Uma fantástica caçada de onça

Por Henrique Araújo | 05/06/2009 | Literatura

UMA FANTÁSTICA CAÇADA DE ONÇA

 

        Dizem que há dias para tudo neste mundo. Há dias de sol e dias de chuva, dias de tristeza, dias de alegria, dias de caçador e dias da caça. Nunca acreditei muito nestas coisas até que chegou o meu dia.

          Sempre morei na cidade. Há mais diversões, mais movimento e principalmente mais mulheres. Pois bem, de tanto me enfiarem na cabeça que no sertão a vida é mais saudável, mais amena, menos problemática, acabei comprando uma fazenda. Não vão supor os senhores que sou um camarada rico, cheio de cultura e o diabo a quatro. Como na vida tem a primeira vez para tudo, segui o mandamento e passei a dar uma de fazendeiro. Para isto eu vendi tudo o que tinha na cidade e fui de mala e cuia para o sertão.

          Foi bom, confesso sinceramente. Eu estava mesmo precisando de um descanso do sufoco, do corre-corre da cidade. Eu vivia lá com a família e os criados. Isto foi durante dois meses, sem problemas. Havia muitas galinhas, gado, porcos e grande área plantada. Resolvi de uma vez por todas morar na fazenda, só os filhos que fossem estudar permaneceriam na cidade.

          Ao cabo de dois meses começou a sumir porcos dos chiqueiros. Havia mais de mil porcos no chiqueirão. Era uma verdadeira porcada. A cerca era feita de paus empilhados, ficando bem juntinhos um do outro. Porco não passava mesmo. Havia até uma mata para os porcos, tão grande era o chiqueiro.

          Fizemos uma investigação e descobrimos que aquilo era arte de onça. Onça quando cai em chiqueiro de porco gordo, não deixa nenhum mais, mesmo que tenham muitos. Mário, meu capataz e eu achamos na mata o trilheiro das onças, bem ao lado do final da cerca.

          - Já virou estrada de onça, patrão. Veja só como está tudo amassado - disse ele.

          - Temos que dar um jeito nisso, Mário, do contrário vou levar um prejuízo enorme. Quem por aqui sabe caçar onça? Perguntei.

          - Ora essa, respondeu, eu mesmo posso fazer o serviço.

          - Olhe lá, Mário, já vi muito caçador ser engolido por onça. Vai dar uma de valente agora?

          - É verdade, patrão, pode perguntar a Doninha, minha esposa. Basta apenas uma pessoa para me ajudar.

          Resolvi não teimar mais com o criado que morava no sertão há muito tempo.

          Voltamos para casa para ver o que poderíamos fazer. Quis saber dele como faria para terminar com as onças.

          - Bem, disse ele, o que temos de fazer, é armar um jirau por cima dos trilheiros delas. Quando elas vierem, durante a noite atrás da porcada, é só atirar e pronto. O que eu preciso mesmo é de alguém que focalize a lanterna na onça para eu atirar, pois com a escuridão da noite e dentro da mata, não se vê nada.

          Bom plano o do capataz. O homem entendia mesmo de onça. E eu que já estava meio cabreiro, comecei a sentir firmeza.

          - Aquele lugar que vimos no final da cerca é ótimo. Primeiro que o trilheiro passa ali perto, segundo que a cerca é forte.

 

          Resolvi seguir o conselho dele e no outro dia fui procurar alguém para ajudá-lo. Mas quem disse que algum outro criado queria saber de caçar onça por aquelas bandas? Andei de barraco em barraco e não encontrei um único filho de Deus que quisesse ajudar o homem. Nem mesmo pagando.

          - Tenho mulheres e filhos, patrão - diziam uns.

          - Sou muito jovem ainda, comentavam outros.

          - Caçar onça, eu? Já ‘tou mudando para a cidade, patrão.

          Chamei Mário e narrei-lhe os problemas. O jeito era perder alguns porcos até arrumar alguém - sugeri.

          - Pode ser o senhor mesmo, patrão. É coisa simples...

          - Caçar onça é coisa simples, Mário?

          - O que o senhor tem de fazer é apenas segurar a lanterna. O jirau será no topo da árvore. Será bem resistente. Levaremos até cobertores, pois lá em cima vai dar até para dormir. As onças só chegam de madrugada.

          O homem falou tanto que acabei concordando, porém com um certo receio. Sertanejo velho tem medo de onça, imagine eu, que sempre morei na cidade, de repente bancar uma de caçador de onça.

          No outro dia ele foi com mais dois criados e passaram o dia inteiro fazendo o tal jirau. No finalzinho da tarde levou-me para fazer uma vistoria. Olhei tudo, detalhe por detalhe. Não é que o homem entendia mesmo de onça? O jirau era tão grande que parecia um quarto no topo da árvore. Nada havia a temer.

          Voltamos para casa, tomamos um banho, jantamos e retornamos ao local. Trouxemos lanternas, espingardas, alguma coisa para comer, etc. Subimos no jirau, demos uma olhada geral, vimos a lua quase desaparecida entre as árvores. Tudo silêncio! Tiramos uma soneca.

          Quando eu já estava dando os primeiros roncos, Mário toca em meu braço.

          - Patrão, patrão.

          - Que foi, Mário, as onças já apareceram?

          - Quantas horas são?

          Olhei para o ponteiro luminoso do meu relógio de ouro, presente de minha velha avó e disse:

          - Duas horas.

          - Não vamos mais dormir. É mais ou menos neste horário que elas aparecem.

          Tudo estava ainda muito calmo. Alguns curiangos cantavam pela floresta.

          Lá pelas 3 da manhã, começaram os corre-corres dos porcos. Primeiro de 3 e 4, depois bandos maiores e assim a coisa foi crescendo.

          - É assim mesmo, mas são só os porcos ainda. Quando as pintadas aparecem, elas batem as orelhas.

          - Está bem, estou ouvindo.

          A porcada está que passa. Daí a pouco começou a pancadaria. E passa porco e passa porco e era porco que não acabava mais.

          - Alumia ali, patrão.

          Peguei a lanterna, que desgraçadamente escorregou  de  minha mão  e  foi  ao  chão. Pronto! E porco tá que passa e por arte do diabo deu uma ventania desgraçada. Escureceu muito e porco tá passando e pancadas. Danou-se. Já não era só porco, era porco e onça e onça e porco e vendaval. Peguei o revólver, não sei pra quê. Os paus do jirau começaram a cair e lá vem porco e vendaval e lá vem onça e... lá fomos nós. Caímos no meio da porcada. Tentei me levantar depressa, mas lá vinha porco e vinha onça e vendaval. Eu estava sendo pisoteado, derrubado e... o desgraçado do Mário? Nessa hora não me lembrei de mais nada, era só levantar e cair, nem sei mais do que tinha medo se dos porcos ou das onças. Senti uma quentura quente escorrendo pernas abaixo. Os senhores devem imaginar o que é...

          Depois de umas duas horas nesse inferno, a coisa foi-se acalmando. O dia estava amanhecendo. Fui-me levantando aos poucos e segurando nos galhos, mais morto que vivo. A roupa estava um verdadeiro trapo, mais suja que pano de banheiro de hospício. Os sapatos desapareceram, não sei quem os levou, se as onças ou os porcos. O relógio da vovozinha sumiu do mapa. Saí dali cambaleando, rodando todo tonto. Nem sabia porque estava ainda vivo. Até me esqueci das onças e dos porcos, ou eles me esqueceram. Cheguei em casa lá pelas 8 horas da manhã seguinte. Foi um choque geral no povaréu. O Mário só foi encontrando depois de três dias a 20kms dali.

          Vendi o gado, a porcada, a fazenda e voltei para a cidade. Nunca mais quis saber de fazenda, nem de porcos, nem de onça, muito menos do Mário.

 

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