Uma reflexão sobre o papel do professor no ensino de literatura: práticas nas escolas moçambicanas

Merciana Alberto Uamba

Universidade Eduardo Mondlane

 

Numa sociedade como a nossa, a moçambicana, onde a leitura não se configura uma prática de lazer, é a escola, na maioria dos casos, que desempenha um papel fundamental na iniciação à leitura. O professor, neste caso, aparece como uma figura incontornável para despertar, nos alunos, a fome e o gosto pela leitura. Portanto, o professor deve estar apto à desenvolver competências de leituranos alunos. Cabe-lhe, também, o domínio e o reconhecimento das potencialidades formativas do texto literário. Neste trabalho, pretendo reflectir sobre a postura do professor no processo de Ensino de Literatura, trazendo uma abordagem sobre as práticas actuais, bem como as desejadas.

A pesquisa baseia-sena hipótese de que há um uso ineficiente do texto literário na sala de aula.Estas lacunas, de vária ordem, vão influenciar naquilo que é o desempenho do aluno dentro da sociedade.Os argumentos e as reflexões que serão feitas têm bases teóricas e, como fruto do sistema nacional de escolarização, também basear-me-ei em experiências próprias.

No concernente à estrutura, o texto apresenta um título, esta introdução, o desenvolvimento, as considerações finais e, por fim, as referências bibliográficas. O ponto seguinte destina-se à análise e ao desenvolvimento do tema escolhido.

 

Práticas actuais: atitudes e papel do professor

O professor desempenha um papel fundamental no processo de ensino aprendizagem em qualquer área do conhecimento. No processo de ensino de literatura, este papel é acrescido devido ao carácter formativo desta disciplina. O professor é a entidade que, devido a vários problemas de ordem social, deve despertar no seu aluno o desejo e a fome de leitura. Entretanto, isto só acontecerá se o professor estiver engajado nesta causa. Na realidade moçambicana, parece difícil encontrar professores preparados para executar este papel relevante. O professor aparece como um ser estagnado no tempo, usando os métodos clássicos como a única metodologia. O texto literário é visto somente como um instrumento de amostragem da boa língua. Como pontua Serôdio (2004), a colocação do texto literário na dimensão informativa, histórica, histórico-literária, teórico-literária pode constituir um factor de repulsa à leituras de fruição. Gusdorf (1970), citado por Piletti (2004), diz que nos princípios da vida, o professor exerce um papel de pai e de mãe na função primacial de testemunha e indicador da verdade, do bem e do belo. Ao assumir-se o uso dado à literatura mencionado por Serôdio (2004), não se estaria a induzir um conjunto de pessoas a um olhar distorcido da verdade, do bem e do belo referido por Gustarf como função do professor? A ideia não é de colocar o professor como quem tem o papel de redenção, mas se a sociedade em geral não consegue formar leitores, de algum lugar deve partir a solução.

Esta atitude que se tem perante a literatura chega a remeter ao sistema de educação colonial cujo objectivo não era de transmitir aos jovens o orgulho e a confiança de membros da sociedade,mas sim a implantar um sentimento de submissão face ao europeu:

A escola colonial ministrava uma educação para subordinação.(Mendonça,1988:19)

Não se estará, 45 anos após a independência, a educar para o mesmo fim? A subordinação? O que ocorre é que as actividades de leitura na escola, muitas vezes, são pretexto para o ensino da gramática. O texto literário funciona como meio de ensinar as correntes literárias, afinal o texto literário não tem um carácter formativo? Como é que o aluno desenvolverá habilidades de leitura com estas atitudes? Não será, ainda hoje, uma educação frágil, destinado a transmitir ao jovem tudo, menos o direito à reflexão, à crítica e ao seu autoconhecimento?

Serôdio(2004), no seu estudo intitulado O Ensino da Literatura: Concepções e Práticas, diz haverdiferençasna forma como os professores de Português encaram e exercem o ensino da literatura.A autora destaca a existências de três classes de professores: ‘os simplificadores’, ‘os estetas’ e ‘os pedagogos’. No que me parece, o professor ‘Simplificador’ é o mais comum. Este não apresenta preocupação com as potencialidades educativas da literatura, nem com as formas de a tornar mais interessante e relevante para os alunos. Nas escolas moçambicanas assistimos a muitos casos em que a literatura é usada como amostragem da história, bem como da boa língua.

Da postura actual à emergência de mudança

O estágio actual do ensino da literatura não é satisfatório. Aceita-se a inexistência de condições básicas, como a questão das bibliotecas, porém, se já se assume que a escola é o primeiro lugar de contacto com o livro e com a leitura, e o professor é a peça-chave de iniciação, recairá sobre ele a tarefa de despertar o hábito de leitura. Nesta senda, é evidente que o professor precisa, segundo Piletti (2004), determinar inicialmente o que o aluno será capaz de fazer ao final do aprendizado. Se não define os objectivos, não pode avaliar o resultado de sua actividade de ensino, nem escolher os procedimentos mais adequados. Na mesma perspectiva de Piletti (2004), Rouxel (2013) refere que antes de questionar a maneira de ensinar a literatura, há aspectos incontornáveis como: as finalidades, intenções e os objectivos do ensino da literatura. Sem dúvida há que se ter estes aspectos na tomada de decisões apropriadas para o ensino da literatura. Se o professor não sabe para quê ensinar a literatura e não tem noção do papel da mesma na formação íntegra da pessoa, vai-se continuar a assistir à reprodução daquilo que consta do livro didáctico, assim, o direito à criatividade não estará em uso.

No que diz respeito ao uso da criatividade, por parte dos professores, é evidente uma ‘preguiça mental’, um gosto religioso pelo que já foi feito e, de certa forma, uma repetição sistemática daquilo que na verdade não tem tido efeitos. Ora,O Plano Curricular Do Ensino Secundário Geralprescreve o direito à criatividade e flexibilidade do professor, mas parece que o professor prefere o conforto do livro didáctico. Se o professor tivesse a ideia ou um plano do leitor que pretende formar, não seria ele o primeiro a mudar a praxis do ensino da leitura em função das necessidades identificadas? Parece que o professor concentra-se, demasiadamente, no livro, não ocorrendo que há um documento orientador que proporciona alguns privilégios ao professor. Ainda assim, há que se perceber que este problema é estrutural.

Rita Faleiros, grande pesquisadora da área do ensino da literatura, defende a ideia de que ensinar a ler literatura pressupõe saber que tipo de leitor pretende-seformar. No meu ponto de vista, este é um ponto crucial para se definir o ‘como ensinar’. Assim, quando o professor tem por objectivo formar um leitor crítico, as aulas serão mais interactivas, com foco na opinião dos alunos e na reflexão sobre as abordagens trazidas em um determinado texto literário. Se se pretende formar um aluno com domínio da estrutura de um tipo de texto e suas características, teremos um professor com a postura mencionada por Coelho(1983), servindo a literatura como simples amostragem do aprendido na História da Literatura.

Nesta reflexão surge uma questão, se o professor quiser formar um crítico, ele não devia ser o primeirocrítico? Partindo do pressuposto de que só se pode ensinar o que se sabe.É urgente a formação de professores com habilidades que, futuramente, possam transmitir aos seus alunos. Se a finalidade da literatura é de formar leitores para a aprendizagem ao longo da vida, o professor deve, verdadeiramente, estar dotado de metodologias próprias que permitam essa formação. O que não se pode é continuar assim.(Coelho, 1983)

O professor de Literatura

É preciso que os professores de literatura e o sistema de ensino de um modo geral ofereçam aos alunos tempos de prática de leitura, seja na sala de aula, seja na biblioteca ou em outro espaço na escola para que os alunos exercitem habilidades de rapidez, concentração, autocontrole, implicadas no processo de leitura.(Machado,2017:64)

Outra abordagem é trazida por Fonseca(2000), que se refere ao texto literáriocomo grande formador que, como efeito de seu uso, há um processo de construção, pelo aluno, de uma relação criativa consigo próprio, com outrem, com o mundo cognoscível e com a língua. Assim, o professor deve optar por estratégias que permitam o usodeste poder formativo da literatura.

Fora as habilidades acima mencionadas, é incumbido ao professor a tarefa de incentivar e estimular a auto-aprendizagem a partir de leituras dirigidas e compartilhadas, por ser nestas actividades que os alunos desenvolvem os modos de ler que devem ser interiorizados e organizados. Machado( 2017)

É urgente a emergência de um professor ‘Pedagogo’ que, segundo Serôdio (2000), é o mais profissional, aquele que encara globalmente o ensino da literatura, bem como o da disciplina de português. Este profissional, o ‘Pedagogo’, encaracom muito entusiasmo e empenho os conteúdos de Literatura. Este professor reconhece o interesse dos alunos pela literatura, cujas potencialidades perfilha no desenvolvimento das competências linguísticas e culturais e na formação dos valores humanos. A ideia central do professor deve ser a constante actualização demetodologias em prol do desenvolvimento da autonomia dos alunos na sua relação com os textos literários.

Considerações finais

O panorama actual precisa ser revertido. É urgente a mudança de atitudes perante a literatura. Os argumentos acima arrolados encontram-se centrados na postura do professor, porém háque se reflectir sobre esta questão numa visão mais geral, onde toda uma sociedade carece de novos paradigmas relativamente à literatura. O objectivo da Literatura é formar leitores, o ensino de literatura precisa estar directamente ligadoao tipo de cidadão que se pretende.Assim, é preciso que o professor, a quem recai a tarefa de iniciar à leitura, defina metodologias flexíveis que favoreçam o estatuto que a Literatura merece, gozando do seu carácter educativo.Como refere Cândido (1995),a literatura insere-se nos bens incompressíveis (os que não podem ser negados a ninguém), tal como a alimentação, a moradia, a saúde e outros. O que se espera é que a postura do professor perante o ensino da literatura traduza esse carácter. A ideia não é responsabilizar o professor pelo estágio da literatura, pois bem reconhece-se que o problema é estrutural. Ainda assim,assume-se que a solução deve advir de algum lugar e, nesta abordagem, vê-se o professor como a entidade impulsionadora de mudança.

Para trabalhos futuros, é necessário um estudo empírico, nas escolas moçambicanas, para uma maior propriedade de argumentos sobre a praxis.

Bibliografia

Cândido, A. (1995). O direito à  literatura . In A. Cândido, Vários Escritos (pp. 235-263). São Paulo: Duas Cidades.

Coelho, J. (1983). Ao Contrário de Penélope. Porto: Figueirinha.

Faleiros, R. (2013). Sobre o prazer e o dever de ler: Figurações de leitores e modelosde ensino da literatura. In Dalvi et all, Leitura de Literatura na Escola (pp. 113-134). São Paulo: Parábola.

Fonseca, F. (2000). Da inseparabilidade entre o ensino da língua e da literatura. In Didáctica da língua e da literatura (pp. 37-45). Coimbra: Almedina.

Machado, R. (2017). Leitura literaria na escola:algumas reflexões sobre o ensino de literatura na educação básica brasileira . In M. Amorim, Ensino de literaturas: perspectivas em linguística aplicada (pp. 162-171). Campinas: pontes.

Mendonça, F. (1988). Literatura Moçambicana: a história e a escola.

Piletti, C. (2004). Didáctica Geral. São Paulo: ática.

Rouxel, A. (2013). Aspectos metodológicos do ensino da literatura . In Dalvi et all, Leitura de Literatura na Escola (pp-33-45).São Paulo:Parábola

Serôdio, C. (2000). O ensino da literatura: concepções e práticas. In Diáctica da Língua e da Literatura (pp. 468-473). Coimbra: Almedina.