Uma questão de boca ou de bico.
Publicado em 22 de março de 2013 por Carlos José Esteves Gondim
Certa vez, não sei ao certo se era de manhã, ou de tarde, ou de noite, mas tenho certeza que era no tempo em que o homem entendia a fala dos animais, que tudo aconteceu.
Estavam conversando alegremente, dona raposa e dona garça, à beira de um grande rio amazônico:
-- Vou te convidar para um almoço – gazeou a garça – A raposa, assustada pelo inesperado convite, ruivou, surpresa:
-- Oh, dona garça, quanto prazer me dará. Só lhe peço que não me ofereça peixe, pois, com essa história de contaminação dos rios com mercúrio e com essa onda do cólera, não coloco minha boca, nem que seja BLT (boca-livre-total), em peixe cru que venha deste rio.
Deixa comigo. Amanhã que é domingo, chegue cedo que lhes brindarei com um prazeroso manjar – gazinou a garça.
No dia seguinte, dona raposa, ansiosa pela comida, chegou mais cedo que pôde na casa de dona garça.
-- É pra já – grasnou dona garça.
-- Estou que tou – roncou a raposa, já no interior da casa de dona garça.
Dona garça tinha preparado um chibé com a melhor farinha da praça. Colocou cuidadosamente em uma garrafa pet de 2 litros, vazia de refrigerante, para melhor apresentação.
-- Venha dona raposa – gazinou dona garça – Amesende-se e delicie-se com esta iguaria.
A raposa olhou, andou um pouco, parou. Rodeou a garrafa, parou de novo. Mais uma olhadela e pensou: “Como é que eu vou colocar a minha boca nesta garrafa?” Enquanto isso, dona garça introduziu seu longo e fino bico na vasilha e tomou todo o chibé, para a decepção da raposa, tida e havida como um dos bichos mais astutos de toda a floresta. Pé ante pé, a raposa saiu, não sem antes falar, ao ouvido de dona garça: -- Se preocupe, não. Um dia desses vou lhe devolver esta gozação – E foi se embora.
Dito e feito. Passado o verão amazônico, já no início das águas, encontraram-se novamente dona garça e dona raposa na beira do grande rio. A raposa, como tinha prometido à amiga, convidou-a para um almoço em sua casa.
-- Só não me ofereça peixe, pois, com essa história de contaminação dos rios pelo mercúrio e com esta onda do cólera, não coloco meu bico nem que seja BLT (bico-livre-total) em peixe cru, que venha deste rio – gazeou dona garça, do alto de suas longas e finas pernas. Dona raposa, de pronto concordou: -- Não tema, que isto eu não farei – uivou dona raposa, tirando alguma dúvida de dona garça quanto a isso. Marcados dia, hora e lugar, despediram-se.
Chegado o grande dia que, por coincidência também era um domingo, dona garça aterrissou à porta da casa de dona raposa, ainda quando o sol se espreguiçava lá no horizonte.
Sobre uma laje de pedra lisa, que ornava a sala de sua casa, derramou 2 litros de um chibé cheiroso e gostoso que fizera. Convidou dona garça para servir-se. Esta, coitada, olhou para o líquido derramado, deu vários passos ao redor e desesperadamente tentou, sôfrega, capturar o chibé. A raposa aproximou-se da mesa improvisada, lambeu compassadamente o almoço e uivou triunfante. O som ecoou por toda a floresta. Tinha, assim, devolvido, finalmente, a gozação à dona garça.
Esta história, mostra que cada bicho na Natureza possui uma adaptação anatômica para o hábito alimentar que a evolução biológica desenvolveu através da seleção natural. Esta história, foi inspirada em outra, que me foi contada pelo meu grande e querido pai.