UMA CARTA INÉDITA DE TAKAOKA

Luiz Rafael Vieira Souto¹

Henrique Guilherme Guimarães Viana²

 

No acervo da biblioteca do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (MNBA) se encontra uma coleção de "pastas" contendo recortes de jornais e revistas, classificados segundo artistas aos quais se faz referência. Algumas vezes pode-se encontrar nestas pastas outros documentos interessantes, originais, como essa carta e muitas vezes, inéditos para o público e doados por familiares de artistas. É um rico acervo para pesquisadores, estudiosos em artes, desenho, arquitetura, pintura e escultura, entre outros assuntos. Na pasta de um pintor completamente esquecido hoje em dia, encontramos uma carta manuscrita assinada "Francisco Takaoka", que pensamos ser  Yoshiya Takaoka, artista japonês que participou do Núcleo Bernardelli. Achamos que sua publicação merecerá a atenção dos interessados no meio artístico do Rio de Janeiro das décadas de 30 e 40.

Yoshiya Takaoka nasceu no Japão em 1909, com apenas quinze anos chegou ao Brasil rumando diretamente do Porto de Santos para as plantações de café no interior do estado de São Paulo. Tivera, entretanto, a sorte de ter estudado com um mestre pintor de seu país, que ensinava no ensino secundário por motivos econômicos. Assim, deixou logo a lavoura de café, indo para São Paulo, onde estudou na Escola Profissional Masculina. Mais seguro de si, foi para o Rio de Janeiro em 1931, onde viveu pobremente mas onde fez um grande número de amizades. Sua ligação com Bruno Lechovski (1889 - Polônia / 1941 - Rio de Janeiro) foi fundamental para ele, e sobre o pintor polonês a carta faz algumas referências. Em 1944 Takaoka retornou para São Paulo, onde fundou o Grupo dos Quinze. Faleceu em 1978 amplamente consagrado como pintor.

Segundo Frederico de Morais no seu ensaio sobre o Núcleo Bernardelli, Takaoka foi o "menos japonês dos pintores japoneses no Brasil" e "manteve-se sempre fiel a realidade figurativa". A carta a seguir transcrita é endereçada a um jovem pintor da cidade de Macaé, Estado do Rio, que, no Catálogo do Salão Nacional de Belas Artes em 1940 se intitulou "discípulo de Takaoka". A carta foi transcrita sem nenhuma correção de grafia e chama atenção pelo prenome usado na assinatura "Francisco". Qual a razão disso? Com certeza alguma dificuldade de ser compreendido numa época em que o Japão, os costumes e nomes japoneses ainda eram desconhecidos no Brasil.

Rio, 6 de Outubro de 1937

Caro amigo Hindemburgo

Macaé

Recebí sua cartinha que lhe agradeço. E peço perdão que não lhe escrevi a tempo.

Doenças, dificuldades financeiras, os trabalhos, inquietação espiritual, esquecimentos e preguiças, todos issos me impediram-de lhe escrever.

Desque que cheguei aqui, tenho luctado e soffrido tanto no material como no espiritual.

Ultimamente estou bem melhor graças a bons amigos e colegas.

Mandei para o Salão duas aquarelas que pintei recentemente.

Mas Infelizmente esta não foram premiadas por causa da política entre pintores.

E tenho absoluta certeza de que as minhas são as melhores aquarelas apresentadas no Salão e posso provar com base fixo e apontar essas fraqueza dos outros trabalhos.

Não pense que sou pretencioso, sou apenas um estudante principiante de arte, mas adiante de muitos que  se julgam que são artistas e com todas medalhas; sou alguma cousa mais.

Não sou unica victima da politicagem. O Pancetti soffreu com o mesmo golpe ainda maior que meu (sobre o premio de viagem).

O Bruno, previno estas, nem mandou os trabalhos e mais de trinta pintores de nomes não concorreram no Salão deste anno.

Quando você vir aqui, tenho mil cousas a contar.

Todavia, com ou sem premio, estudo, procuro e continuo com sinceridade perante a Natureza.

A atitude de um artista quanto mais sincero for menos entendido pelos colegas mediocres e massas.

Não posso pintar mais para esta geração mais sim para a futura.

Hindemburgo! sejamos sinceros diante de toda natureza, embora a sociedade nos traisse esta nunca nos trae.

O Salão inaugurou-se no dia 17 de Setembro e fechará no dia 16 do corrente mez.

Para o dia 20, estou preparando uma exposição.

O Bruno abriu sua galeria particular em Copacabana.

Estou cavando de um amigo aquele que Dr. José Américo sabe aonde está. Caso consigo este, creio que vou fazer uma exposição em São Paulo também.

Lembranças à familia toda.

ao Dr. Moacyr e de mais aos amigos

Abraços do seu amigo

Francisco Takaoka

P.S. Dê um beijinho à Leatrice no meu lugar.

A carta está endereçada a um pintor de Macaé, Hindemburgo Olive, que morreu muito jovem e praticamente não saiu de sua cidade.

A Semana de Arte Moderna, A Ascensão do Estado Novo e a I e II Grande Guerra, marcaram entre outros acontecimentos, a primeira metade do século XX. É nesse período de transição política, histórica e plástica que se insere e conceitua a vida e a obra de um jovem artista fluminense e mestre do seu tempo: HINDEMBURGO OLIVE DE ARAUJO CARNEIRO DA SILVA (H. Olive).

Hindemburgo Olive nasceu a 28 de dezembro de 1920, no Solar da Fazenda Monte Eliseo, em Macaé, Estado do Rio de Janeiro. A tendência para a criação artística, o gosto  pelo belo e o traço, são marcantes no jovem artista quando ainda criança.Recebeu os primeiros ensinamentos com as professoras Calmerinda Mattos, Irene Meirelles e Zilda Sandemberg e, mais tarde, matriculou-se no antigo curso Ginasial onde permaneceu até os dezesseis anos, quando se alistou como voluntário para o Serviço Militar. Nesta época, sem nunca ter convivido com nenhum artista e fugindo aos estudos humanísticos, conhece o pintor Takaoka que foi para Macaé e com quem, então, consegue seus desabafos de pintor. O tempo é curto para o artista e sua produção artística é intensa. Realiza trabalhos a bico-de-pena, carvão, aquerela, lápis e óleo, principalmente seus auto-retratos. Mergulha de forma profunda na busca pelo belo e do verdadeiro e, seu compromisso para com a arte é cada vez mais sério, conforme afirmação de Takaoka em correspondência. A partir de 1937, sentindo-se muito só com o regresso do amigo japonês para o Rio de Janeiro, confina-se no Solar Para sempre.

Os prêmios acumulam-se em pouco tempo, a crítica o consagra e os poucos amigos, professores e artistas como Pancetti, Portinari, Moacyr Santos e seu grande amigo e incentivador, Takaoka, o reconhecem como gênio. Tudo isso envaidece o artista, nem mesmo a Medalha de Bronze da Escola Nacional de Belas Artes, arrebatada no XLVI Salão Nacional de Belas Artes, em 1940.

A respeito de sua obra, assim se pronuncia o crítico de arte Quirino Campofiorito, por ocasião do I Salão Macaense de Arte Moderna: "Hindemburgo, que nome estranho de pintor e de pintor brasileiro, mas que grande pintor já era quando o destino o levou tão jovem" ( O Jornal, RJ.12/VIII/1958).

"Que se estude este jovem pintor". "Hindemburgo é o nome do pintor de talento e brasileiro". O jovem de Macaé sucumbiu cedo a grande moléstia. Mas já havia confirmado a sua linguagem de grande pintor". " O variado conjunto de obras de Hindemburgo, apresentado no I Salão Macaense de Arte Moderna era deveras impressionante. Só a série de auto-retratos bastava para dizer do artista que hoje teríamos se ele vivo fosse". "O japonês Takaoka e o Pancetti eram amigos inseparáveis e os três disputavam entre si talentos e dedicação à pintura". O próprio Portinari seu amigo de artes, quando esteve em Macaé para visitá-lo e tentar dissuadí-lo a receber a Medalha de Bronze da Escola Nacional de Belas Artes, "disse ter conhecido um gênio".

¹.Museólogo. Chefe da Seção de Escultura do MNBA

². Licenciado em Letras. Técnico da Biblioteca "Manuel Araújo de Porto Alegre do MNBA.