Era uma casa grande cheia de janelas, casa de esquina de rua, na minha terra natal. Em frente havia uma praça com canteiros cheios de areia de praia bem grossa onde eu gostava de enfiar os pés, balanços e alguns outros divertimentos infantis. Havia também uma igreja com duas torres, e na praça aconteciam festas muito animadas, quermesses com barraquinhas iluminadas onde havia sorteios, prendas, pescarias, tiro ao alvo, fogos e outras diversões que começavam à tarde. Mas em frente à nossa casa passavam os pesadíssimos bondes pintados de amarelo e preto, talvez por isso eram chamados de "perigo amarelo". Para a época, santo Deus, aquela rua era considerada muito perigosa e as crianças eram proibidas de atravessá-la sem estarem acompanhadas por alguém responsável. Eu adoraria viver brincando naquela pracinha, mas foram muito poucas as vezes que me levaram lá e a razão era sempre a mesma; era uma travessia perigosa para crianças. Então eu ficava pendurada junto a uma janela da sala, a puxar conversa com quem passava na calçada ou com quem estivesse parado esperando o bonde, em frente à nossa casa. Só que "seu" Miguel, meu pai, homem muito austero e ranzinza, não gostava desse meu divertimento, alegando que não era de bom tom uma menina se acostumar assim, encostada à janela da rua puxando assunto com estranhos, falando com quem não conhecia. E a tal janela, por ordem dele passou a ficar sempre fechada.
Os meus irmãos ainda eram muito pequenos e eu, com apenas quatro ou cinco anos, ainda não estava na escola, até porque naquele tempo a idade escolar começava por volta dos oito, nove anos. Por isso eu vivia rodeada de adultos e com certeza me sentia muito só. Também vivia rodeada de papéis e lápis coloridos, desenhando. Gostava muito de livros, mas ainda não sabia ler nada, por isso só gostava dos que tinham ilustrações e gravuras, com as quais eu imaginava histórias.
Nunca fui muito dada a brincar com bonecas, que eram muito caras, e tínhamos muito poucos brinquedos. Aí eu passei a me refugiar no fundo do quintal brincando sozinha, próximo a um enorme pé de tomates, nos quais passei a pintar fisionomias, furando com o bico de uma caneta-tinteiro que pegava às escondidas no quarto do meu tio Tacinho. Neles eu desenhava olhos, nariz e boca, principalmente nos tomates verdes, aonde a tinta sobressaía mais. E comecei a brincar e conversar o dia inteiro com aquela roda de "amigas" penduradas nos galhos, entre as folhas do tomateiro. Já acordava pensando nelas e assim que acabava o café, até mesmo na chuva corria para o quintal para encontrá-las. Só que elas eram muito chatas, porque logo desapareciam do pé de tomates e eu não as encontrava mais. Só vim compreender qual era a razão daqueles desaparecimentos tão repentinos, quando ouvi os comentários de minha mãe com uma empregada da casa, dizendo:
Mas que maluquice é essa, essa menina anda rabiscando os tomates! Chama ela aí.
E lá fui eu correndo, com o coração aos pulos.
Tomara ver isso novamente! - falou minha mãe. Os tomates furados, desenhados com cara de gente, aonde já se viu isso? E com tinta de escrever! Essa tinta deve até fazer mal...
E a festa no tomateiro acabou. Então comecei a desenhar no muro do quintal com pedacinhos de carvão, outras amigas, dessa vez com corpo inteiro, com quem eu falava e brincava o dia todo. Elas viviam na minha imaginação como se fossem reais. Tinham nomes muito estranhos. Entre outras havia Maroca Grande (não me lembro se havia a pequena); Menina Amarela, Artilim e "seu" Johnson. "Seu" Johnson, no meu delírio infantil, tinha até uma sapataria naquele quintal.
Contava minha mãe, e eu ainda me recordo vagamente do episódio, que certa manhã entrou na cozinha e eu estava de pé sobre uma cadeira junto do fogão, segurando uma chaleira, e do bico dessa chaleira escorria água fervendo caindo sobre o pano-de-café colocado na boca de num grande bule com pó de café. O bule já estava cheio e escorria café pelo fogão abaixo, até no chão. Ao ver minha mãe entrar na cozinha, assustada coloquei a chaleira sobre fogão, pulei pra fora da cadeira e gritei:
- Fui eu não, fui eu não! Artilim é que estava passando o café. E saí porta a fora correndo em direção ao meu mundo, o quintal.
Dizia minha mãe que a empregada começou a orienta-la no sentido de me levar a um centro espírita, porque certamente eu estava mesmo vendo gente de outro mundo, e isso era coisa séria. E até fazia pelo sinal da cruz, quando em chegava perto dela.
Dona Enedina, uma vizinha, também achava que ela deveria me levar a um médico, pois eu poderia estar com algum problema de cabeça, coisa que também pode dar em crianças, e dessas coisas precisa se cuidar cedo.
Mas é claro que não se tratava de nada disso. Sem chance de poder viver a plenitude da minha infância, eu apenas parti para uma fuga, e criei o meu mundinho particular, já que em meu mundo real não existia o que eu desejava, e inventei a minha própria felicidade,. Só que ninguém me entendia e até duvidavam da minha sanidade mental, que até hoje continua cada vez melhor. E sabem de uma coisa? Juro que sinto saudades dos meus tomates com cara de gente, daquelas amigas de nomes esquisitos desenhadas na parede e da sapataria do "seu" Johnson, gente que me fazia realmente feliz. Coisas que só eu via, naquele mundo imaginário do meu fundo de quintal. E como era bom!

Junia - 20/12/2006