287 – UMA LIÇÃO DE VIDA

 

 

- O motivo? Tenho vários motivos para  estar neste lugar, doutor! – respondi bruscamente.

 

Estávamos num quarto confortável daquele hotelzinho perdido  no meio de um amplo bosque de pinheiros.

Nem era um hotel, de verdade; era uma clínica disfarçada.

Diárias absurdamente altas, enfermeiras para atendimento pessoal, terapias variadas, liberdade, descanso e esporte, para quem quisesse.

Eu não estava de férias; estava seriamente doente, esgotado, nervoso.

O médico que me entrevistava aborrecia-me com perguntas impertinentes.

Eu estava impaciente, a ponto de explodir.

 

- Mas eu estou aqui para escutá-lo, senhor Antunes – respondeu calmamente o médico -  Se não souber o que se passa em sua cabeça, não poderei ajuda-lo.

 

 - Então escute – rebati eu -  Sou Vice Presidente da Caribbean Papers Co., uma Companhia sólida, à qual dediquei quinze anos de vida. .   

   Dentro dela construí  minha reputação e acumulei meu patrimônio.

   Agora tenho cinquenta anos, estou sob fogo cerrado: garotos com metade de minha idade atacam a minha fortaleza e querem seu lugar ao sol.

   Como não cabemos todos na mesma praia,  alguém deve desistir.

   Sinto chegar o dia em que terei que baixar minhas armas.    

   Sob esta pressão, o  Conselho resolveu afastar-me;

   -  Você precisa descansar – disseram – e se não ficar bom, adeus.

   Este  é apenas o primeiro motivo da minha depressão.

 

- O que o senhor descreveu é só um ponto de vista. Todos temos que repassar o bastão de comando a outros, mais cedo ou mais tarde – rebateu o doutor.

 

- O segundo é familiar – continuei eu;  - errei ao me dedicar inteiramente à firma, Esqueci que meus filhos e minha esposa precisavam de mim.

   Deixei de dar-lhes minha  presença, meu amor, meu carinho.

   Fiquei surpreso quando minha esposa pediu o divórcio.    Foi inesperado. Mas deveria tê-lo previsto.  

 

-  Este também é um motivo e tanto, senhor Antunes – o médico parecia ter ficado mais conciliador e compreensivo, ao conhecer os detalhes.

 

-  E agora, o terceiro motivo: na crise do ano passado perdi, da noite para o dia, três quartos de minha fortuna.

   Não estou pobre, mas foi um golpe duro, duríssimo...

   Por isso agora pretendo descansar. Quero ficar sozinho, pensando, estudando minhas alternativas. Não quero ver ninguém, não quero falar com ninguém.

   Vou ficar trancado em meu quarto.

 

- Bom, será como o senhor quiser – respondeu o médico, não sem uma certa hesitação. -  Se precisar, estarei por aqui; é só chamar. Até logo, senhor Antunes; desejo-lhe uma boa permanência.

 

 

Já passou uma semana, daquela conversa e continuo patinando no gelo fino de minha situação. Não cheguei a lugar nenhum, e as coisas me parecem piores, a cada dia que passa. 

 

No refeitório conheci  Elvira, uma garota frágil mas alegre, que leva a vida na risada;  ela faz caras e bocas, imita os garçons,  diverte todo o mundo.  

   Não concordo com sua maneira esfuziante de ser. Creio que deveria ter um pouco mais de recato e de controle. Mas no conjunto, não me desagrada. É engraçada e chega a me arrancar um sorriso, quando  imita o gerente.

 

Passou mais uma semana. Falei com a enfermeira que cuida da Elvira.

   Ela me contou que Elvira sofre de uma doença grave. Passa por terapia três vezes por semana e no fim de cada aplicação,  fica um trapo. Mas esconde isso de todo o mundo.

 

Tenho falado diariamente com a Elvira.  É realmente irrefreável. Envolve todos nas suas brincadeiras e se complica não raro, com quem não a conhece. Mas é engraçada e simpática. Sorte dela que é jovem e despreocupada; como gostaria de ser como ela!

 

Hoje Elvira veio sentar-se à minha mesa e dividimos as frutas e o doce. Sem preâmbulos, anunciou que quer se casar comigo;

- Você é louca,menina! Eu tenho a idade para ser seu pai; meus filhos são mais velhos que você!

- Mas não faço questão de idade, senhor Antunes! É só que você – posso trata-lo de você, não? –  anda sempre com uma cara tão feia! Um casamento ficaria bem, acho que melhoraria muito seu gênio! E de resto, não seria um casamento demorado, não. Logo vou embora, sabe? E quero alegrar as pessoas, enquanto estiver por aqui. 

- Vá lá, Elvira! Você é saudável, viva, esperta, inteligente; ainda vai estar aqui muito depois que eu me for!

- Ai é que você se engana! Estou de viagem marcada,  com a mala pronta e a passagem na mão.

- Não fale assim, não diga uma coisa dessas!

- Digo, sim, é só você que não acredita! Sabe, não tenho ninguém no mundo; minha doença não tem cura, tudo é paliativo, tentativas caras e dolorosas de levar-me  um pouco mais adiante. Mas sei que não tem esperanças...

 

Disse tudo isso de um fôlego só, como se estivesse liberando-se de um peso incômodo. Seu rosto sempre tão aberto e risonho, estava tenso, duro. Mas foi apenas um minuto. Logo serenou, e ela voltou a ser o molequinho simpático que alegrava todo o mundo.

 

- Se não quer casar comigo, paciência; tenho certeza que o Edgar, o chefe dos garçons, vai me aceitar. Vou pedi-lo em casamento  agora mesmo.

- Sabe, Antunes, você  não me acredita; mas todos os seus problemas não têm nada de grave. Estão todos dentro da ordem natural das coisas. Não vale a pena entristecer-se por coisas pequenas. Só quando murcha uma flor, quando o vento arranca uma árvore, quando a terra se transforma em areia e nada mais vinga nela, devemos ficar tristes. 

  O resto é normal, acredite; não vale a pena chorar por ele....

 

Uma semana depois, ela não apareceu para o alegre almoço diário; ficamos sem suas brincadeiras, e tudo estava mais escuro.

Mas logo a enfermeira me trouxe um livrinho, um diário simples, sem pretensões,  escrito com letra miudinha, com a sua caligrafia de menina.

Começava assim:

 Quero ser leve, carinhosa e passageira como a brisa.

Beijar o rosto dos que encontrar, porque são meus irmãos

Ajudar quem precisa, sem nada pedir em troca

Alegrar-me com sua felicidade e confortá-los em suas tristezas.

Fazer isso todo dia do ano, como se fosse meu ultimo dia

Lembrar que não sou mais que uma nuvenzinha perdida no céu

E que tenho um momento certo para terminar.

Quando ele chegar, serei chuva abençoada

e assim continuarei a viver e a ser útil.

Agora,  esqueça-se de mim

Ria, com seu riso engraçado,

E seja feliz, pois isso me faz feliz....

 

Todos os meus problemas desapareceram.

Esqueci deles; eles devem estar escondidos em alguma parte,  mas a pequena Elvira  deve estar tomando conta deles.

Nunca mais serei infeliz.