Vicente de Carvalho não é um dos nomes mais famosos do Parnasianismo no Brasil, ainda assim, ocupa uma posição de relevo entre os que comumente recebem destaque nessa escola literária, a saber, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac, a trindade parnasiana.

Este artigo, portanto, se voltará à poesia de Vicente de Carvalho, consagrado “o poeta do mar” por Euclides da Cunha, quando esse lhe prefaciou o livro Poemas e Canções em 1908, e considerado “um dos maiores poetas brasileiros” por Mário de Andrade. O poeta, e também contista, foi  possuidor de uma linguagem simples e clara, além de um lirismo extraordinário, tendo seu veio artístico servido principalmente as belezas das praias e do oceano, de fato, sua maior paixão.

É de Alfredo Bosi a seguinte referência: “Renovando com brio a poética realista a cavaleiro do novo século, Vicente de Carvalho partilhou com Bilac um vasto círculo de entusiastas, sendo até hoje um dos poucos poetas anteriores ao Modernismo que sobrevive no gosto do leitor médio. (...).” (in História Concisa da Literatura Brasileira, Cultrix, 3 ed., p. 260.)

Nascido em Santos, em 1866, mesmo lugar aonde veio a falecer em 1924, formou-se em Direito em São Paulo, exerceu o cargo de Juiz e também de Desembargador. Atuou na campanha republicana, mas opôs-se a Deodoro, quando esse deu o derradeiro golpe à coroa, em 1889. Quanto à literatura, desde o início foi ligado a um grupo de tendência parnasiana, recebeu atenção a partir de Rosa, Rosa de Amor de 1902, porém, foi realmente reconhecido, seis anos depois, com a publicação de Poemas e Canções. O poeta pertenceu às Academias Brasileira e Paulista de Letras.

Suas produções encontram-se compiladas nas obras Ardêntias, Relicário, Rosa, Rosa de Amor, Poemas e Canções, Versos da Mocidade, Verso e prosa, incluindo o conto Selvagem, Páginas soltas, A voz dos sinos e Luizinha, contos.

Nas palavras de Octávio D’Azevedo, “[...] Bem antigas e profundas eram, realmente, as emoções de Vicente em face do mar [...]” (in Vicente de Carvalho e os Poemas e Canções, José Olympio Editora, p.222.) e, de fato, o poeta, referindo-se ao mar das praias de sua meninice, as de Santos, exprimiu os seus mais belos e íntimos sentimentos, todo o seu lirismo.

Assim, apresentar-se-ão, aqui, alguns de seus poemas que tematizam o mar, ou que o mencionam com alguma relevância, caso de “A voz do sino”, “Olhos verdes” e “A flor e a fonte”. Contudo, vale lembrar também de que a poesia vicentina transcende essa temática e enfoca outros assuntos e cenários.

 

POEMAS E CANÇÕES


PALAVRAS AO MAR

 

Mar, belo mar selvagem

Das nossas praias solitárias! Tigre

A que as brisas da terra o sono embalam,

A que o vento do largo eriça o pêlo!

Junto da espuma com que as praias bordas,

Pelo marulho acalentada, à sombra

Das palmeiras que arfando se debruçam

Na beirada das ondas – a minha alma

Abriu-se para a vida como se abre

A flor da murta para o sol do estio.

Quando eu nasci, raiava

O claro mês das garças forasteiras;

Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,

Nadando em luz na oscilação das ondas,

Desenrolava a primavera de ouro:

E as leves garças, como folhas soltas

Num leve sopro de aura dispersadas,

Vinham do azul céu turbilhonando

Pousar o vôo à tona das espumas...

É o tempo em que adormeces

Ao  sol que abrasa: a cólera espumante,

Que estoura e brame sacudindo os ares,

Não os sacode mais, nem brame e estoura;

Apenas se ouve, tímido e plangente,

O teu murmúrio; e pelo alvor das praias,

Lange, numa carícia de amoroso,

As largas ondas marulhando estendes...

Ah! Vem daí por certo

A voz que escuto em mim, trêmula e triste,

Este marulho que me canta na alma,

E que a alma jorra desmaiado em versos;

De ti, de ti unicamente, aquela

Canção de amor sentida e murmurante

Que eu vim cantando, sem saber se a ouviam,

Pela manhã de sol dos meus vinte anos. 

 

Ó velho condenado

Ao cárcere das rochas que te cingem!

Em vão levantas para o céu distante

Os borrifos das ondas desgrenhadas.

Debalde! O céu, cheio de sol se é dia,

Palpitante de estrelas quando é noute,

Paira, longínquo e indiferente, acima

Da tua solidão, dos teus clamores...

Condenado e insubmisso

Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo

Uma alma sobre a qual o céu resplende

– Longínquo céu – de um  esplendor distante.

Debalde, ó mar que em ondas te arrepelas,

Meu tumultuoso coração revolto

Levanta para o céu, como borrifos,

Toda a poeira de ouro dos meus sonhos.

Sei que a ventura existe,

Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa,

Como dentro da noute amortalhado

Vês longe o claro bando das estrelas;

Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas

Da alma entreabrindo, subo por instantes...

Ó mar! A minha vida é como as praias,

E o sonho morre como as ondas voltam

                          * 

Mar, belo mar selvagem

Das nossas praias solitárias! Tigre

A que as brisas da terra o sono embalam,

A que o vento do largo erriça o pelo!

Ouço-te às vezes revoltado e brusco,

Escondido, fantástico, atirando

Pela sombra das noutes sem estrelas

A blasfêmia colérica das ondas...

Também eu ergo às vezes

Imprecações, clamores e blasfêmias

Contra essa mão desconhecida e vaga

Que traçou meu destino... Crime absurdo

O crime de nascer! Foi o meu crime.

E eu expio-o vivendo, devorado

Por esta angústia do meu sonho inútil.

Maldita a vida que promete e falta,

Que mostra o céu prendendo-nos à terra,

E, dando as asas, não permite o vôo! 

                            *

Ah! Cavassem-te embora

O túmulo em que vives – entre as mesmas

Rochas nuas que os flancos te espedaçam,

Entre as nuas areias que te cingem...

Mas fosses morto, morto para o sonho,

Morto para o desejo de ar e espaço,

E não pairasse, como um bem ausente,

Todo o infinito em cima de teu túmulo!

Fosses tu como um lago,

Como um lago perdido entre montanhas:

Por só paisagem – áridas escarpas,

Uma nesga de céu como horizonte...

E nada mais! Nem visses nem sentisses

Aberto sobre ti de lado a lado

Todo o universo deslumbrante – perto

Do teu desejo e além do teu alcance!

Nem visses nem sentisses

A tua solidão, sentindo e vendo

A larga terra engalanada em pompas

Que te provocam para repelir-te;

Nem, buscando a ventura que arfa em roda,

A onda elevasses para a ver tombando,

– Beijo que se desfaz sem ter vivido,

Triste flor que já brota desfolhada...   

                           *

Mar, belo mar selvagem!

O olhar que te olha só te vê rolando

A esmeralda das ondas, debruada

Da leve fímbria de irisada espuma...

Eu adivinho mais: eu sinto... ou sonho

Um coração chagado de desejos

Latejando, batendo, restrugindo

Pelos fundos abismos do teu peito.

Ah, se o olhar descobrisse

Quanto esse lençol de águas e de espumas

Cobre, oculta, amortalha!... A alma dos homens

Apiedada entendera os teus rugidos,

Os teus gritos de cólera insubmissa,

Os bramidos de angústia e de revolta

Se tanto brilho condenado à sombra,

De tanta vida condenada à morte!

                           *

Ninguém entenda, embora,

Esse vago clamor, marulho ou versos,

Que sai da tua solidão nas praias,

Que sai da minha solidão na vida...

Que importa? Vibre no ar, acorde os ecos

E embala-se a nós que o murmuramos...

Versos, marulho! Amargos confidentes

Do mesmo sonho que sonhamos ambos! 

NO MAR LARGO

 

            Ó lua bendita

            Que vens clarear

            A sombra infinita

Da noute no mar!

Como princesa encantada

Que um leve sonho conduz,

Surges do mar, coroada

De um ninho de ouro e de luz.

Surges; e à tua presença,

O céu, criado por ela,

De dentro da noute imensa

Surge, e se azula, e se estrela.

            Ó lua bendita

            Que vens clarear

            A sombra infinita

            Da noute no mar!

Surgida do mar infindo,

O infindo céu te seduz

– Campo em flor que vês fulgindo

em flores de ouro e de luz;

Teu passo, lento, caminha...

Onde vais? É longe? É perto?

Sobes, absorta e sozinha,

Pelo azul, vasto e deserto.

            Ó lua bendita

            Que vens clarear

            A sombra infinita

            Da noute no mar!

Lua, lua, não te apresses:

Mais sobes, mais se reduz

No alvor em que empalideces

Teu nimbo de ouro e de luz...

Onde o teu sonho te arrasta?

A que destino? A que termo?

Segues... A noute é tão vasta

Pelo azul do céu tão ermo...

            Ó lua bendita

            Que vens clarear

            A sombra infinita

Da noute no mar!

Tão alto que tu subiste!

Tão longe!... Do céu a flux,

Vagueias, pálida e triste,

Entre as flores de ouro e luz...

Como entristece da tua

Ausência, ou das tuas mágoas

O mar que deixaste, ó lua,

Lua surgida das águas!

            Ó lua bendita

            Que vens clarear

            A sombra infinita

Da noute no mar!

Como uma lágrima prestes

A rolar, pairas suspensa

Lá dos páramos celestes,

Lá do azul da noute imensa:

De todo o céu luminoso

Sobre todo o escuro mar

Desce o alvor silencioso

            Do luar...

E o mar, sob a triste alvura

Desse lívido sudário,

Ermo e vago, se afigura

Mais vago, mais solitário...

            Ó linda princesa

            Que vens aumentar

            A imensa tristeza

            Da noute no mar! 

A VOZ DO SINO

              I

Tarde triste e silenciosa

De vila de beira-mar:

Uma tarde cor-de-rosa

Que vai morrendo em luar...

Ao longe, a várzea cintila

De uns restos de sol poente;

Mas, por sobre toda a vila

- Do morro a que fica rente

Desce uma sombra tranquila -

E anoitece lentamente.

Não aparece viv’alma.

Nem rumor da natureza,

Nem eco de voz humana

Perturba a infinita calma,

A solitária tristeza

Da pobre vila praiana.

Nem se ouve o mar, longe, e manso.

A tudo, em redor, invade

Um ar de mole descanso...

Silêncio... Imobilidade...

Como que, interrompida,

A correnteza da vida

Fez neste ponto um remanso.

De súbito, rumoreja

Violentamente o ar:

Na torrezinha da igreja

Rompe o sino a badalar.

Ponho-me atento, a escutá-lo:

Que diz, alto e repentino,

Esse bater de um badalo

            Num sino?

Badalo que assim badalas

No sino que assim ressoa,

Aves, já nenhum voa:

Dormem; e vais acordá-las

            À toa...

Vais espantar quanta moça

Aí pelos arredores

Depois de um dia de roça,

De enxada e de soalheira,

Dedica a tarde ligeira

A tarefas bem melhores:

Pelas discretas beiradas

De alguma fonte; fiadas

Na proteção pitoresca

De ramagens, folhas, flores;

Que fazem elas? Coitadas,

Bebem, nas mãos, água fresca...

Lavam as caras tostadas...

Ou cuidam dos seus amores...

Badalo que assim badalas

No sino que assim ressoa,

Olha que vais espantá-las

            À toa...

Badalas... E eu que te falo

Não sei e nem imagino

Que pretendes tu, badalo,

A bater, bater no sino.

Talvez convoques à ceia

Pescadores que, lidando,

Nem viram que entardeceu;

Algum se estendeu na areia

A descansar; senão quando,

De cansado adormeceu...

Badala-me assim, badala:

Espera este dorminhoco;

Que ou ele, acordando, abala,

Ou fica dormindo – e em troco

Da sua madraçaria,

Chegando à casa atrasado

Acha no fogo apagado

A caldeirada já fria.

Badalo que assim badalas

No sino que assim atroa,

Porque é que tão alto falas

            À toa?

A andar com menos demora

Talvez tua voz compila

Certo rei dos mandriões

Encarregado em má hora

De, nas três ruas da vila,

Acender os lampiões...

Chamas, talvez, ao seu posto...

Quem? Algum camaroeiro

Retardado e mal disposto

A seguir para o pesqueiro?

Badala-lhe que é sol posto,

Que a lua cheia está fora,

Que, com pequena demora,

Vai a maré vazar:

Pra chegar à costeira

Tem ele uma légua inteira

De caminho a caminhar,

Vencendo-a de combro em combro,

De atoleiro em atoleiro,

Com o remo e o puçá no ombro

E, na mão, o candeeiro...

Ruidoso sino da vila!

E é por cousas tão vulgares

Que atroas assim os ares

De uma tarde tão tranquila?

                 II

 Badalo que assim badalas...

Que voz de repente soa

Acompanhando-te as falas

            À toa?

É voz de gente que canta...

De gente... E parece tanta.

Da humilde igreja irradia

E para o céu se alevanta

A reza da Ave, Maria.

 

As vozes e as badaladas

Confundem-se... Misturadas

No fervor da mesma prece,

Sobem juntas para o ar

Onde a lua resplandece

E a noute, imensa, parece

Feita do alvor do luar...

Sobre a soleira da porta

Da casa pegada à minha,

Vejo sentada a vizinha:

Moça, e bonita... Que importa?

 

Tem nos braços o filhinho;

Fala-lhe, toda carinho;

Ele ouve; sorri, depois,

Responde-lhe, balbucia...

E, de mãos postas, os dois

Murmuram a Ave, Maria

 

Ante meus olhos perpassa

Uma visão: imagino

Maria, cheia de graça,

Jesus, loiro e pequenino.

Uma tarde cor-de-rosa...

Uma vila assim modesta,

Assim tristonha como esta...

De pescadores, também...

Sobre a planície arenosa

Por onde o Jordão deriva

Pousa a sombra evocativa

Das montanhas de Siquém...

À porta de humilde choça,

Uma mulher... Quem é ela?

É pobre... é jovem... é bela...

E é Mãe: comovida, a espaços

O seu sorriso se adoça,

O seu olhar se ilumina

Para a figura divina

Do filho que tem nos braços.

Mostra-lhe, à noute que estrela

O céu e que terra ensombra,

Como a terra é toda sombra

Como o céu é todo luz...

E o filho, enlevado nela,

Em êxtase balbucia...

A primeira parte Ave, Maria

Quem a rezou foi Jesus.

Sigo o meu sonho... Imagino

Que, por todas essas roças

Aonde chega a voz do sino,

A sombra triste das choças

Frouxamente se alumia

Da vela de cera acesa

Ante uma Virgem Maria

Tendo nos braços Jesus.

É a hora augusta da reza...

Mães, pobres mães andrajosas

De filhinhos seminus,

No chão de terra ajoelhadas,

Dizem cousas misteriosas,

Palavras entrecortadas

De mágoa que se lastima,

De súplica, e de esperança

A essa outra Mãe que, lá em cima,

Na glória do céu, descansa

Do que passou neste mundo.

Ela que, com o mesmo eterno

Requinte do amor materno,

Sorriu a Jesus criança,

Chorou Jesus moribundo,

Lá, do alto céu infinito,

Olha com olhos de Santa

E de Mãe que já sofreu

Tanto coração aflito

Que se volta para o seu.

Na roça a miséria é tanta...

Quanta pobre gente, quanta,

Expia o ser mal nascida

Cumprindo a pena da vida

Como pregada a uma cruz;

E na angústia que a quebranta,

Somente espera e antegoza

A proteção milagrosa

Da virgem Mãe de Jesus!...

Na roça a miséria é tanta...

E cada choça sombria

Para o claro céu levanta

A reza da Ave, Maria.

 

Não, tu não falas à toa:

Errei, confesso-o... Perdoa,

Ó sino humilde da vila,

Que assim badalas, badalas,

Na paz da tarde tranqüila;

Ó sino, que também rezas,

Ó sino, que tanto falas

À terra, toda asperezas,

Como ao céu, todo luar,

Chamando, com o mesmo zelo,

Cada infeliz – a rezar,

Nossa Senhora – a atendê-lo.

Consolador de tristezas!

Semeador de esperanças!

Aqui nestas redondezas

Não há vida tão bonanças

Nem casebre tão remoto

Onde quanto o sino diz

Não abençoe um devoto,

Não console um infeliz...

Por essas várzes tão ermas

Onde, perdidas e sós,

Há tantas almas enfermas

De desesperos sem voz,

Onde tanto desdenhado

De Deus, que decerto o olvida,

Vive, até morrer, vergado

Ao peso da própria vida,

Vais chamar, em altos gritos

– Como se fosse a um dever –

desamparados e aflitos

– Par o consolo de crer.

E de casebre em casebre

Onde gente, a vida inteira,

Vive de trabalho e febre,

Morre de fome e canseira,

Afirmas à angustia surda

Do mísero tabaréu

Que o brejo em que ele chafurda

– é um caminho para o céu.

A cada pobre praiano

Que, na sua dura lida

De afrontar o largo oceano,

Vive de arriscar a vida.

Tu, consoladoramente,

Falas para lhe lembrar

Que há quem reze por a gente

– E há céu por cima do mar...

Da mesma igreja alvadia

Evolam-se as badaladas

E a reza da Ave, Maria.

 

Evolam-se... Misturadas,

Sobem juntas para o ar

Onde, pálida e sozinha

Tão alva, que resplandece,

Tão só, que vai a sonhar,

Caminha a lua, caminha,

E o céu, imenso, parece

Feito de sonho e luar...

Humilde sino da vila,

Que assim badalas, badalas,

Na paz da tarde tranqüila;

Não, tu não falas à toa:

Percebo o que e a quem falas...

                                             Perdoa!


ROSA, ROSA DE AMOR

                  I

                                    (Olhos verdes)

Olhos encantados, olhos cor do mar,

Olhos pensativos que fazeis sonhar!

Que formosas cousas, quanta maravilhas

Em voz vendo sonho, em voz fitando vejo;

Cortes pitorescos de afastadas ilhas

Abanando no ar seus coqueirais em flor,

Solidões tranquilas feitas para o beijo,

Ninhos verdejantes feitos para o amor...

Olhos pensativos que falais de amor!

Vem caindo a noute, vai subindo a lua...

O horizonte, como para recebê-las,

De uma fímbria de ouro todo se debrua;

Afla a brisa, cheia de ternura ousada,

Esfrolando as ondas, provocando nelas

Bruscos arrepios de mulher beijada...

Olhos tentadores da mulher amada!

Uma vela branca, toda alvor, se afasta

Balançando na onda, palpitando ao vento;

Ei-la que mergulha pela noute vasta,

Pela vasta noute feita de luar;

Ei-la que mergulha pelo firmamento

Desdobrado ao longe nos confins do mar...

Olhos cismadores que fazeis cismar!

Branca vela errante, branca vela errante,

Como a noute é clara! Como o céu é lindo!

Leva-me contigo pelo mar... Adiante!

Leva-me contigo até mais longe, a essa

Fímbria do horizonte onde te vais sumindo

E onde acaba o mar e de onde o céu começa...

Olhos abençoados, cheios de promessa!

Olhos pensativos que fazeis sonhar,

            Olhos cor do mar!

                    V

                                 (A flor e a fonte)

 “Deixa-me, fonte!” Dizia

A flor, tonta de terror.

E a fonte, sonora e fria,

Cantava, levando a flor.

“Deixa-me, deixa-me, fonte!”

Dizia a flor a chorar:

“Eu fui nascida no monte...

Não me leves para o mar”.

E a fonte, rápida e fria,

Com um sussurro zombador,

Por sobre a areia corria,

Corria levando a flor.

“Ai, balanços do meu galho,

Balanços do berço meu;

Ai, claras gotas de orvalho

Caídas do azul do céu!...”

Chorava a flor, e gemia,

Branca, branca de terror,

E a fonte, sonora e fria,

Rolava, levando a flor.

“Adeus, sombra das ramadas,

Cantigas do rouxinol;

Ai, festa das madrugadas,

Doçuras do pôr do sol;

Carícia das brisas leves

Que abrem rasgões de luar...

Fonte, fonte, não me leves,

Não me leves para o mar!...”

                     *

 As correntezas da vida

E os restos do meu amor

Resvalam numa descida

Como a da fonte e da flor...

BIBLIOGRAFIA

 

AMARAL, Emília [et al.]. Português: novas palavras: literatura, gramática, redação. São Paulo: FTD, 2000.

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Biografia de Vicente de Carvalho. Disponível em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=109&sid=282. Acesso em: 25 fev. 2012.

ARQUIVO O ESTADO DE S. PAULO. Fotografia de Vicente de Carvalho. 1909. pb.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 3.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1997.

CARVALHO, Vicente de. Poemas e Canções. 17.ed. São Paulo: Edição Saraiva, 1965.

D’AZEVEDO, Octávio. Vicente de Carvalho e os Poemas e Canções. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1970.

ENCICLOPÉDIA BARSA. São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1975.p. 116.4v.

LUFT, Celso Pedro. Novo Manual de português: Gramática, Ortografia Oficial, Redação, Literatura, Textos e Testes. 8.ed. São Paulo: Globo, 1990.

LEAL, Cláudio Murilo. Vicente de Carvalho: seleção: Coleção Melhores Poemas. São Paulo: Global, 2005.