VERÔNICA

diálogo teatral

 

A traição é sempre uma atitude voluntária e denota falta de caráter e de respeito pelo parceiro.  Isto é verdade? – Ou uma mentira deslavada?

A maneira pela qual se encara o amor, a paixão, o sexo e o casamento (ou a união estável)  é completamente diferente no homem e na mulher

Mas a sociedade está de tal modo confusa, que as pessoas se juntam e se separam, sem o menor envolvimento, tentando tirar um do outro a maior satisfação possível

 

Primeiro Ato

Metade da cena para cada um dos atores

Enquanto um fala, o outro fica no escuro absoluto

 

Cena 1

 

Acende-se a luz do lado esquerdo do palco

Um vão pequeno, contendo os arquivos de uma sociedade.

Ambiente de escritório. Uma escrivaninha modesta. Um telefone.

Muitos armários de arquivo. Papéis sobre a mesa. Duas cadeiras.

Tem pouco espaço.

Um rapaz em trajes de executivo, paletó, gravata, sapato social, está

sentado à mesa.

 

Bom dia, pessoal! Meu nome é Felipe. Tenho 22 anos.

Sou estudante, ainda, mas vou me formar este ano.

Administração. Aliás, é a onda do momento.

Vai ter mais administradores que garis.

Me pergunto quem é que vai varrer as ruas, no futuro .

Digo, daqui a alguns anos.

Claro: Garis, com diploma de administradores.

Se estou trabalhando?

Lógico; terminando os estudos e trabalhando,

como o meu pai fez no tempo dele.

Não sou um filhinho de papai.

Pertenço a uma família de classe média.

Aquela classe que dentro de alguns anos não vai existir mais.

Ou viram milionários, ou favelados.

Sem alternativas.

Meu pai é quem diz. E ele raramente se engana.

 

Sou estagiário na Valemonte S/A, uma poderosa multinacional

Fui admitido depois de uma acirrada seleção.

Claro que umas palavrinhas do meu pai ajudaram um pouco.

Mas o mundo é assim mesmo: uma mão tem que lavar a outra...

Tenho ambições; já freqüento a casa do vice presidente,

Que é também um dos sócios. Tento firmar a amizade com ele.

Por enquanto, ganho pouco mas meu pai ajuda, pagando a Universidade;

Faço um trabalhinho de  meleca, (como vocês vêm,

esta espécie de banheiro é o meu escritório atual)

Mas estou subindo; e vou fazer tudo o que for preciso, para escalar até o topo.

Tenho muitas etapas para vencer, muitos concorrentes para derrotar.

 

Também namoro, porque quem tem família sobe mais facilmente na empresa.

Minha namorada, a Verônica, é uma das colegas mais bonitas da escola.

Vai se formar comigo, este ano. Não vemos a hora. Estudar enche!

Ela na verdade, nem precisaria ter estudado.

É inteligente, sabida, aplicada e responsável.

(Dito entre nós, mulher, quanto menos aprende, menos confusões apronta)

E tem uma ótima família.  Pai, mãe e duas irmãs.

Claro que, com quatro mulheres na casa, o pai está por baixo

Melhor dizendo: Faz tudo o que elas querem. Não o deixam abrir a boca.

Isso não vai acontecer comigo. Ah, não!

Eu, deixando minha mulher mandar em mim? Nunca!

A família da Verônica, como dizia,  é muito boa;

gente agradável, que sabe conversar. E também, são pessoas de posses;

Acho que vamos nos dar muito bem.

Já estamos conversando muito sobre o nosso futuro;

Porque as pessoas devem se entender desde o início

E decidir calmamente o caminho a seguir, quando se juntarem.

Se não fizerem isso, será mais um casamento arruinado.

 

Já nos entendemos sobre um monte de coisas.

 Às vezes eu ganho, às vezes deixo que ela decida.

Mas não descemos a detalhes;

Estamos mu9ito ocupados, nestes meses, com os estudos.

Não há tempo para quase nada.

Deixei de ir às baladas com os amigos, desde que “fiquei” com a Verô.

Só vou ao futebol, nas manhãs de domingo, porque é importante

Para conservar o ambiente dos amigos. Eles podem ajudar muito.

As depois de me formar, quero ter um pouco de vida própria

Acho que vou me dar bem com a Verô. Temos muitas coisas parecidas. 

E ela é muito compreensiva; por exemplo, se queremos ir a um cinema,

Vamos juntos, sem problemas;

Normalmente, sou  eu que escolho os filmes,

Porque não gosto de comédias românticas,

São só bobageiras inconsistentes, que me fazem dormir

Prefiro filmes de ação,  policiais, com bastante tiros e luta.

Minha adrenalina sobe, sinto-me poderoso..

Verônica não gosta muito, é verdade,

mas fica contente de ficar juntinho,

Abraçadinha comigo,  comendo pipoca.

É o máximo!! 

....................................................

 

A luz apaga-se do lado esquerdo, acende-se do lado direito.

 

Cena 2

 

Uma sala de visitas elegante mas contida , um sofá, duas poltronas.

Uma garota em traje social, bem vestida, penteada, maquiada, pronta para sair

Ela se levanta, anda pela cena,  amplia com gestos as suas falas.

 

Olá, meus amigos, boa noite!

Eu sou a Verônica. – Verô, para o meu amado.

Tenho 22 anos, sou solteira, estudante, já mais ou menos compromissada.

Formo-me no fim do ano, junto com o meu namorado, Felipe – um pão!

Vocês deveriam vê-lo: alto, forte, musculoso, bonito, moreno

E inteligente, também; já está trabalhando e fazendo o seu futuro.

Estamos namorando há três anos, mas minha família não admitiu

Que fossemos morar juntos.

São muito conservadores, atrasados. Religiosos demais. Tradicionalistas. Carolas.

Felipe sempre reclama, esbraveja, quer me convencer a fazer alguma bobagem.

Mas ainda não temos dinheiro suficiente para montar uma casa.

Eu gostaria demais, porque todos os dias é uma briga,

para manter afastadas as mãos dele.

Porque gosto muito dele. Já disse isso? Pois gosto dele demais.

Quando ele me olha, quando fala comigo, quando me beija, quando me abraça, quando se enrosca em mim, fico caidinha, tremendo, louca para.... Ah, vocês sabem, não?   Para ficar com ele, ficar junto, namorar, murmurar palavras doces, beijar, acarinhar,  arrulhar....cruu...cruu...crruuuuu!.

Não sei por quanto tempo serei capaz de resistir...

A voz da razão está cada dia mais fraca.

E aquele bastardo  não faz nada para se segurar, para me ajudar.

Apenas põe mais lenha na fogueira.

Ah, um dia desses!....     

 

Já conversei com as irmãs dele e até, uma vez, com a mãe.

Ela não pareceu muito contente com o namoro.

Acha que é cedo, que ainda não começamos a viver,

que não sabemos nada da vida,

das responsabilidades do casamento.

Falou de sacrifícios.

Mas existe sacrifício maior que se despedir na porta de casa

e ter que ir dormir sozinhos, sonhando de estar juntos?

Às vezes, ficamos uma hora nas despedidas... 

Eu não consigo entrar, ele não consegue ir embora...

 

E não é verdade, que não sabemos nada da vida.

Todos começam assim, sabendo pouco, aprendendo dia a dia.

Perguntei se ela já sabia tudo antes de casar.

Respondeu que eram outros tempos,  que tudo era diferente. 

Nós não sabemos tudo, não temos tudo, mas com amor

tudo se resolve, tudo se ajeita..

Porque será que todos meneiam a cabeça, incrédulos, céticos?

O que tem de errado na nossa maneira de pensar?

Nós vamos criar uma família. Vamos formar um elo.

Ou será que isso e tão difícil, que todos desconfiam de nós?

O comportamento dele é exemplar:

não dá atenção às moças na rua, às colegas na escola,

aos amigos que querem leva-lo

à quadra de tênis, ao bilhar, ou ao autódromo.

Nunca estivemos em uma balada. Eu não tenho vontade.

Fico tonta e acho que não faz nada bem.

Ele diz que sente o mesmo, ele também nunca

esteve em nenhuma daquelas loucuras;

mas eu dei-lhe liberdade para ir, uma noite dessas, se quiser,

só para experimentar...

Ele fica comigo, gosta de ficar comigo, quer ficar comigo.

Adoro esta sua maneira de ser.

Gostaria de ser sua esposa, hoje mesmo; não posso mais resistir.

 

A luz se apaga

 

 

Segundo Ato

Cena 3

 

Acende-se a luz,  novamente  do lado esquerdo

Um escritório amplo, claro, luxuoso, muito bem mobiliado

Felipe, com ar de pessoa mais madura

 

Bom dia, meus caros . Encontramo-nos novamente;

espero que todos estejam bem.

Quanto tempo faz? Dois, três – não! Cinco anos!

Puxa, como passa o tempo!

 

Eh, sim; quantas coisas aconteceram desde aqueles dias;

estou casado há quatro anos, tenho uma menina de dois, meu pai, infelizmente faleceu e eu assumi a firma, que dava assistência à Valemonte.

Sou sócio das duas e meus negócios vão de vento em popa.

 

(Interrompe a fala, aperta  botão do interfone – Valéria, traga-me um café, por favor!...)

 

Vocês vão ver que menina bonita é a minha secretária atual.

Custou, mas finalmente conseguir aliar o útil ao...desejável.

Ela junta os dois.....e mais ainda.....

 

(Valéria entra com uma pequena bandeja. É uma moça bonita, de uniforme preto curto, modos despachados, quase vulgares – deixa a bandeja, e com um sorriso dúbio, sai da sala)

 

Como dizia, tudo mudou.

Tive que ser duro com alguns de meus colegas, que não queriam aceitar a hierarquia. Sem ela não há ordem, nem disciplina. A gente tem que ser até cruel, por vezes;

mas o interesse superior da empresa justifica posições extremas.

 

Agora estou sossegado, os negócios vão muito bem, tudo está funcionando como deve.

 

Tudo, salvo um pequeno pormenor.

Meu relacionamento com a Verônica não anda muito bem, reconheço.

Mas também, ela é exigente demais.

Colocou-me  contra  a família dela e contra a minha também. 

Agora todos acham que sou um déspota, um insensível; um bicho papão.  

Que não lhe dou atenção, que faço o que quero,

que mando e desmando na vida de todos

No começo tudo corri às mil maravilhas.

Divertíamo-mos muito, passeávamos, riamos.

Nossa lua de mel foi inesquecível. Havia paixão, sexo às pampas,

Vivíamos agarrados. Dando-nos satisfação recíproca .

Até que, alguns mês depois, as efusões se acalmaram,

os beijos tornaram-se menos intensos, menos longos,

tudo ficou menos profundo, mais superficial, rotineiro.

Deixem-me dizer a verdade,  sem rodeios; já que estamos bastante íntimos

e eu não poderia deixar de ser absolutamente sincero:.  

Todos sabem como a coisas funcionam:

até feijão com arroz, no prato  todos os dias, acaba cansando;

o homem é um ser polígamo – quer conhecer, namorar, possuir....

o processo de conquista pode ser diferente de um para outro,

mas substancialmente se resume nisso;

e depois da posse, sobra muito pouco do que se sentia antes;

por isso dizemos que são os sentidos, que se manifestam, e não os sentimentos.

Estes aparecem raramente, e são uma força diferente,

muito profunda, irresistível – à qual as mulheres chamam amor;

mas nele também, a interpretação masculina é diferente, possessiva,

e se manifesta no ciúme – excessivo, doentio, destruidor, às vezes.

De qualquer forma, não foi o que aconteceu comigo. 

Fiquei apaixonado, pensando só na Verônica,

durante todo o tempo do namoro,e no início do casamento.

Ela de início foi morna, cuidadosa, prudente até demais.

Repelia meus avanços, mantinha-me a distância. 

Sofri muito, naqueles meses; ela só “pegou fogo” depois do casamento.

Mas ai, minha chama já estava em declínio.

Como o doce desejado por tempo demais,

quando finalmente o provei não tinha o gosto que esperava.

Aquele gosto de proibido, de.... ah, vocês sabem o que quero dizer...

Aconteceu isso com algum de vocês?  Sejam sinceros, pensem bem.

Bom, não querem se confessar, levem suas mágoas para casa – e curtam...

Bom proveito!

Como dizia, ela avançou e eu recuei.

Já se viu uma situação dessas?

Eu comecei a trabalhar demais, com a ausência do meu pai

Muitas coisas para faze, decisões para tomar,

Uma pressão constante, uma tensão imensa, sem nenhuma forma

De reduzi-la, de relaxar, de tira-la das minhas costas.

Por outro lado, a firma estava tão cheia de garotas,

as horas extra eram tão encorajadoras,

os amigos encobriam com tanta criatividade as nossas escapadelas,

que a traição se tornou uma rotina.

E uma rotina feia, suja, reconheço.

Verônica percebeu logo que estávamos no caminho errado  

e encontrou a saída em um cretino, um professor de ginástica,

que se transformou em personal trainer – e acho que em personal-algo-mais –

com o qual passava tardes inteiras.

Não me perguntem quais os exercícios que praticavam,

porque não entendo de ginástica.

Mas isso acabou com a nossa  paz.

Ela não tinha o direito de fazer isso.

Os parâmetros para o homem e a mulher são diferentes.

Finalmente, uma tarde cheguei em casa sem avisar

e peguei-os em flagrante.

Foi uma cena muito desagradável:

estavam no salão de ginástica,

sentados  à mesa de ping-pong,

jogando cartas!

Nunca me senti tão ferido, humilhado.

O sujeito era um frouxo, além de cretino; um pulha, um inepto.

Não foi capaz nem de me trair direito;

e eu não tive nem a satisfação de bater nele,

ou de processar ele e minha mulher.

O que iria alegar, no tribunal? 

Que estavam jogando cartas

e que ele estava vencendo por 6 a 3 ?

Joguei-o para fora de casa.

E ela jogou a mim, pela porta e

todas as minhas roupas, pela janela..

Agora, me digam: o que ela espera que eu faça? 

E o que esperam os amigos, a minha mãe,

os funcionários da firma, a comunidade, a Sociedade?

Tenho sede de vingança.

Mas ainda amo essa cachorra!

 

A luz se apaga

 

Cena 4

Acende-se a luz do lado direito.

 

Verônica está sentada num sofá muito elegante. Está mais velha, mais sofrida.

Ao longo do monólogo, ela estará andando de um lado para o outro, nervosa mas sem desespero.

 

Ola, boa noite; estou contente que todos estejam aqui. Passou um bom tempo,depois de nosso primeiro encontro. Cinco anos, creio.   Foram anos estranhos.

Primeiro, veio o namoro – complicado, porque o Felipe não tinha limites, me atacava o tempo todo, em qualquer lugar, sem nenhum receio,, sem vergonha. Depois, o noivado – porque as duas famílias nunca admitiriam um relacionamento do tipo junta - separa ...  Dorme aqui,  come lá  - não, não riam; usei “come”  no sentido alimentar, não com segundas intenções. Meu Deus, não se pode mais falar nada, todo o mundo interpreta, desvia o sentido, sempre imaginando coisas...  (Pausa)

Enfim, não aceitariam que  gente namorasse e depois, como se não fosse nada demais, cada um voltasse para usar a própria  escova de dentes em casa. Quer fazer alguma coisa junto? Casa e vá com Deus. Antes disso, nada feito.

As mães estavam com as espingardas prontas......

Então, casamos.

No começo, foi uma maravilha. Eu não deveria estar aqui conversando destas coisas, mas parecíamos uns busca-pé , esfogueteando por aí o tempo todo. Foi difícil para ele voltar ao trabalho e para mim aos meus estudos.  Esqueci de dizer que andava tão avoada, distraída, maluquinha, que  fui mal em todos os exames do último ano. E tive que repeti-los todos.

Passados alguns meses, comecei a sentir uma mudança de clima. Felipe andava distraído, chegava tarde, cansado, sem vontade de nada; não era mais o rapaz atencioso, carinhoso, romântico, quente e até selvagem que era antes – oh, meu Deus, como é que estou confessando tudo isto a vocês ?  Desculpem, desculpem...

Fiz questão de ter um filho, para reavivar o nosso amor, mesmo que não fosse mais uma paixão ; penso que se fosse um menino, teria motivado melhor o Felipe.

Mas tivemos uma menina. Ele se sentiu, creio, em inferioridade, acossado, sozinho.

Mas havia muitas outras coisas importantes que estavam acontecendo.

Nossos gostos não eram mais os mesmos – ou talvez nunca o tivessem sido.

Eu visitava as amigas, ele ia passar a noite no bar, com os amigos.

Amizade de mulher é mais séria, mais saudável.

As moças falam de roupas, de maquiagem, de penteados.

Ocasionalmente, fala-se de homens; mas nunca são conversas pesadas, como as dos homens: As pernas desta, os peitos daquela,  e lá vão palavrões e expressões, acompanhando as descrições detalhadas de fatos, de circunstâncias, de atos mais que constrangedores. Este tipo de “comunicação social” é baixo,  e rebaixa todos os participantes. As mulheres, em princípio, são mais recatadas.

Ou será que me engano? Alguém pode me dizer alguma coisa?  Nada?  Paciência.

Quando íamos ao cinema, ele entrava onde projetavam um filme policial, com sangue e tiroteios; eu entrava em outra sala, onde podia ver algum romance, para ir e chorar. Quando saíamos, íamos comer uma pizza, cada um envolvido por seus pensamentos, provando que não havia mais muita coisa em comum.  

Uma noite, minha seção acabou mais cedo e eu o esperei na porta.

Ele saiu de braço dado com uma loirinha insípida, toda esfuziante.

Ele ficou bobo ao me ver e não conseguiu disfarçar.

A menina acreditava que ele fosse solteiro  e vi que ele não levava a aliança no dedo. Aí pensei em quantos motéis há ao redor dos cinemas e fiquei furiosa.

Não sou de levar desaforos para casa e a briga, naquela noite, foi feia; nem era a primeira. Mas a partir daí, brigávamos quase todos os dias, recriminando-nos mutuamente.

Para me distrair, contratei um personal trainer; admito que ele no começo fez alguns avanços; mas eu não queria que a situação degringolasse.

E o coloquei no seu lugar, de maneira firme .

Ele entendeu, e sempre se comportou direito. 

Cartas? Quais cartas? Oh, meu Deus! Alguém andou abrindo demais a boca! 

As cartas apareceram porque eu imaginava que mais dia ,menos dia, o Felipe chegaria de supetão, querendo tirar satisfações do tal  personal trainer.

Assim, inventamos o jogo de cartas. E ele andava tão assustado com a possível invasão, que eu acabava ganhando todas as mãos.       

Bem esta é a parte agradável.  Mas agora estou muito mal.

Acho que não amo mais o meu marido;  e ele também descobriu que os limites do jardim do Éden, com uma só mulher, são muito estreitos, para um homem que gosta de ciscar no quintal dos outros.

Creio que teremos que ter uma conversa civilizada. O que me sugerem?

 

A luz se apaga  - Pano......................................................

 

Ato terceiro

Cena 5

 

Cena aberta, inteira.. Um escritório . Uma mesa comprida, própria para reuniões com advogados

Dois advogados tomam parte da conversação.

 

Ela (agressiva)  Eu não sua propriedade e você não é meu dono, entendido?

 

Ele: (despreocupado)  Nunca pretendi isso. Só queria que tivéssemos uma vida feliz juntos

 

Ela: Sim, nos dois,e mais uma dúzia de meninas; porque não fazemos uma cooperativa, com seis meninas e seis garotões, para ver o que dá?

 

Ele: Pára de ironizar. O assunto é sério e não vim aqui para jogar fora o meu tempo.

 

Ela: Você quer que eu aceite e justifique a sua infidelidade, mas não se conforma que eu possa me comportar da mesma forma.. O que tem de diferente entre nós – excluído obviamente os atributos genitais?

 

Ele : Tudo!. É justamente esta a diferença. Nunca poderemos agir da mesma forma, nunca seremos capazes de compreender-nos e perdoar-nos mutuamente.

 

Ela: Você deve entender que, como você não está disposto a me ver nos braços de outro homem, eu não vou me conformar nunca com suas efusões com  outra mulher.

 

Ele: Quer dizer que você não sente desejo, ou pelo menos, atração por outro homem?

Eu sou o homem de sua vida e a metade masculina da humanidade não existe mais para você?

 

Ela: Não se trata disso;  não gosto que  você me faça de boba, ou se faça de bobo. sentir atração ou mesmo desejo por outro, não corresponde a uma traição; o que nos juramos, foi fidelidade FI-DE-LI-DA-DE; e você não cumpriu com a sua parte desse juramento.

 

Ele: Mas mesmo um juramento desses implica em uma certa mobilidade, uma certa elasticidade. Não acredito que nenhum homem saudável, comunicativo, em idade de procriar, bem inserido na sociedade, seja totalmente fiel, capaz de resistir às tentações, que lhe passam sob o nariz .

  

Ela: Eu não casei com os outros. Casei com este traste aqui, e exijo dele que cumpra a sua promessa.   

 

Ele: Verô, pelo amor de Deus!

Existem traições e traições, cada uma com peso, valor e culpa diferente

Uma é a olhadela de apreciação, até com uma palavrinha de admiração, mas sem segundas intenções ou outra implicação; esta é a traição classe um , que não tem nenhuma conseqüência, não machuca ninguém. É como os tiros de festim. Alerta que tem gente na praça...E de verdade, eu nem a chamaria de traição.

 

Outra , é a “cantada”; com ela  o homem passa do contato visual ao físico; tem apalpadelas, abraços, apertos, até algum beijinho de leve – não daqueles de cinema, de boca língua, laringe e garganta – eu chamaria de classe dois. Vê que esta também não traz nenhum envolvimento das partes,. É uma brincadeira inocente; como

Uma prova, um exercício de tiro ao alvo, que os clubes de tiro fazem anualmente.

 

Por fim, a traição de classe três, é mais grave, perigosa e pode deixar queimaduras graves nas três (ou quatro) pessoas envolvidas.

É quando um marido sai com a mulher de outro  (ou uma esposa com o marido de outra) e passam às vias de fato.  Vocês todos me entenderam.

Mesmo assim, eu poria uma distinção: classe três tipo A, quando se trata apenas de um “jogo sexual”; e classe três tipo B, quando existe  um  envolvimento sentimental, de profundidade e durabilidade variáveis. Estas podem machucar realmente.

 

Ela: Mas que cinismo! Quanta estupidez, nessas suas palavras! Você se revela tão reles como o cachorro de rua, movido apenas pelo cio, pelo odor da fêmea, pelos seus meneios. Incapaz de resistir ao apelo do instinto e de atender ao que a razão manda.

E ainda tenta se justificar com uma racionalização de sua animalidade. Um homem assim ao presta! Não presta! Não vale nada!

 

Ele: Muito obrigado, Verô.  Sua apreciação vai ser registrada nos autos. Agora vou colocar minha opinião sobre o comportamento feminino, diante do porcalhão que é o “macho conquistador”. Quem disse que o homem tem que ser monógamo?

 

Ela: O mesmo homem que no altar, diante de Deus e da sua esposa, jurou fidelidade pelo resto da vida; porque quando você me prometeu amar-me,  proteger-me  e respeitar-me, incluiu nisso a fidelidade.   

 

Ele: É um juramento feito sob constrangimento, como uma confissão sob tortura. Nenhum homem que aceita isso está em seu juízo perfeito.

 

Ela; Muito bem; Agora me diga: com que cara ficaria, se eu arrastasse asas para o Flávio, o eletricista, você sabe, aquele machão do clube, o marido da Alba?

 

Ele: Quem,? Aquele tonto, com jeito de ignorante, e cara de buldogue? Ficaria decepcionado. Trocar-me por “aquilo!”  É muito desespero de sua parte!

 

Ela: E se eu lhe dissesse que quase chegamos às preliminares daquilo que você chama de “vias de fato” ?

 

Ele: Não. Eu não acredito! Você não faria uma coisa dessas. Seria um acinte, uma ofensa!

 

Ela: Pois eu me sinto assim diante da sua Vanessa, que não é  nem tigresa, nem gatinha: apenas uma pequena bobinha e sem vergonha; e você me troca por “aquilo!”  Eu sou uma mulher! Eu sou a sua mulher! E você continua não prestando. Não agüento mais!

 

Verô cai no choro, soluçando muito.

 

Felipe corre para pegar um copo de água do bebedouro e o leva carinhosamente

para a esposa.

 

(Durante esta discussão toda, os advogados andaram agitando-se tentando intervir, sem sucesso.  Depois de olharem-se, decidem sair da sala, deixando Felipe e Verô sozinhos. )

 

Ele:  Toma um pouco de água, meu amor. O soluço faz muito mal. Por favor, vem, eu seguro suas mãos nas costas....assim, assim....

 

Ela: (fazendo-se de difícil)  Obrigado, mas não pense que vai resolver tudo assim!

 

Ele: Mas você ainda me quer bem? Ainda me....

 

Ela: Suporta? Sim, suporto, infelizmente,. Amar é uma condenação, um tormento.

Soubesse quantas noites passei chorando, me queixando baixinho, para você não me escutar!

 

Ele: Sei que você é orgulhosa, minha querida; esta é uma das qualidades de que mais gosto!

 

Ela: Promete que não vai mais me trair?  (Repensando)  Mas que absurdo: você nunca vai parar de me trair...

 

Ele: Vamos fazer assim: cada vez que eu tiver vontade de te trair, vamos passar uns dias de férias, sozinhos, até passar a vontade. Mas você tem que prometer que vai sempre estar linda, disponível, amorosa, etcétera etcétera. Concorda?

 

Ela:  Sim, concordo. Não sabia como sair desta situação tão constrangedora...

 

(Entra uma secretária, sorridente)

 Doutor Felipe, posso servir uma água, um café., ou um refrigerante..?

 

Ele:  Não, querida, obrigado, por agora é só. Pode ir...

 

(A moça sai)

 

Ela: Essas olhadas longas, lânguidas,  envolventes e esses “querida” insinuantes, você vai deixa-las em casa, doravante, para meu uso pessoal e exclusivo, entendidos?

 

Ele: (admirado) Que olhadas?  Que “querida” ?  Não sei do que você está falando!!!

 

As luzes se apagam lentamente, o pano cai

FIM