Usos e abusos da memória: o caso do município de Tuparetama

Por Adriana Amaro | 12/09/2015 | História

INTRODUÇÃO A importância que o acervo possui para o historiador é essencial, pois representa um alicerce de sua práxis, seja ela voltada para uma pesquisa sobre história geral ou uma pesquisa regional. No entanto o pesquisador deve se ater ao fato de que a pesquisa historiográfica está sujeita aos olhares do tempo histórico em que ela é revisitada. Como considera Certeau: “Certamente não existem considerações, por mais gerais que sejam, nem leituras, tanto quanto se possa estendê-las, capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que realizo uma investigação.” (CERTEAU 1982, p. 65) As fontes e a pesquisa são resultado do olhar do presente, que faz observância das questões levantadas pela atualidade. Muitos acervos de memória tendem a representar uma história local, focalizada em mitos fundadores da região em que estão inseridas. Nesta pesquisa percebemos que é notório o fato de haver dificuldade em encontrar um acervo disponível para historiadores e o público em geral nas cidades interioranas. Porém o que pode ser avaliado é que a história contada através dos acervos deixa a desejar, porque são escassos ou até mesmo aqueles que possuem algum acervo pessoal querem mantê-las sob sua tutela. O historiador que propõe a estudar uma temática que aborde a história regional se depara na problemática de encontrar fontes sobre o ocorrido naquela localidade, porque o que geralmente é encontrado são relatos sobre pioneiros, ou seja, o primeiro habitante, o primeiro imigrante, etc. Por fim um historiador atento sabe que essas informações se tornam apenas dados caso não obtenha uma análise crítica sobre todo o processo que não é desvelado, não é revisitado. Na cidade de Tuparetama , localizada no Sertão do Pajeú, não é estranho o hábito da pesquisa histórica sobre o município esbarrar nessas questões de origem. Esta máxima talvez se aplique a toda região do sertão, onde a cultura do pioneirismo está inerente à pesquisa, também o que está intrínseco é uma ausência de todo um processo que fica esquecida por causa da própria cultura positivista de listar nomes, datas e fatos, mas esta característica de ordenar os fatos através desse método superficial da pesquisa se dá através das escolhas que o historiador pode fazer em sua metodologia e sua forma de pesquisar ou não determinado fato. Esse artigo pretende analisar a importância do acervo de memória para o historiador, incidindo foco também para a importância desses arquivos para Tuparetama e de que forma este acervo retrata a história regional. É importante também desvelar de qual maneira esse acervo está sendo utilizado e se alcança o público desejado, as dificuldades deste acervo de memória enfrentadas na região, bem como em cidades menores demograficamente e, desse modo, aprimorando a compreensão do tema. Portanto todas as questões estão em torno do acervo histórico do município supracitado. São várias as hipóteses que contribuem para a problemática das fontes históricas do município, que vão desde a execução da retenção de documentos particulares até uma suposta falta de interesse da população, mas com o desenrolar da pesquisa desvela-se que essa dificuldade é encarada também pelos historiadores moradores de Tuparetama que desenvolvem suas pesquisas, entretanto esbarram na burocracia das fontes, lembrando que é notório o fato delas existirem, porém deve ser levado em conta que os livros que abordam o tema histórico possuem poucos exemplares (por vezes são exemplares únicos) que são guardados em armários com cadeados. Interessante o fato da existência de livros de memorialistas sobre Tuparetama, porém apenas um é citado por pesquisadores e a população em geral . A outra hipótese é o acesso restrito a documentos históricos do município e a ausência de meios adequados de preservação, esta situação leva àqueles que possuem algum documento histórico a resguardá-los para si, fechando o acesso aos interessados pelo assunto. Outra possibilidade começa com o tipo de acervo que fica disponível para o público geral: são expostos objetos e fragmentos de construção de pontos históricos (todos eles protegidos por uma grossa camada de vidro), ou seja, deixa transparecer que o público só entende a história municipal através da exposição desses objetos. Também ocorre o fato da ausência do hábito da leitura e da pesquisa por parte da população, pois uma grande parte da população idosa é analfabeta plena ou funcional e entre os jovens não há o hábito da leitura, considerada como algo frívolo. Essa falta de leitura não parte só dos humildes, também ocorre em lares abastados, que só possuem livros didáticos ou então somente por status social. Destarte, entendemos que é notório o fato de que para a realização de uma pesquisa, o historiador deve se apropriar de métodos e mecanismos para o desenvolvimento de seu ofício. A parte destinada à pesquisa e análise de fontes bibliográficas tem como objetivo amparar os argumentos de acordo com autores que em seus trabalhos abordam temas similares, com isso obtendo meios de compreensão das ideias e organização das mesmas. Um auxílio na busca dessas fontes são as visitas na Casa da Cultura, que servem para conferir a problemática proposta in loco e de que forma isto é encarado no cotidiano, afinal se aprende em História que todo enredo tem seu cenário. Portanto os meios utilizados para o desenvolvimento dessa pesquisa passam pelo uso de fontes bibliográficas e leituras para análise. 1. Importância do acervo para o historiador do município A pesquisa sobre acervos se tornou algo importante, pois estes figuram como principais ferramentas para o ofício do historiador, apesar das dificuldades encontradas para se ter acesso a esses arquivos. Esta realidade se reflete não só em pesquisas de grandes proporções, até mesmo uma pesquisa de um alcance variável o acervo também se faz importante, ou seja, a pesquisa pode ter diversos alcances, entretanto o uso do acervo está presente em todas elas. Estes acervos podem ser compostos por diversos objetos, até um fragmento de uma vestimenta, porém se faz necessário uma fundamentação teórica para que se evite cometer equívocos ou ambiguidades. Percebemos, no entanto a falta de interesse de tornar púbicos acervos pessoais, o que de certa forma reflete o pensamento sobre a forma que a história regional deve ser abordada ou preterida. O historiador possui um papel importante nesse processo de descoberta histórica do município, que é tornar pública a história de um local, de um município para que sua população seja consciente de sua história, porque não é ético que os moradores de uma determinada região ignorem a historicidade de seu lugar. Fato recorrente é de uma falsa informação histórica ser dada como verdadeira por falta de um incentivo a pesquisa e divulgação consciente. Como podemos perceber no livro de Tárcio José de Oliveira Silva: Um grande equívoco que acontece é confundir qual dos Beneditos teve um relacionamento extraconjugal com Negra Manuela. Todos acham que foi o Manoel Benedito de Lima, quando na verdade foi seu pai Benedito Maria de Lima, português que se aventurou nesses sertões. (SILVA 1999, p. 96) O relato acima descreve um fato ocorrido nessa região, porém se trata de um acontecimento nada glorioso e de cunho pessoal, que até os tempos atuais os descendentes Beneditos preferem não comentar a respeito. Alguns que pertencem a esta família possuem um diário em que descrevem a trajetória da família que se tornou um livro (“A Saga dos Beneditos”) com apenas 10 exemplares, sendo que esses estão nas mãos desses descendentes e nenhum deles cedeu um exemplar à Casa da Cultura, portanto para obter acesso a esse livro/diário o interessado deve pedir permissão para a pesquisa. A forma como o fato é descrito é também muito superficial, valorizando dados como datas, personagens históricos e assim desconsiderando toda uma conjuntura do processo que fica em segundo plano. Isso também se reflete no olhar que se tem da História por si só, que foi desenvolvida uma maneira que de certa forma se obriga decorar fatos históricos e não se debruçar na questão e compreender. Em consonância com Marc Bloch “Tudo inclinava portanto essas gerações a atribuir, nas coisas humanas, uma importância extrema aos fatos do início.” (BLOCH 2002, p. 57) Algo ocorrido neste município supracitado foi durante as comemorações do cinquentenário de emancipação política, ocorrida em 2012, que consiste na ideia do artista plástico Tárcio José de Oliveira Silva de se voltar em seus arquivos e rememorar seu livro com os fatos históricos da cidade através de um livro de sua autoria, porém este livro atinge somente, pelo menos em tese, o público alvo de historiadores que habitam Tuparetama, como se o conhecimento histórico estivesse restrito nas mãos de historiadores e não de uma gama maior do público que fica à margem desse conhecimento, contando com o fato do livro ser de autoria de um indivíduo que não é ligado à História. O documento escrito (carta, circular, auto etc.) proveniente de um fundo de arquivo foi por sua vez produzido por instituições ou indivíduos singulares, tendo em vista não uma utilização ulterior, e sim, na maioria das vezes, um objetivo imediato, espontâneo ou não, sem a consciência da historicidade, do caráter de "fonte" que poderia vir a assumir mais tarde. (ROUSSO 1996, p. 3) Muitos dos historiadores tuparetamenses , para concluírem seu curso, já fizeram pesquisas e até mesmo artigos sobre o município e os relatos de ausência de disponibilidade de acervo de memória são frequentes, ou seja, mesmo aqueles que estudam a História esbarram na problemática da ausência e até mesmo na retenção retenção de arquivos. 2. A situação e uso dos acervos e do espaço que salvam/guardam A dificuldade também ocorre na ausência de um museu histórico municipal, neste caso a Casa da Cultura ficou a cargo de selecionar um espaço para expor objetos e imagens (fotos, pinturas) referentes a este passado, porém quando diz respeito aos arquivos escritos o panorama é outro: o acesso a esses arquivos é restrito, isso sem citar o pouco acervo de memória que o município possui. Não é raro os livros que remetem a história regional estarem trancados em armários que são abertos apenas quando se tem permissão para utilizá-lo, pois serve para controle do arquivo ou até mesmo a preocupação por possuir um único exemplar do mesmo. A Casa da Cultura foi fundada em 08 de dezembro de 1986 por iniciativa do até então prefeito Pedro Torres Tunú é responsável por manter viva a cultura regional, contando com teatro, sala de oficinas e projetos literários na Biblioteca Pública Municipal Monteiro Lobato. Já os projetos voltados à história regional são raros de serem promovidos, não se comenta em falta de ideias, pois é notório o fato delas existirem, mas detém na questão da falta de incentivo. Seja como for, a consciência da dificuldade de se recontar o passado por parte dos historiadores nunca desestimulou as tentativas de construção de conhecimento desse mesmo passado, nem o constante fascínio causado por esse processo. (COSTA 2009, p. 03) Já a biblioteca possui uma trajetória à parte: foi fundada em 1972, por iniciativa do prefeito Abílio Leite de Oliveira, que durante este período corrente era uma sala do prédio da prefeitura que por dia apenas um público de dez pessoas poderiam ter acesso, sendo que os livros expostos eram didáticos ou de literatura, os de História municipal ficava em posse daqueles que trabalhavam nos cargos públicos. Para democratizar o acesso da biblioteca após a inauguração da Casa da Cultura fez um salão aberto ao público que se tornou espaço da biblioteca até os dias atuais. 3. O acervo de Tuparetama e seu acesso ao público Este questionamento surgiu nas visitas à Casa da Cultura, de onde se encontra tanto o acervo cultural quanto o acervo de memória (ou histórico). Ao fim da visita chega à conclusão que os objetos que remetem à história do município são expostos ao público, claro contando com todo o aparato possível para conservação dos mesmos. Os acervos de memória contidas na biblioteca geralmente são utilizados para esporádicos projetos historiográficos na ocasião do aniversário de emancipação política da cidade, mas esses projetos são ministrados pelas escolas municipal e estadual para um público que ainda se encontra em fase escolar, portanto o panorama encontrado ainda é de um público restrito. Geralmente em eventos populares (festas do padroeiro e de São Pedro ) a Secretaria de Cultura se preocupa em organizar estandes onde tenta mostrar tudo o que envolve a história do município, mas ao fim desses mesmos eventos, este material é reorganizado e armazenado para o ano seguinte, sem ao menos ocorrer estudos dos mesmos durante o restante do ano. Por fim se percebe que o acervo de memória é utilizado apenas para uma exaltação ao passado, em resumo, uma Tuparetama que o turista precisa ver, não exatamente como ela deve ser retratada, mas sim como ela deve ser apresentada diante dos olhos dos visitantes. Aos seus habitantes, em sua maioria, ficam expostos a esse passado a cada ano com a festa de emancipação política e com as festas citadas acima. De acordo com Michel de Certeau “O público não é o verdadeiro destinatário do livro de história, mesmo que seja o seu suporte financeiro e moral.” (CERTAU 1982, p. 71) CONSIDERAÇÕES FINAIS Diferentemente de certos aspectos que se repetem acerca do arquivo ao longo dos anos, os esforços para um melhor retrato da história municipal e seu progresso na forma de abordagem continuam sendo discutidas dentro dos grupos de historiadores nativos dessa região, sendo considerado um novo fato, pois as antigas formas de pesquisa e historiografia aos poucos estão sendo questionadas dentro do meio historiográfico regional, pois se escrevia para um grupo restrito que era aficionado por essa forma de história, agora há uma preocupação em aumentar o leque do público alvo. A relevância da presente pesquisa se dá na medida em que propõe um olhar não apenas sobre as práticas, mas também uma reorganização desses arquivos, onde a área em que se encontravam passa por reformas, com isso a área do acervo tanto historiográfico tanto tátil passa por expansão e cogita-se contar com uma sala de produção lítero-historiográfica dentro do mesmo espaço. Também o município de Tuparetama está situado na área abrangida pelo Instituto Histórico-Geográfico do Pajeú (IHGP) com sede em Serra Talhada , que aos poucos tenta resgatar as histórias dos municípios abrangidos pelo rio Pajeú, lembrando que o mesmo subdivide a área em três partes: Alto, Médio e Baixo Pajeú, perfazendo um total de 13 municípios abrangidos, entretanto a meta do Instituto é filiar 22 cidades, ou seja, o objetivo chega mesmo a ultrapassar essa fronteira imposta pela natureza. Um autor que não é historiador, entretanto defende em suas obras o interior de Pernambuco é Luis Cristovão dos Santos, que em sua obra “Caminhos do Pajeú” lançado em 1955 pela Editora Nordeste, descreve todo o cotidiano daquela gente que mora ao longo daquele rio, abordando aspectos sociais e culturais sem deixar esquecido o processo histórico regional. Por fim conclui-se que apesar das dificuldades de se escrever história por causa de falta ou restrição de acervo, isso não deve servir de barreira para que o historiador não exerça sua função: conscientizar a população do passado de sua região e com isso fazer de um simples cidadão uma pessoa consciente de sua realidade e dessa forma possuir meios de modificar sua realidade de forma pensante, saindo do ciclo de subserviência perante seu cotidiano e seu passado. REFERÊNCIAS BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2002. CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. 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