ESTUDO DE CASO

USUCAPIÃO DE IMÓVEL SOB CONTRATO DE COMODATO[1]

 

José Muniz Neto[2]

 

  1. 1.      DESCRIÇÃO DO CASO

José dos Anzóis e Josefina Parafina adquiriram um terreno urbano, de 350,0m², em 20 de setembro de 1980, o qual está situado no município de São Luís, servidão Travessa Bom Jardim, Rua Jururu, nº10, bairro dos Limões. Tal imóvel se encontrava devidamente registrado no Cartório do 1º Registro de Imóveis desta Capital.

Entretanto, em 2000, José dos Anzóis e sua esposa autorizaram, mediante comodato, que seu filho, Joaquim Parafina dos Anzóis, juntamente com sua esposa na época, Marina Lima, a residirem no imóvel. Todavia, o casamento dos comodatários se desfez e, no ano de 2011, Joaquim abandonou o imóvel, deixando Marina e seus filhos residindo no local, a título de comodato. Com a separação de fato do casal, José e Josefina resolveram notificar Marina para que esta deixasse o local. A notificação foi expedida no dia 10 de dezembro de 2012 e foi recebida apenas no dia 15 de dezembro de 2012, estabelecendo o prazo de 5 dias para que Marina deixasse o imóvel sob pena de interpelação judicial.

  1. 2.      IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

2.1.  Descrição das decisões possíveis:

  1. a.      Desocupação do Imóvel por parte de Marina.
  2. b.      Propositura de Usucapião de Imóvel por parte de Marina.

 

2.2  Argumentos Capazes de Fundamentar cada Decisão.

  1. a.      Desocupação do Imóvel por parte de Marina.

Como foi visto no caso em questão, José dos Anzóis e Josefina Parafina emprestaram por meio de comodato o imóvel para que Joaquim e Marina o utilizassem. O contrato de comodato se deu por meio oral e sem a estipulação de prazo para devolução do bem. Após doze anos do empréstimo por comodato, José e Josefina decidiram retomar a posse direta de seu imóvel e notificaram Marina para que esta desocupasse o bem no prazo de cinco dias. Considera-se a notificação feita a partir do momento em que Marina deu ciência a tal fato, logo, esta deveria sair do local no dia 20 de dezembro de 2012.

De acordo com o art. 1.196 do Código Civil de 2002, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” (CÓDIGO CIVIL, 2002). Conforme este conceito, pode-se demonstrar que Marina, por exercer os poderes de propriedade sobre o imóvel mencionado, era a possuidora direta do bem, uma vez que tinha este em seu poder. Entretanto, não cumprindo o prazo estabelecido para a saída do imóvel, Marina terá posse injusta e de má-fé. A posse injusta, como dispõe o Código Civil, é aquela que apresenta vícios, quais sejam a violência, clandestinidade ou precariedade (CÓDIGO CIVIL, 2002). Nos ensinamentos de Flávio Tartuce, a posse precária é a que foi adquirida mediante boa-fé e que, por abuso de confiança ou de direito, se transformou nesta (TARTUCE, 2011, p. 767). O caso de precariedade, portanto, é o qual se enquadra na situação de Marina, a qual não abandonou o imóvel. Além da posse precária, Marina também teria a posse de má-fé. Conforme nos ensina Cézar Fiuza, “terá posse de má-fé aquele que tenha ciência dos defeitos que a maculam” (FIUZA, 2010. p.887). Marina, por ter sido notificada do prazo para que desocupasse o imóvel, ao resolver continuar no bem teria a ciência dos defeitos de sua posse, caracterizando assim a posse de má-fé.

Visto os fatos mencionados, pode-se afirmar que Marina promoveu o esbulho pacífico do imóvel, pelo fato de ter ocorrido mediante precariedade da posse. De acordo com Carlos Roberto Gonçalves, “o esbulho acarreta a perda da posse contra a vontade do possuidor” (GONÇALVES, 2003. p. 45). Dessa forma, caberia a proteção possessória, qual seja a ação de reintegração de posse ou também o desforço imediato, por parte de José e Josefina, por serem possuidores indiretos do imóvel. O desforço imediato, como dispõe o art. 1.210, §1º, consiste na possibilidade do possuidor maculado de defender-se contra o esbulho com suas próprias forças, desde que seja imediatamente e que seus atos sejam apenas o necessário para a reintegração da posse do bem (CÓDIGO CIVIL, 2002). Caso não se utilize do desforço imediato, José e Josefina poderão propor o interdito possessório. Conforme dispõe o Código de Processo Civil, em seu art. 927, cabe ao autor o onus probandi da “sua posse, do esbulho ou turbação do réu, da data da turbação ou do esbulho do réu, a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção; a perda da posse, na ação de reintegração” (CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 1973). A prova do direito à posse do imóvel por parte de José e Josefina se dá através da certidão do Registro de Imóveis e também pela não desocupação do imóvel por parte de Marina após o prazo indicado na notificação feita pelo proprietário do imóvel. O esbulho é provado com a passagem do prazo indicado para desocupação na notificação dada a Marina, uma vez que, a partir desse fato, ela se encontrou na posse injusta e de má-fé do bem. A data do esbulho é no dia 20 de dezembro de 2012, visto que transcorreu o prazo para desocupação do bem. A perda da posse ocorreu com a presença do esbulho do imóvel, o qual foi no mesmo dia em que este ocorreu e também pela recusa de Marina à restituição do imóvel, embora tenha sido notificada.

Com base nesses aspectos, cabe analisar o art. 928 do CPC, o qual dispõe:

“Art. 928: estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração; no caso contrário, determinará que o autor justifique previamente o alegado, citando‑se o réu para comparecer à audiência que for designada. (CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 1973)”

De acordo com este artigo cabe ainda à José e Josefina o pedido liminar da reintegração de posse. Este pedido pode ser requerido mediante ação de força nova. Esta ação consiste no fato de ser proposta em menos de um ano e dia do esbulho (FIUZA, 2010. p. 906). Esta ação apresenta um procedimento especial previsto nos artigos 920 a 932 do CPC.

Além da ação de reintegração de posse, José e Josefina, por serem os proprietários do imóvel em questão, podem propor também uma ação petitória ou reivindicatória. “A ação reivindicatória poderá ser usada por aquele que for privado, injustamente, de um bem que lhe pertence e pretende retomá-lo” (BEUTLER, 2012. p. 29). Nesse caso, eles alegariam a propriedade para conseguir reaver o bem em posse de Marina. Conforme nos ensina o Código Civil de 2002, em seu art. 1.228, “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.  Dessa forma, José e Josefina apresentam o direito de reaver o imóvel em posse de Marina, uma vez que esta possui o bem injustamente. Entretanto, cabe ressaltar que não se pode propor ação reivindicatória quando estiver em curso uma ação possessória e vice versa. Dessa forma, cabe aos proprietários do imóvel decidir qual ação propor.

Portanto, mediante o exposto acima, percebe-se o direito de reintegração de posse, de desforço imediato ou então de ação reivindicatória à José e Josefina no caso de não desocupação do imóvel por parte de Marina, o que consistiria na transformação de sua posse para de má-fé e injusta. Com base no artigo 1.223 do CC, “perde‑se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196” (CÓDIGO CIVIL, 2002), logo, Marina perdeu a posse sobre o imóvel em questão.

 

  1. b.      Propositura de Usucapião de Imóvel por parte de Marina.

Sabe-se que a relação entre Marina e os proprietários do imóvel se deu mediante um contrato de comodato, oral ou não, por conta do casamento com o filho do casal. Nas relações de comodato, o comodatário (Marina) é obrigado a entregar o bem quando solicitado, em caso de comodato sem data de término. Caso não ocorra a devolução, o comodatário terá sua posse como injusta, mediante precariedade. Parte da doutrina civilista adota a postura de que a posse precária não admite convalescimento, não podendo assim ser transformada em posse ad usucapionem, a qual é necessária para que o possuidor proponha ação de usucapião de bens imóveis. Neste contrato não podemos afirmar que comodatário detenha animus domini, ou seja, ânimo de dono da coisa, agir como se proprietário fosse, entretanto, existem correntes do Direito Civil que sustentam a possibilidade de modificação da posse para que esta apresente este animus.

Como nos demonstra Tula Wesendonck, o Código Civil atual repetiu alguns dispositivos do Código de 1916, o qual tratava a propriedade como absoluta, ou seja, dificilmente era relativizada em face do possuidor mediante posse precária (WESENDONCK, 2010. p. 350). Com base nisso, percebe-se que mesmo com o abandono do imóvel por parte do proprietário, se o possuidor fosse precário, ele dificilmente perderia o imóvel para o possuidor direto, mesmo não exercendo a função social da propriedade. A função social da propriedade foi abarcada no Código Civil de 2002 e por isso não tem que se falar em caráter absoluto da propriedade para este dispositivo, tendo assim que se dar uma nova visão para a propriedade, a qual apresenta agora requisitos obrigatórios para que se tenha o direito de exercer tal direito.

“[...] Não haveria mais a de proteção absoluta ao direito de propriedade, a qual estaria condicionada ao cumprimento da função social da posse e da propriedade, autorizando a alteração do caráter de um poder exercido sobre a coisa, sem que fosse necessária uma ação positiva do proprietário, podendo a conversão da posse decorrer de uma omissão (como se vislumbra de forma expressa através do art. 1198, parágrafo único do CC de 2002).” (WESENDONCK, 2010. p. 351)

Dessa forma, pode-se perceber que a propriedade não se constitui apenas com a posse do registro do imóvel, mas também com o exercício da função social do bem. Um proprietário displicente que abandona seu imóvel pode muito bem sofrer a perda do imóvel por negligência, enquanto outra pessoa, mesmo que apenas possuidora, está exercendo a função social, dando assim convalescência para a alteração da sua posse para posse ad usucapionem. Tal possibilidade de convalescimento é notável no art. 1.203 do Código Civil de 2002, o qual dispõe “salvo prova em contrário, entende‑se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida” (CÓGIDO CIVIL, 2002), dando assim abertura para a prova de que sua posse não convém com algum vício.

Como nos ensina José Augusto Lourenço dos Santos:

 

“[...] admite o Enunciado n. 237 da III Jornada de Direito Civil 2004 (Enunciado 237. É cabível a modificação do título da posse – interversio possessionis – na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini).” (DOS SANTOS, 2012. p. 5527)

 

A inversão do título da posse, portanto, se dá com a oposição do possuidor direto ao possuidor indireto, fato este que caracterizaria o animus domini. Essa inversão de título necessita ser expressa claramente ao possuidor indireto para caracterizar o ânimo de dono, não sendo clara, poderá não ocorrer a inversão, fato que não permitira a aquisição do bem mediante usucapião (DOS SANTOS, 2012. p. 5529). Logo, o possuidor direto deve agir de forma como dono do imóvel, a ponto de que não se possa mais distinguir quem seja o verdadeiro proprietário do imóvel, deixando claro assim sua oposição.

Marina, cujo comodato foi pactuado em função do seu casamento com Joaquim no ano de 2000, se separou no ano de 2011, residindo desde esse ano mediante precariedade. Entretanto, não se percebeu durante estes 10 anos de posse justa e de boa-fé nenhuma atitude dos proprietários do imóvel por conta da posse de Marina em face do bem. Por conta disso, percebe-se uma negligência por parte de José e Josefina e, em contrapartida, uma real oposição de Marina em face de ambos, uma vez que esta exercia livremente o os direitos inerentes a propriedade do imóvel, assim como sua função social e seu direito à moradia. Com base nessas afirmações, Marina estaria exercendo não uma mera posse do bem, mas uma posse com animus domini, a qual é requisito para se propor uma ação de usucapião. Além da posse com ânimo de dono, Marina também preenche os outros requisitos para usucapião, conforme o art. 1.238 do Código Civil.

 

“Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire‑lhe a propriedade, independentemente de título e boa‑fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir‑se‑á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo” (CÓDIGO CIVIL, 2002).

 

Desta feita, percebe-se que o caso de Marina se encaixa no parágrafo único deste artigo. Ela possuiu o imóvel de 2000 a 2010 sem oposição, resultando assim nos 10 anos necessários para propor usucapião do imóvel. Além disso, cabe ressaltar que o usucapião consiste em uma sentença meramente declaratória, cujo escopo é disponibilizar ao usucapiente um título para registro. Dessa forma, José e Josefina não têm a propriedade do imóvel desde o período em que Marina se demonstrou clara e indistintamente dona do imóvel. Como ela sofreu oposição apenas no ano de 2012, ela poderá alegar como defesa que pretende usucapir o imóvel, uma vez que preenche os requisitos necessários para tal fato.

Neste mesmo sentido, defende o Recurso Especial nº 154.733 – DF:

 

“CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. COMPROVAÇÃO DOS

REQUISITOS. MUTAÇÃO DA NATUREZA JURÍDICA DA POSSE

ORIGINÁRIA. POSSIBILIDADE.

O usucapião extraordinário - art. 55, CC - reclama, tão-somente: a) posse mansa e pacífica, ininterrupta, exercida com animus domini; b) o decurso do prazo de vinte anos; c) presunção juris et de jure de boa-fé e justo título, "que não só dispensa a exibição desse documento como também proíbe que se demonstre sua inexistência". E, segundo o ensinamento da melhor doutrina, "nada impede que o caráter originário da posse se modifique", motivo pelo qual o fato de ter havido no início da posse da autora um vínculo locatício, não é embaraço ao reconhecimento de que, a partir de um determinado momento, essa mesma mudou de natureza e assumiu a feição de posse em nome próprio, sem subordinação ao antigo dono e, por isso mesmo, com força ad usucapionem . Precedentes. Ação de usucapião procedente. Recurso especial conhecido, com base na letra "c" do permissivo constitucional, e provido.” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº154.733 – DF, 4ª Turma, DF, 05 de dezembro de 2000.)

 

  1. 3.                  Descrição dos Critérios e Valores (Explícitos e/ou Implícitos) Contidos em cada Decisão Possível.
    1. a.      Desocupação do Imóvel por parte de Marina.

- Direito à propriedade;

- Direito à posse;

- Boa-fé dos proprietários;

- Contrato de Comodato;

- Esbulho.

  1. b.      Propositura de Usucapião de Imóvel por parte de Marina.

- Direito à moradia;

- Função Social da Propriedade;

- Negligência do proprietário;

- Convalescência da posse precária;

- Usucapião.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

BEUTLER, Denise Carteri. A Possibilidade De Utilização Da Posse Precária Para Fins De Usucapião: Uma análise a partir da função social da propriedade e o direito à moradia. Carazinho, 2012. Disponível em: <http://repositorio.upf.br/xmlui/bitstream/handle/123456 789/233/CAR2012Denise_Carteri_Beutler.pdf?sequence=1>. Acesso em: 19 de abril de 2013.

BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei 10.406 de 10/01/2002. Brasília: Diário Oficial da União, 2002.

BRASIL. Código de Processo Civil Brasileiro. Lei 5.869 de 11/01/1973. Brasília: Diário Oficial da União, 2002.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº154.733 – DF, 4ª Turma, DF, 05 de dezembro de 2000. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista /REJ.cgi/IMGD?seq=245569&nreg=199700810194&dt=20010319&formato=PDF>. Acesso em: 19 de abril de 2013.

DOS SANTOS, José Augusto Lourenço. A Transformação da posse precária em posse ad usucapionem pela inversão do título da posse. RIDB, ano 1(2012), nº9. pag. 5529. Disponível em: < http://www.idb-fdul.com/uploaded/files/2012_09_5523_5531.pdf>. Acesso em: 19 de abril de 2013.

FIUZA, César. Direito Civil: curso completo / César Fiuza. - 14 ed. revista, atualizada e ampliada. - Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das coisas, volume 3 / Carlos Roberto Gonçalves. – 6ª Ed. Atual de acordo com o novo Código Civil ( Lei n. 1   0.046, de 10-1-2002). – São Paulo : Saraiva, 2003. – (Coleção sinopses jurídicas);

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único/ Flávio Tartuce. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2011.

WESENDONCK, Tula. A possibilidade de transformação do caráter da posse e da detenção: interpretação constitucional dos efeitos da posse. Revista da AJURIS, Porto Alegre: Ajuris, n 120, vol. 37, 2010. Disponível em: < http://www. pucrs.br /edipucrs /Vmostra/V_MOSTRA_PDF/Direito/83757TULA_WSENDONCCK.pdf>. Acesso em: 19 de abril de 2013.



[1] Case referente à disciplina de Direitos Reais do curso de Direito, UNDB.

[2] Aluno da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, curso de Direito, 5º semestre noturno.