UMA REFLEXÃO PSICANALÍTICA SOBRE OS CONFLITOS DE ASAFE NO SALMOS 77

Por José Lima de Jesus | 19/01/2022 | Psicologia

A religião cristã é produtora de sentido, pode ajudar o psiquismo a lidar com os conflitos existenciais, paradoxalmente, pode agravar as neuroses, produzir surtos psicóticos e contribuir para um estado depressivo. Nessa reflexão o autor tem por objetivo mostrar como os conceitos teológicos que organizam a crença se relacionam com as experiências subjetivas dos fiéis, como: aceitação, amor e empatia.

A estrutura narcísica (Eu) e objetal (relação com o outro) construída desde o período do autoerotismo (bebê) à primeira infância, vai determinar a intensidade da  angustia do sujeito em relação ao objeto do desejo. A narrativa usada como base é a experiência do personagem Judeu por nome Asafe, ao qual é atribuído a autoria do Salmos 77.

Asafe sentiu que suas crenças estavam em conflito com a realidade e, na busca de respostas, começou a apresentar os sintomas de hiperatividade e introspecção. O personagem conseguiu sair da crise ao aceitar suas limitações na compreensão dos fenômenos existenciais, que a fé utiliza a razão para explicitar seu conteúdo, mas não dá conta de todas as contingências que a vida propõe. 

Da Frustração à Depressão

A experiência de Asafe mostra se deflagrou o processo de depressão, ele começou orar (77.1) orou a noite (77.2) e não obteve respostas para suas inquietações. Asafe começou a fazer perguntas que jamais teria coragem de fazer a alguém que confessava a mesma fé que Ele, isso porque, certamente seria julgado como incrédulo ou que não tinha fé. Sua construção teológica herdada da tradição começou a sofrer os impactos da experiência da vida. Sem respostas, bateu o desânimo "meu espirito desfalece", a partir dai deu inicio uma grande frustração (77.3). A pressão psicoemocional produziu insônia, "não me permites fechar os olhos" (77.4), seu cérebro não desligava (77.5), como efeito, começou a refletir sobre experiências passadas que tivessem representação do que estava vivendo, como forma de encontrar sentido para os seus conflitos (77. 6).

Principio do Prazer e o Principio da Realidade 

Na teologia, a palavra "graça" é usada para falar da relação entre Deus e o homem, onde não há méritos do homem para que Deus o aceite como filho. A incondicionalidade da bondade de Deus em relação ao homem é sem interesse, independe das falhas humanas, mas o salmista começou a duvidar do que havia aprendido: "Irá o Senhor rejeitar-nos para sempre? Jamais tornará a mostrar-nos o seu favor?" (77.7).

O conflito do Salmista o levou questionar a teologia da graça, ao admitir que sim, Deus poderia o rejeitar, mas essa rejeição seria para sempre? Se a resposta fosse sim, logo, faz sentido, explicaria a razão de seus rituais não ter efeito, não obter respostas para suas petições. (77.1-4). Será que de fato, Deus não iria mais agir em seu favor? Essa primeira pergunta reflete o conflito interno que o Asafe vivia.

Na interpretação do Salmista, Deus não rejeita o homem, e sim o homem que rejeita Deus, mas agora, depois de fazer tudo o que aprendeu que deveria fazer para ser ouvido e atendido por Deus (77.1-4) porque ele não respondeu? Teologicamente a pergunta retorna a pessoa do Salmista, e o conflito aumenta: "Se Deus não muda e estou na sua presença orando a Ele, o que aconteceu?".  Quando a pulsão não alcança seu objetivo, que é a realização, entra em ação os mecanismos de defesa para suportar a angustia.

O Salmista direcionou suas energias psíquicas para seus objetos internos, suas crenças, teologia e tradição, então passaram a refletir sobre três doutrinas pilares da sua fé. Numa reflexão psicológica, as inquietações do Salmista estão intrinsecamente ligadas a sua subjetividade na sua relação narcísica (EU) e de Objeto (o Outro/Deus).

A fé está conectada as experiências no percurso da dependência absoluta (narcisismo primário) quando o bebê é totalmente dependente da mãe à independência relativa (narcisismo secundário) quando a frustração começa a quebrar a ilusão criada pelo bebê de que tudo estará sempre a sua disposição no momento em que ele necessitar.  

A Fé e a Internalização dos Sentimentos: Aceitação, Amor e Empatia. 

Asafe, assim como todos os cristãos, nem sempre tem respostas para os mistérios da sua fé, então passou a procurar outras formas de entender o que estava acontecendo, começou a se perguntar sobre três doutrinas centrais da sua fé: Graça = Aceitação,  Amor = Segurança e Misericórdia  =  Empatia.

Psicologicamente a questão é: Como foi a relação do Salmista no seu desenvolvimento? Qual teria sido a relação dele com seus pais desde a infância, teria sofrido abandono, seus pais teriam sido escravizados, qual foi o grau de satisfação e frustração na relação sujeito/objeto na sua experiência e como lidou com suas perdas?

Quanto maior for a carência afetiva, maior  o trauma em relação a pessoa e a sua fé na relação do prazer e realidade,  sua estrutura neurótica será proporcional a relação que seu  Ego teve para lidar com seus desejos. O Salmista começa a refletir sobre seus dogmas teológicos.

(1) Deus pode rejeitar? A experiência internalizada de insegurança na relação ao objeto de desejo: Aceitação/Rejeição.

“ Será que o Senhor vai nos rejeitar para sempre? Será que ele nunca mais vai ficar contente conosco”? (Salmos 77. 7. NTLH - Nova Tradução na Linguagem de Hoje).

A angustia é proporcional a experiência subjetiva da pessoa, o quanto foi aceito ou rejeitado em suas relações, vai determinar o grau de angustia que projetará nos momentos em que suas crenças forem confrontadas com a experiência. Se a pessoa teve um histórico de rejeição, a angustia será insuportável, todas as relações em que a pessoa foi rejeitada, serão transferidas para Deus como seu objeto de amor. A ansiedade dessas pessoas é extremamente densa.

A ansiedade da pessoa que tem um histórico de rejeição poderá produzir angustia persecutória, a pessoa poderá criar fantasias de conspiração, alienar-se da realidade com uma espiritualidade radical, o fanatismo atua como mecanismo defesa para o medo da rejeição. É preciso se esforçar, cada vez mais se envolver em ações que diz ser para "o reino de Deus" quando todo seu esforço visa garantir que não será rejeitado por Deus, assim como o foi na sua experiência de vida. Esse é um processo inconsciente, não está a disposição para ser acessado pela pessoa.

O Cristão pode sentir angustia de acordo com a experiência do quanto se sentiu aceita ou rejeitada em suas relações e, como o EGO reagiu usando o mecanismo de defesa para se proteger so sofrimento, como a projeção: “vai me rejeitar”? (77.9 – NTLH). 

Melanie Klein em sua teoria psicanalítica diz que se nas relações iniciais da vida, o bebê vai internalizar o “seio bom”, que são as experiências de gratificação, quando a mãe atende suas necessidades e o “seio mau” quando a mãe o frustra, não o atende de imediato as suas necessidades. O bebê vai reagir de acordo com o que ele sente – assim - o cristão pode agir da mesma forma, quando seu objeto de desejo (Deus ou alguém da Comunidade de Fé), não atender suas expectativas de gratificação, irá vivenciar essas angustias primárias, mesmo adulto reagirá como um bebê.

A reação à frustração será de acordo com a intensidade da angustia vivenciada, se a angustia não foi demasiada, o bebê aprende que a ausência do objeto desejado é temporária aprende a tolerar a frustração, ao mesmo tempo, internaliza o sentimento de esperança.

(2) O amor de Deus tem prazo de validade? A experiência subjetiva com o objeto de amor: Amar/Ser Amado  

“Será que deixou de nos amar? Será que a sua promessa não tem mais valor”? (Salmos 77. 8. NTLH - Nova Tradução na Linguagem de Hoje).

Quais as experiências em relação ao objeto de amor na experiência sentiu gratidão pelos afetos que recebeu ou na obrigação de pagar não se achar merecedor? Qual a forma de relação estabeleceu como introjeção e projeção em amar e ser amado? Essa questão é central, o amor materno/paterno normalmente é incondicional, mãe e pai ama o filho (a) porque simplesmente ama, não é uma questão de o filho (a) fazer algo para ser amado.

Essa é uma das doutrinas centrais da fé cristã, Deus amou e encarnou, viveu como homem e sofreu por amor aos seus filhos, é uma ação unilateral, não há contrapartida para esse amor, contudo, se na experiencia de vida a pessoa internalizou que amar é fazer para ser amado, logo, tem sentido a pergunta do Salmista: "Desapareceu para sempre seu amor"? (Sl 77.8), ou seja, desaparece o que aparece, deixa de existir o que um dia existiu.

Inconscientemente o cristão pode ter internalizado a crença  de que ser amado está condicionado a sua capacidade de não falhar, não errar, de satisfazer plenamente o outro, como forma de garantir seu amor. O amor não é causa, mas sim efeito, assim, se não atender as expectativas do outro, não merecerei seu amor. Essa matriz psicológica produz angustia e insegurança e grande sofrimento psicoemocional, nas relações essas pessoas tendem a ser ciumenta, possessivas, sufocam o outro, e tem problemas de relacionamentos.

Na teoria psicanalítica, o pensamento surge como uma forma de dar sentido à ausência do “seio bom”, aquele que gratifica, contudo, se a ausência for insuportável para o EGO que ainda é imaturo, o bebê lança para fora a angustia e, essa volta como perseguidor, dai que a falta de atenção do outro é vivida abandono. Se a pessoa em sua experiência aprendeu que amar significa: sempre ter as expectativas correspondidas, não ter as expectativas correspondidas é porque o outro deixou de amar, “Será que deixou de nos amar”? (Salmos 77. 8 - NTLH).

Essa forma de sentir ira se atualizar no momento em que a fé for confrontada com a experiência de frustração, tanto em relação ao objeto da sua fé (Deus), quanto nas relações pessoais quanto na amorosa, se o outro não agir com bondade é porque deixou de ser bom, “Será que Deus se esqueceu de ser bondoso”? (Salmos 77. 9 - NTLH).

(3) Deus sente o que sinto? A experiência subjetiva na relação de objeto com  angustia: Suporte/Empatia. 

Será que Deus esqueceu de ser bondoso? Será que a ira tomou o lugar da sua compaixão?”.  (Salmos 77. 9 - NTLH).

O cristão em seu histórico de vida, nos seus momentos de angustias teve uma "mãe suficientemente boa" ou alguém que o tomou nos braços, deu colo, alguém em quem projetou seu sofrimento, ou não teve ninguém para se colocar no seu lugar? Até que  ponto alguém que amo pode suportar minhas faltas e ainda assim, não deixar que sua raiva destrua o objeto do seu amor?

Essa questão é bastante complexa, quando a pessoa não introjetou o "seio bom" ou "objeto bom" em maior quantidade que o "seio mal" ou "objeto mal", vive essa angustia, o medo de que a "ira do outro" seja superior as suas falhas, isso porque, projeta sua condição interna no outro. Devido sua condição interna que ao longo da sua vida, pode ter se culpado pelo fracasso nas suas relações.

Esse estado interior faz a pessoa viver a expectativa de que o outro não vai ter capacidade empática de se colocar no lugar dele, sentir o que ele sente, e agir diferente, isso porque, desde períodos arcaicos não teve alguém que fizesse a "riverie" (Bion), ou a maternagem (Klein) ou ainda o holding/handling (Winnicott).

Devido a essa experiência, sofre angustia, pela expectativa de perder o objeto, ao projetar nele suas angustias, pois lhe faltou esse objeto que recebesse suas angustias e as devolvesse com sentimentos que o viesse acalmar, lhe dar esperança, proporcionar a capacidade de "viver a experiência" com menos angustia, menos sofrimento psíquico.

Essa forma de agir pode ser percebida em pessoas nas quais tem dificuldades para tolerar erros do outro, ou a satisfaz de imediato e assim são percebidas e sentidas como “bondosas” ou não a satisfaz, e assim, deixou ser uma pessoa boa, e ainda se tornou insensível “Será que a ira tomou o lugar da sua compaixão? ”(Salmos 77. 9b - NTLH).

Essas pessoas se tornarão dependentes e ansiosas, exigirão das outras, respostas rápidas, caso contrário, irão se sentir abandonadas, esquecidas, desamparadas. O Salmista certamente se relacionava com as pessoas da sua comunidade de fé da mesma forma que havia se relacionado com sua família, e projetou em Deus (seu objeto de fé) seus sentimentos internalizados como efeito de um Ego fragilizado, verbalizou que Deus se tornou indiferente ao seu sofrimento, “Então eu disse assim: O pior de tudo é que o Deus Altíssimo não quer nos ajudar mais como antes”. (Salmos 77. 10- NTLH).

A pessoa sempre que se sente vitima, reproduz em sua comunidade de fé experiências traumáticas que vivenciou em sua existência, desde os períodos iniciais da sua vida.

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