Ainda no tempo da ditadura militar, um tarimbado professor de Língua Portuguesa é avisado na sala de aula pelo inspetor de alunos que dois soldados da Polícia Militar estavam à procura de um professor de português. “Como o senhor é o único na escola, dei o seu nome”, disse o inspetor.

O mestre quis saber do que se tratava, mas o funcionário não sabia informar, pois os soldados não explicaram qual era o assunto, dizendo que era só com o professor.  Ele então pediu licença à classe, solicitando que os alunos continuassem fazendo o exercício de análise sintática que ele voltaria rápido, pois acreditava que deveria ser algum engano. O trajeto da sala de aula até a sala dos professores foi uma eternidade. Passou em revista na memória tudo o que fez ou que falou durante as aulas, com quem conversou, seus amigos engajados politicamente e outras preocupações.  Não se lembrava de nada relevante que pudesse criar algum problema com a polícia.  Tinha lá suas convicções políticas, mas evitava de comentá-las em sala de aula e mesmo na sala dos professores. Pelo telefone, ao contrário do Drummond, não perdeu suas melhores horas de amor. Falava pouco, muito pouco no aparelhinho.

Lá estavam os dois meganhas com uma das mãos sobre os revólveres, hábito comum entre eles, mas será que vieram me prender? Devo fugir e procurar um advogado antes de me entregar? Poderia sair pelo portão dos fundos, mas e se tiver uma viatura lá também? O jeito é manter a calma, não mostrar preocupação ou nervosismo. Será que foi a aula em que dei o poema “Elegia 1938” do Drummond para os alunos analisarem? O último verso: “...porque não podes, sozinho, dinamitar a Ilha de Manhattan”, é pesada.   Ele explicou para os alunos que era apenas uma metáfora que autor utilizou e o poema foi escrito antes da Segunda Guerra. Pensou nas torturas, nas mortes nos porões da ditadura, na família...

Enfim, estava diante dos policiais que pareciam simpáticos e nada hostis. Um deles o cumprimentou dizendo:

- O senhor é o professor de Português?

- Sim, eu mesmo, respondeu com alguma afetação, pois não conseguia disfarçar o desconforto.

- O problema é que estamos com uma dúvida e estávamos discutindo na viatura se soldado é usado para os dois sexos ou se existe o feminino soldada.

O professor quase caiu na gargalhada diante da dúvida. Jamais poderia imaginar que dois policiais parassem em frente à sua escola para esclarecer uma coisa tão simples, tirando um professor da sala de aula. Mas se conteve e sorriu mostrando-se simpático para os dois, pois se gargalhasse, poderiam usar o argumento de desacato à autoridade e enquadrá-lo em algum código penal. Recompondo-se rapidamente, respondeu sério como convém a um mestre:

- Existe sim o feminino de soldado, que é soldada. De acordo com as regras gramaticais o substantivo soldado tem a flexão em gênero. Era só isso? completou.

- Era só isso mesmo, respondeu um dos policiais, que sorria, indicando que ganhara a aposta do colega.

Cumprimentaram o professor e saíram rindo pelo portão de entrada. Os professores que viram a cena vieram perguntar o que havia acontecido, se houve algum problema. “Nada, nada... apenas uma questão de gênero, mas sem nenhuma violência”, respondeu o mestre, retornando para a sala de aula, onde os alunos brincavam atirando aviõezinhos de papel.