Uma boa companhia

Creio que todos nós já lemos ou ouvimos a narrativa bíblica sobre a criação da mulher, no livro do Gênesis (2,18-24). Como todo mito, este também é repleto de simbolismo. E como em toda narrativa mítica pode ser que não nos tenhamos dado conta da importância de alguns dos detalhes nesta bela construção da literatura bíblica.

Nessa narrativa o homem, criado pelo Senhor, está só. E Javé considera que isso não é bom para o homem. Se a solidão não é boa deve ser trocada por uma companhia. Entretanto, nada do que havia sido criado foi adequado e pode ser uma companhia ou auxiliar para o homem. A falta dessa auxiliar leva a criação da mulher. E depois dela pronta o homem se alegra por encontrar alguém igual a ele. E assim indivíduos distintos ambos se unem para se tornarem “uma só carne”. Eles se completam e se complementam!

Essa parte da história todos conhecemos, principalmente porque nos detemos no processo cirúrgico: tirar a costela, fazer a cicatrização com carne e do osso fazer a mulher. Mas o que realmente chama a atenção não é a cirurgia em si, pois sabemos que qualquer cirurgião é capaz de fazer algo semelhante. Basta ter os equipamentos e o anestésico. E, pelo jeito Javé tinha tudo isso, pois a cirurgia foi um sucesso.

Excelente cirurgião Deus fez exatamente isso: anestesiou o paciente e o operou. Qual a finalidade de uma cirurgia? Curar um mal. Qual a finalidade desta cirurgia? Curar o mal que entristecia o homem do paraíso: A cirurgia tinha a finalidade de curar o mal da solidão.

Mas então o que chama a atenção nesse pequeno trecho do mito bíblico da criação? Como vimos, não é a cirurgia com a intenção de curar o mal da solidão, mas o fato de Deus ter anestesiado o homem, para fazer a cirurgia, criado-lhe uma companheira: a mulher. Essa situação gera uma indagação: por que Deus faz o homem dormir, para lhe curar a solidão? Havia necessidade de adormecer o homem? Esse parece ser o principal ponto desta narrativa.

Para o simbolismo da costela existem inúmeras explicações. Uma delas é a afirmação de que a costela é lateral, indicando que a companheira é para caminhar junto e não na frente ou atrás: A mulher foi criada para caminhar junto. Mas por que fazer o homem dormir? Por que não fez a mulher do mesmo barro, de onde saiu o homem e toda a criação?

Se quisermos uma resposta em quatro palavras podemos dizer: Para manter o mistério!

Mas se quisermos um comentário a mais podemos dizer que esse mistério tem uma finalidade. O sono, ou a anestesia, se destina a preservar o mistério. O homem dormindo indica que o importante é a companhia e não sua origem. A tristeza era expressão da solidão. Então a cura vem na forma de uma companheira. A companheira, casualmente é feita da costela. Poderia ter sido do barro ou qualquer outra coisa.

Deve-se notar que o homem não pergunta de onde ela veio. Ele apenas admira e a recebe como a criatura que lhe completa. O homem solitário não indaga, nem questiona ao Senhor. Não quer saber de onde nem como ela veio. Apenas se alegra, pois está curado da solidão. O homem, agora não mais solitário, não quer saber, não levanta a questão, não está interessado na origem; com tanta emoção não se deu conta de que acabou de acordar de um processo cirúrgico. Apenas sabe que tem uma companheira. Mesmo não sabendo sua origem o homem a admira e a reconhece como a companheira ideal. É com ela que vai comer o pão. E os companheiros tornam-se uma só carne.

Importa, nessa companheira, que ela cura a solidão e traz alegria. Esse tom de mistério é que permite dizer que a criação é algo bom. Já que tudo era bom, e não era bom que o homem estivesse só, Deus lhe deu uma companheira. A soneca anestésica foi aplicada não para evitar a dor, mas para manter o mistério. A origem misteriosa é que arranca o grito de que “esta sim!”. Ao acordar o homem não sabia a origem, mas aprecia a presença.

Importa, portanto, a companhia e não a sua origem. Não importa de onde veio, mas o homem, agora feliz pela presença do seu presente, sabe que recebeu um dom de Deus. Não importa de onde saiu. Importa que ela cura a solidão e essa cura é o mistério do dom de Deus.

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura – RO