DOIS ESTRANHOS QUE HABITARAM A MESMA CASA E TIVERAM DE CASAR: A FILOSOFIA GREGA E A FÉ CRISTÃ.  

Werner Leber

O cristianismo não é uma filosofia, mas uma religião - isto é, antes de tudo, uma fé e um dogma. É uma religião que herda do judaísmo a ideia de Messias e a ideia de Salvação. Herda do judaísmo também a perspectiva de que entre Deus e criatura há uma distância que não pode ser vencida por princípios morais, mas tão somente pela salvação de um Deus poderoso, altíssimo, totalmente outro, tão outro que não se confunde com este mundo. Herda do judaísmo ainda a perspectiva radical do pecado, um rompimento entre Deus e humanidade tão profundo que só Deus mesmo pode restaurar o elo partido. Mas é uma religião que bebeu nas águas perigosas e ardilosas da filosofia que surgiu na Grécia. Creio que seja por essa razão que Lutero, o reformador do século XVI, se refere à filosofia como “prostituta”. Lutero queria dizer, se é que entendo alguma coisa aqui, que a filosofia pervertia o entendimento de Pecado e Salvação, isto é, amolecia e enfeitava a radicalidade do pecado, dando a entender que se trata de uma perspectiva somente moral e não de algo radical que só Deus mesmo pode reparar. Chegou a dizer em 1518, no Debate de Heidelberg, que "é preferível ser bem ignorante em Cristo que sábio em Aristóteles". Atenas e Jerusalém nada tem em comum culturalmente, mas, por assim dizer, “tiveram de morar na mesma casa”. Explico-me. A fé cristã teve de construir sua teologia a partir de pressupostos gregos e em um ambiente dominado pela cultura grega, advinda do imperialismo de Alexandre Magno. Cultura essa que espalhou a língua e a filosofia grega helênica (pensemos nos estoicos, por exemplo) pelo Oriente Médio Antigo (Israel, Turquia, Pérsia, Egito, Itália, Síria), região onde o cristianismo incipiente se desenvolveu posteriormente. Heráclito, por exemplo, nasceu em Éfeso, na Jônia, sul da atual Turquia. Paulo, o teólogo do Novo Testamento, escreve uma carta aos cristãos de Éfeso (a carta aos Efésios). O mesmo se dá com a cidade grega de Corinto. Que cristão não sabe que Paulo escreve duas cartas aos cristãos de Corinto? Por que razão os textos originais mais confiáveis do Novo Testamento são justamente os escritos em grego helênico? Qualquer cristão que tenha uma leitura razoável dos textos paulinos do Novo Testamento, sabe o quando Paulo luta com a presença da filosofia grega nos territórios em que a fé cristã se desenvolvia. Por exemplo, a carta ao Gálatas em que Paulo em determinado momento afirma “óh descabeçados Gálatas”! Mas também em Primeira Coríntios, logo no início, quando interroga se Deus não havia tornado louca a sabedoria deste mundo. “Onde está o sábio deste século”, pergunta Paulo? Paulo sabia que a fé cristã não é da mesma ordem da filosofia grega. Mas como falar de Ressurreição, Criação e Salvação em um mundo dominado pela cultura grega, no qual as ideias judaicas salvíficas herdadas pelos cristãos, não fazem qualquer sentido? Platão e Aristóteles não escreveram doutrinas de salvação. Os estoicos, epicuristas e céticos, doutrinas filosóficas gregas que tornaram-se muito influentes pós morte de Aristóteles ocorrida e 322 a. C., não conheciam uma doutrina de Salvação e nem mesmo uma teologia da criação. O Demiurgo do Timeu de Platão não pode ser comparado ao Deus que cria do nada (criatio ex nihilo) em Gênesis. Ou pode? E mesmo que Aristóteles tenha se referido a Hesíodo e Homero como sendo “teólogos”, não me consta que aquelas Teogonias (Epopeias do surgimento do povo grego escrito por esses dois poetas-escritores) sejam da mesma ordem do escrito hebreu quando fala de Deus criador. O resultado desse “casamento” gerou a cultura ocidental. A ciência e o tipo de religiosidade, o tipo de governos que temos, pra bem ou pra mal, têm suas origens e raízes nessa relação entre o que Atenas e Jerusalém estabeleceram. Não podendo se evitar, moraram juntos, mesmo sabendo que eram muito diferentes. Queiramos ou não, todos os habitantes ocidentais tem alguma influência dessa relação.