Um amigo do meu primo, doido pra passar adiante aquela horrenda mala sem alça, emprestou-lhe um carro para que ele fosse com a família até uma cidade serrana do Rio de Janeiro, aonde passaríamos um fim de semana. Caso se interessasse, ele o venderia por um bom  preço, mas só negociaria se fosse à vista. O carro, disse o dono, acabara de sair da oficina para uma geral e estava tinindo de bom, e era uma peça rara.

Era um daqueles carros antigos, grandes, pesados e espaçosos, cuja marca eu não me recordo qual era, até porque não me ligo nessas coisas, mas daquele dia eu nunca pude me esquecer. O primo ao volante, a seu lado a noiva e atrás íamos eu e os pais dele. Era um sábado de verão e o dia não podia ter amanhecido mais bonito, com um lindo céu azul e aquele solzinho amarelo iluminando as estradas da serra, rodeadas de marias-sem-vergonha, aquelas florzinhas rosa choking,  enfim era um belo dia, lá pelo final dos anos sessenta. E lá fomos nós alegres e fagueiros rumo à Petrópolis.

O meu primo, a noiva com a cabeça encostada no seu ombro, feliz da vida abraçando moça alegremente cantarolava com uma bonita voz de barítono:

Sou um menino, um passarinho com vontade de voar...

Ah, quem sabe um dia encontrarei alguém que seja assim tão apaixonado por mim, falava eu para os meus botões. E não é que encontrei? Demorou, mas encontrei.

Tudo corria bem até que o carro, passando sobre algum obstáculo deu um tranco, um solavanco.

- Crisstooo!!! - Gritou bem alto a minha tia, apavorada.

- Calma aí mãe! Caramba! Aonde a senhora está vendo Cristo? Até me assustei.

- Meu filho, respeite o nome do Senhor!

- Ué, eu não estou falando nada, mas é que a senhora gritou tão alto que todo mundo se assustou. O carro apenas pisou em algum obstáculo, só isso.

Até aí tudo jóia, não fosse alguns dez minutos depois, quando o motor começou a ”morrer” ao chegar na parte mais alta da estrada. Tenta daqui tenta dali, o motorista desce, abre o capô, verifica alguma coisa, volta e tudo fica jóia de novo e a viagem continua. Mais uns vinte minutos e começa tudo de novo.

- Desce todo mundo e vamos empurrar o carro, falou o meu primo.

A minha tia, extremamente religiosa, fanática mesmo, tudo pra ela era obra do demônio, só falava em milagres, curas mirabolantes e outras coisas sobrenaturais. Tudo bem, até concordo mais ou menos, mas peraí gente! Dá um tempo, né...

Então ela fechou os olhos apertando bem as pálpebras e começou a repetir : Jesus, Jesus, Jesus, Jesus, Jesus, Jesus... E batia as palmas das mãos como que pra reforçar o que estava falando.

- Pára, mãe, desce do carro e vem ajudar a gente a empurrar que ele pifou de novo!

O meu tio, por volta dos setenta anos e já com visíveis sinais de demência, estava sempre fora da realidade. Tranquilamente encostado no carro, escorado na sua bengalinha, muito compenetrado segurava um papelzinho e uma caneta e anotava alguma coisa o tempo todo, enquanto a turma dava um duro danado. E falava baixinho: nove... onze... vinte e sete... seis...

- Nhón, nhón, nhóm, nhón... nhón, nhón, nhón, nhón... nhón nhón nhón... E o motor nada!   Não pegava de jeito nenhum. 

Por fim pegou e lá fomos nós aliviados. Entramos no carro e continuamos a bendita viagem.

- Ai Deus! Foi Jesus, falou minha tia e acomodando no banco, enquanto o primo voltava a cantarolar abraçado à noiva, tentando esquecer a luta.

Sou um menino, um passarinho com vontade de voar...

Acho que já estávamos a uns quarenta minutos da cidade quando de repente a moça falou:

- Ai amor, acho que está saindo fumaça debaixo do capô...

Então eu percebi que de dentro das brechas do carro também estava saindo fumaça.

- Jesus, Jesus! Gritou em pânico a minha tia.

- Hiiii... onde há fumaça há fogo! - falou o velhinho dando uma risadinha, como se nada estivesse acontecendo.

- Cala a boca Dinho, não fala bobagem e desce também - exclamou minha tia, já entrando em choque e tossindo por causa da fumaça.

- Desce todo mundo rápido, falou o meu primo.

E lá estávamos todos novamente de pé em volta do carro, que soltava fumaça pra todo lado, exalando cheiro de borracha queimada.

Jesus, Jesus, Jesus, Jesus, Jesus... rezava minha tia, batendo com uma mão fechada sobre a palma da outra mão e nós, atônitos, não sabíamos o que fazer enquanto meu primo novamente abria o capô e tentava descobrir o que provocava aquele fumacê. Naquele tempo nem se sonhava com ar condicionado em carro e fazia um calor infernal.

Nesses momentos o que não falta na estrada são curiosos, que só servem pra perturbar ainda mais.

- Por que não vieram de helicóptero? Aposto que vocês ia chegá mais rápido! - gritou um imbecil desdentado com um boné virado pra trás, lá de cima de um caminhão de carga. E eu, pau da vida, estirei a língua pra ele. O maior barraco na estrada. 

De repente parou mais adiante um carro branco e dele saiu um homem moreno alto, que se aproximando perguntou:

- E aí amigo, qual é o problema do bicho?

- Sei lá, pô... já tô de saco cheio, não agüento mais. Imagina que o dono deste troço tá doido pra me vender esta p...

- Nãaao, sai fora. Mas me deixa ver aí. Sou mecânico.

- Mec.. câaaanico? Exclamou extasiada a minha tia.

- Foi ele, foi ele! Aleluia Jesus!

O homem olhou pra ela espantado. Ele quem? Perguntou.

- Jesus!! Foi Jesus! Foi ele, moço! Aleluia!

- Pára mãe, o homem aqui é mecânico! Ele vai dar um jeito.

- Éee...? Me... mecaânico, Deus do céu...  E quem, quem  mandou um mecânico aqui justo agora?  Foi ele, foi ele sim! Aleluias! 

- Aaah.. pára, mãe. É coincidência.

Não demorou muito e logo o homem encontrou o motivo do curto. Cortou fio, emendou fio e por fim... Ufa! Estávamos salvos.

- O que era? Perguntou meu primo ao rapaz.

- Bom, é que... a rebimboca não tava bem encaixada na parafuseta, o cabeçote do virabrequim tá enferrujado, tem que sê trocado... Também  tem que trocá as biela,  enfim você tem que dar um trato geral na máquina, porque faz muito tempo que essa geringonça não entra numa oficina...

- Hãam? Sério...? Mas o meu amigo me disse que...

- Ah, disse foi?

- Mas agora pode ir em frente que vai dar pra chegar lá em cima, por enquanto não vai acontecer mais nada não, cara.  Mas não fecha não! Comprar carro velho é rabo. Sai fora.  

- Pôxa amigo, que sorte a minha heim? Você aparecer assim do nada, numa hora dessas...  E agora, quanto lhe devo?

- Ora amigo, só a sua amizade. A gente aqui no mundo pra essas coisas mesmo, pra um segurar a barra do outro.

Um abraço, tapinhas nas costas, o mecânico foi embora, e nós também.

Todos já dentro do carro rindo àtoa, o primo abraçado à noiva e novamente cantando sou um menino, um passarinho... a tia gritando aleluias e o velho na dele, tranquilão com  aquele papelzinho na mão, apenas repetia:

- Quarenta e quatro, oito, onze, nove, trinta e oito, mais um: trinta e nove! Dezenove, dois, um...

- Tio, perguntei: posso saber o que o senhor tanto conta, com esse papelzinho na mão?

- Pode sim. Olha só: quarenta e quatro DKW, oito Opalas,  onze ônibus, nove Sincas, trinta e nove Fuscas, dezenove caminhões, dois Aero Willys e um Jeep. Mas só vindo de lá pra cá, porque dos dois lados não dá pra contar não. Dá muito trabalho e eu já estou cançado.

- Oh Cristo, tem misericórdia! Ele está endemoninhaaado, e é por isso que não quis ir à igreja ontem. Jesus, Jesus! Jesus...

- Pára, mãe, deixa disso! – gritou o meu primo.

Sabe quando a gente tem uma gargalhada presa, quase estourando, mas tem que segurar pra não explodir? Eu já não me aguentava mais,  Foi baita dum teste de resistência. É que eu estava apenas passando as férias na casa dos tios e não poder faltar com o respeito, debochando do fanatismo da minha tia. Quanto à noiva do primo, que a duras penas tentava conquistar a futura sogra, não iria botar tudo a perder justo agora,  já tão perto do  casamento. Olhávamos uma para a outra pelo espelho, loucas pra estourar de rir, mordendo a boca pra não explodir, uma tremenda prova de fogo.

Enfim chegamos ao nosso destino, e deixamos pra fazer os comentários e rir até não poder mais às escondidas, num momento mais  propício. Mas a gente tinha que rir de rolar pelo chão, porque ninguém é de ferro. E até hoje, tanto tempo depois, eu me lembro do barato daquela viagem, subindo a serra de Petrópolis. Com o devido respeito, mas foi uma comédia pra ninguém botar defeito. Não faltou nada pra se escrever uma boa peça.

Júnia - 2011