A literatura e as demais expressões artísticas sempre foram vistas como atividades afins, criadas pelo homem para os momentos do ócio, para as horas vagas da diversão e do lazer. Com efeito, quando nos dirigimos à arte, vamos em busca de prazer, contemplação e satisfação superiores, nunca visando ao toma-lá-dá-cá da ciência. Porque a arte, ao contrário das disciplinas pragmáticas, apresenta-se como conhecimento intuitivo do mundo, tendo sempre o sentimento como ponto de partida. Como refletiu Pessoa, a sensibilidade é a alma da arte.

 

De modo análogo, a filosofia não promove nenhuma alteração imediata nas coisas à nossa volta. Assim como a obra artística ou literária, que tem um fim em si mesma, a atividade filosófica surge como prática humana ligada aos seres especiais que voluntariamente se entregam à radicalidade do pensar, não em busca de retorno material, mas de algo muito mais valioso, do “caro deleite” (segundo Platão), através de uma postura de abnegação total. Nesse sentido, arte e filosofia se parecem; mas as semelhanças param por aí.

 

Pois, enquanto a arte se funda no sentimento, a filosofia finca suas raízes na razão, para proceder a uma investigação crítica sem precedentes sobre o homem e as coisas dele, a cultura, a religião, a educação, o trabalho, a ciência, etc. (pois nada lhe escapa). Então, o papel do filósofo não é outro senão se atirar à história à procura do homem total, que se acha fragmentado, perdido nos labirintos da imanência, a fim de lhe dar a chance de transcender todos os determinismos, tornando-se um ser de projeto e, portanto, capaz de liberdade. E, uma vez livre, o homem poderá de novo brilhar, construindo seu futuro, seu destino, consciente de ter cumprido a sua tarefa da melhor maneira possível.

 

Portanto, aí está a importância da filosofia, sem a qual o homem estaria condenado para sempre à dimensão-do-agir-imediato, preso ao imobilismo do dia a dia e à estagnação das coisas feitas e desprovidas de novidade. De modo que, graças à atitude filosófica (e ser filósofo, advertiu Thoreau, não é apenas ter pensamentos sutis, nem mesmo fundar uma escola, mas amar o saber a ponto de viver segundo os ditames desse saber uma vida de independência, magnanimidade e confiança), o homem pode dar sentido à sua existência, posicionando-se crítica e racionalmente diante de si mesmo e da história.

 

2.

 

O filósofo pergunta sobre as coisas e, sobretudo, sobre seus semelhantes. Uma vez de posse dessas respostas, ele se orienta criticamente em face dos acontecimentos. De sorte que, ao perguntar, o filósofo abre as portas do conhecimento. É por isso que ele está sempre perguntando, afinal quer conhecer mais e mais. Até porque é buscando conhecer as coisas, íntima ou exteriormente, que o homem melhor se define. Está aí a sua grandeza ou pequenez.

 

Qual filósofo, um belo dia, Z. se viu se perguntando sobre tudo à sua volta. Pois não se contentava mais com o que sabia, nem com o mundo em que vivia. Tudo se lhe afigurava comum, medíocre. E, ao contrário da grande maioria das criaturas humanas, Z. agora queria experimentar o estranho, o diferente – custasse o que custasse. Em outras palavras, ele tinha sede de conhecimento. E conhecer, para ele, significava transcender a mediocridade e o senso comum, empreendendo uma caminhada sem trégua rumo ao novo e ao desconhecido.

 

Todavia, exercitar esse “perguntar cognoscitivo” significa entrar em choque com outrem, uma vez que as pessoas se encontram tão apegadas à rotina e à mesmice, que jamais vão admitir ser importunadas pela filosofia. E perguntar, numa atitude filosófica, significa provocar as convenções, desafiar o senso comum, buscar o horizonte longínquo e, sobretudo, desvendar aquilo que se acha por trás da aparência das coisas. Ou seja, quem pergunta se aproxima da essência dos fenômenos, gradual e dialeticamente.

 

Z., ao ambicionar um novo sentido para sua vida, passou a ser visto como alguém indesejado, rebelde e até perigoso. Aliás, esse é o preço pago por todos aqueles que, corajosamente, optaram por viver uma “vida de simplicidade, independência, magnanimidade e confiança”, como Sócrates – mártir da filosofia –, condenado à morte sob a acusação de ateísmo e subversão.

 

(No fundo, o ansioso Z. assimilara muito bem o conselho do mestre Sócrates acerca do melhor método para se aprender filosofia: “Sê razoável, então, e não te preocupes se os professores de filosofia são bons ou ruins, mas pensa apenas na Filosofia propriamente dita. Tenta examiná-la bem e com sinceridade; e se ela for má, procura afastar dela todos os homens; mas se ela for o que acredito que é, segue-a e serve-a, e fica contente”.)

 

Moral da história: tanto o filósofo quanto Z. têm algo precioso em comum. Nos dois casos há uma ruptura radical com a submissão e a rotina alienantes, em favor do perguntar consciente e criterioso, visando à liberdade, à descoberta e, portanto, ao conhecimento. Que filosofar é, antes de qualquer coisa, exercer a humana racionalidade (elementar, não?), com independência e radicalidade (difícil, não?), tendo sempre em vista um sentido superior para a existência.

 

(A. Zarfeg)