Todas as manhãs eu sigo uma mesma rotina – acordo, tomo banho, depois bebo meu café, levo minha cachorra pra passear e depois vou ao supermercado da minha quadra comprar uma carninha pra fazer o almoço. Todos os dias, religiosamente. Lá dentro tem uma lotérica e um dia resolvi fazer a fezinha num jogo acumulado havia umas quatro semanas. Era de se esperar que a fila de aspirantes a rico estivesse enorme, mas só havia umas três pessoas na minha frente, de modo que entrei nela e aguardei a mina vez, certo que seria rápido. Foi daí que notei que só havia uma funcionária no guichê e estava atendendo uma senhora havia bastante tempo e a mesma se atrapalhava com as teclas da senha. Pacientemente tentava explicar à senhora o motivo de não dar certo, mas depois de uma imensidão de uns dez minutos, aproximadamente, conseguiu fazer um saque. Nisso eu via a fila aumentando atrás de mim cada vez mais e mais. Quando ia ser atendido o próximo cliente, levo um tranco pelas costas e surge do nada um ceguinho, que por lei tinha prioridade no atendimento. Pediu desculpas, depois licença e foi pro caixa. E tome tempo! Também errava a senha toda a hora, se atrapalhava com a bengala, e cai dinheiro no chão, aparece alguém pra ajudar e depois de outra imensidão de tempo consegue o que desejava e sai tateando com a bengala, sem antes me acertar no pé. Que vontade que me deu de lhe dar uns petelecos na orelha. Ô ceguinho chato! E vai se esgueirando pela parede até se dirigir ao interior do supermercado. Havia na frente outra senhora que tentava puxar conversa com as pessoas, já estressadas com a demora no atendimento. Ela se queixava de dores no pé, que precisava de ressonância e nunca conseguia ser atendida na rede pública, e não sei mais o quê. As pessoas se mantinham atenciosas, mas ela falava em tom desafiador, culpando “esse governo que só rouba e não faz nada pelo idoso”, aquela ladainha de dar dó. Enquanto isso eu vejo um senhor velhinho se dirigindo para a lotérica num passo lento e sofrido. Pra meu desalento se colocou atrás da próxima pessoa a ser atendida, e adivinhe? Levou uma eternidade para acertar a senha e outra eternidade para sair do caixa. A essa altura já estava a ponto de desistir quando me lembrei que já estava ali havia uns vinte minutos e eu seria o próximo, se não aparecesse mais ninguém com prioridade. Rezei com toda a fé pra que tudo desse certo, quando, pra meu ódio, vejo uma mulher grávida de nove meses e sua mãe velhinha se dirigindo para o caixa. Meu Deus, não sei como pude sorrir para as duas, tendo que ceder a vez! E demoraram, demoraram, demoraram! Confesso que tive fantasias de violência. Até que finalmente chegou a minha vez de ser atendido. Mas, como sempre, tudo o que está ruim sempre pode piorar. Advinha? Justo na minha vez o sistema havia saído do ar, pra minha incredulidade, e não havia prazo para voltar. Só consegui balbuciar um “não acredito”, num misto de raiva e aterradora frustração. Resignei-me com o fato e deixei a fila para fazer as compras, aborrecido e um tanto desanimado. De repente, eis que vejo de longe o ceguinho novamente, desta vez a ponto de se esborrachar do alto da escada, sem saber do perigo a que estava exposto. Tive ímpetos de gritar para ajudá-lo, mas o meu lado mau tomou contou conta de mim. Fiquei em silêncio e continuei observando, desejando ardentemente que tropeçasse e caísse, como pra me vingar dele e do tempo que perdi na fila, mas um funcionário correu para ajudá-lo, frustrando a minha vingança. Pedi perdão a Deus por ter tido pensamentos horríveis e me julguei um crápula ordinário. Mas fui punido exemplarmente, quando descobri que o tal ceguinho havia ganhado uma pequena fortuna numa raspadinha...