia “Os grandes líderes crescem na crise”. Desse modo, não importa o que estamos enfrentando, o mundo precisa de líderes, pessoas capazes de transformarem o mundo. Com isso, precisamos formar na criança desde cedo pensamento de líder, pois o líder pensa, forma opinião, colabora para o bem coletivo, engaja no processo de mudança, já o seguidor se conforma com aquilo que a sociedade o impõe, ele não se reconhece como sujeito transformador, e Freire (1987.p 38) [7]fala dessa importância de usar a teoria e aplicar na prática. Precisamos ter consciência da realidade que estamos enfrentando e compreender a necessidade de nos reconstruir como seres inacabados e nos tornamos sujeitos em nosso processo de evolução como líderes, assumindo o nosso papel na sociedade e nosso processo formativo.

Ser pesquisador é algo incessante na busca pelo aprender, é crescer em meio a crise, a adversidade. É pensar em contribuir com o mundo, deixando rastros pela história. Quero que meus filhos um dia tenham orgulho da mãe que  tiveram, quero que as futuras gerações pensem em como nós mulheres, em meio a pandemia, crescemos como profissionais e não ficamos estáticas, foi difícil? Sim! Mas, nos tornamos grandes líderes, fizemos dos nossos filhos seres pensantes, viramos professoras deles, trabalhando em parceria com a escola, nos reinventamos como profissionais e não deixamos de lado nosso objeto de pesquisa, mas colaboramos para que as futuras gerações vejam como nós mulheres fizemos da adversidade um salto para o processo de transformação.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Diretrizes e bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em: 14. Jun.2020.

 

BRASIL. Diretrizes e bases da Educação Nacional. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/conselho-nacional-de-educacao/base-nacional-comum-curricular-bncc. Acesso em: 14. Jun. 2020.

 

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 50. ed. São Paulo: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 Paz e Terra, 1979.

 

 

 

 

¹ Licenciada em Pedagogia com habilitação em Administração Escolar pela Universidade de Uberaba- UNIUBE/MG. Especialização em Expressão Ludocriativa pela Universidade de Uberaba- UNIUBE/MG. Pós-Graduação Lato Sensu em Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia na área da Educação pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Pós-Graduação em Psicopedagogia pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá/FIJ/RJ. Professora de Educação Básica I com experiência em Educação Infantil (Escola Maiêutica de Igarapava/SP) Ensino Fundamental (Escola Maiêutica de Igarapava/SP), (EMEF Oswaldo Campos/Aramina/SP) Ensino Médio/Técnico: ETEC Antônio Junqueira da Veiga/Centro Paula Souza. Atualmente: Diretora de Escola na EMEI Orlando Gomes da Silva e mestranda na área da Educação pela Universidade de Uberaba/MG.

 

 

 

[3] BRASIL. Diretrizes e bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em: 14. Jun.2020.

 

[3]Id, disponível em: http://portal.mec.gov.br/conselho-nacional-de-educacao/base-nacional-comum-curricular-bncc.

 

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.   Parecer nº 20/2009/DF. Brasília: Ministério da Educação, 9 dez. 2009. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/pceb020_09.pdf.

 

[5] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 50. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

 

 

 

[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 50. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

 

[6]Id. 1979, p. 84.

 

[7] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 50. ed. São Paulo: FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 Paz e Terra, 1979.