UMA ANÁLISE SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE E O DIREITO À MORADIA À LUZ DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE: A usucapião rural e os seus reflexos relativos a princípios constitucionais[1]

 

Carlos Eduardo Silva Rodrigues²

Joaquim Henrique Cardoso Santos²

Viviane Brito³

 

Sumário: 1 Introdução; 2 As diferenças e conceitos atinentes à posse e à propriedade; 3 A usucapião rural em uma perspectiva explicativa; 4 Reflexão acerca dos impactos da usucapião rural à luz da função social da propriedade sob a óptica crítica; 5 Discussão do tema; 6 Conclusão; Referências.

 

RESUMO

 

O trabalho tem como finalidade investigar, sob um ponto de vista crítico, as diferenças e conceitos atinentes à posse e à propriedade, bem como refletir acerca dos impactos da usucapião rural à luz da função social da propriedade. O paper aborda dois aspectos importantes, pois o prezado direito é tanto real quanto constitucional. O aspecto constitucional está relacionado ao fato do direito à propriedade ser considerado um direito fundamental garantido pela Constituição Brasileira de 1988. Só que nem sempre esse direito é garantido de forma fácil e tranquila, e é nesse momento que entra a usucapião rural, que visa garantir a posse da propriedade rural para aqueles que dela necessitam. Para o alcance do objetivo geral proposto, o artigo identifica a diferença entre os dois institutos supramencionados, disserta acerca da usucapião rural com conhecimentos doutrinários e jurisprudenciais, assim como promove, sob a óptica crítica, a reflexão acerca dos impactos da usucapião rural à luz de princípios constitucionais.

 

Palavras-chave: Propriedade. Posse. Usucapião. Rural. Função Social.

 

1 INTRODUÇÃO

 

Em primeiro lugar é importante destacar a importância da pesquisa em questão para a sociedade. Na sociedade brasileira é muito recorrente o direito à propriedade, que está diretamente relacionado com a função social da propriedade, não ser respeitado por causa da desigualdade social que ainda é muito grande no Brasil, fato este que gera muito debate na esfera social. E aliado a esta discussão debate-se também em relação a usucapião rural, onde o trabalhador agrário consegue uma pequena porção de terra para morar e tirar seu sustento e de sua família.

Deste modo, a pesquisa contribuirá para o estudo acadêmico e conhecimento social acerca do que a usucapião rural, como ela ocorre e as consequências que ela traz, tendo como parâmetro a função social da propriedade que está elencado na Constituição Federal do Brasil, pois esta garante o direito de propriedade para todos os cidadãos, porém na prática isso não é fácil de se conseguir. Então, a prática da usucapião, prevista no Código Civil, entra a fim de garantir que este direito seja assegurado para aqueles que não possuem um lugar para morar ou produzir seu sustento.

Por isto deu-se a escolha desse tema, à fim de abordarmos esse contexto e explicar como ele ocorre e seus impactos para a sociedade, o que também nos possibilitará um enriquecimento intelectual acerca do Direito Civil brasileiro.

Sob a égide da Carta Magna de 1988 (CF/88), a função social da propriedade é apresentada como uma garantia fundamental nos termos do artigo 5º, inciso XIII (BRASIL, 1988) e deve ser efetivada pela figura estatal ao viabilizar o direito à moradia, que corrobora com o mínimo existencial e dignidade da pessoa humana. Logo, há um dever atribuído ao Estado de atuar no sentido de assegurar a todos os brasileiros o direito de propriedade, como reitera o inciso XXII do artigo 5º da CF/88 (BRASIL, 1988).

Dentro do Direito Civil, os conceitos de posse e de propriedade são debatidos de forma reiterada, sendo que ao longo da doutrina vários autores diferenciam e conceituam tais vocábulos, que guardam um vínculo de alta relevância entre si. Aliada à tal problemática, dentro dos Direitos Reais, a usucapião pode ser muito bem relacionada ao embate aqui proposto quando o Estado falha na promoção de direitos fundamentais, fazendo com que nem todos os indivíduos, de fato, tenham o acesso através de vias consideradas normais a obtenção de tais moradias.

A usucapião é um modo de aquisição de propriedade ou de um direito real pelo decurso do tempo, este previsto na legislação e posteriormente trabalhado no presente artigo. No que concerne a sua classificação, a usucapião pode ser de caráter urbano ou rural, a depender da localização da propriedade em questão. Desse modo, a usucapião rural será trabalhada como tema ao levar em consideração todo o quadro fundiário atual em que o país se encontra, no qual vigora um contexto social de baixo poder aquisitivo atribuído a pessoas que utilizam tal prática para aquisição do direito à moradia longe das zonas urbanas. Tomando por base a relação supramencionada, quais são os impactos da usucapião rural à luz da função social da propriedade?

Para tanto, partiu-se do seguinte objetivo geral: investigar, sob um ponto de vista crítico, as diferenças e conceitos atinentes à posse e à propriedade, bem como refletir acerca dos impactos da usucapião rural à luz da função social da propriedade. A fim de alcançá-lo, foram desenvolvidos os objetivos específicos mencionados a seguir: identificar as diferenças e conceitos atinentes à posse e à propriedade; descrever acerca da usucapião rural em uma perspectiva explicativa; promover, sob a óptica crítica, a reflexão acerca dos impactos da usucapião rural à luz da função social da propriedade.

Metodologicamente, esta pesquisa,

 

2 AS DIFERENÇAS E CONCEITOS ATINENTES À POSSE E À PROPRIEDADE

 

A priori, a posse e a propriedade devem ser devidamente conceituadas e analisadas em seus pormenores no estudo da usucapião rural, pois esta é uma modalidade de aquisição de propriedade. Logo, não há como problematizar a figura da usucapião rural sem antes realizar a introdução ao estudo da posse e propriedade, que exercem relevância não só para o Direito Civil e ordenamento jurídico, como também para a sociedade em geral, que é diretamente influenciada por relações advindas de tais figuras.

Nota-se que há diferenças quanto à posse e a à propriedade, não havendo, pois, a atribuição das duas a uma só coisa. No cotidiano, muitas pessoas confundem e tratam da posse como sendo a propriedade, ou vice-versa, até mesmo podendo considerar as palavras como sinônimos.

Conforme elucida Silvio Rodrigues (2009, p. 16), a propriedade se distingue da posse, “porque enquanto a propriedade é a relação entre a pessoa e a coisa”, a “posse consiste em uma relação de pessoa e coisa”. Complementa, ainda, que a primeira “assenta na vontade objetiva da lei, implicando um poder jurídico e criando uma relação de direito”, enquanto a segunda é “fundada na vontade do possuidor” (RODRIGUES, 2009, p. 16).

Ou seja, a propriedade é respaldada na vontade objetiva da lei, fazendo com que quem a exerça tenha o direito subjetivo sobre aquela, principalmente no tocante à composição das lides que envolvam controvérsias sobre um direito a propriedade.

Silvio Rodrigues exemplifica (2009, p. 15):

 

Alguém, adquirindo prédio de outrem, que não seu dono, nele se instala. Ao depois é acossado pelo verdadeiro proprietário, que pretende privá-lo violentamente da posse que vem desfrutando. Como a lei não permite a ninguém fazer justiça com as próprias mãos, aquela situação de fato, a despeito de não corresponder a nenhum direito, é mantida. Com efeito, ao adquirente é assegurada a sua posse, até que o verdadeiro proprietário, por meio das vias judiciais, demonstre o seu melhor direito.

 

Deste modo, é como se quem exercesse a propriedade (proprietário) tivesse uma certa segurança jurídica com o devido registro daquela propriedade. Portanto, em eventuais invasões, o proprietário pode recorrer ao Judiciário, havendo o reestabelecimento da situação anterior à invasão.

Entretanto, como Silvio Rodrigues (2009, p. 15) frisa ao discorrer sobre o conceito de posse, “o ordenamento jurídico vai manter a situação de fato, repelindo a violência, quer essa situação de fato se estribe quer não se estribe em direito anterior. E isso no intuito de assegurar a harmonia e paz social”. Destarte, o Estado e o Judiciário atuam no sentido de assegurar o contrato social, no qual as pessoas cedem em parte de sua liberdade para atribuir ao Estado a figura punitiva ou sancionatória.

Assim, “o legislador, querendo proteger o proprietário, assegura o possuidor até que se demonstre não ter ele a condição de dono. Tal proteção, que se estriba numa preocupação de harmonia social, é transitória e sucumbe diante da prova do domínio” (RODRIGUES, 2009, p. 17). Mesmo que o possuidor não seja ao mesmo tempo o proprietário, ainda há a sua tutela enquanto o direito do proprietário ainda não seja comprovado, o Estado, pois, não enseja, nenhum ato violento para nenhuma das partes, fazendo alusão à princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana.

Quanto à posse, “está sempre em foco a ideia de uma situação de fato, em que uma pessoa, independentemente de ser ou não de ser proprietária, exerce sobre uma coisa poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a” (PEREIRA, 2014, p. 13). Fala-se, pois, de uma fruição do possuidor, advinda da vontade deste, evocando a sua capacidade subjetiva de agir conforme o seu raciocínio.

Pereira (2014, p. 13) atenta que nem todo estado de fato é posse em termos jurídicos, discorrendo acerca da diferença que se deve estabelecer entre a posse e a detenção, “que muito se assemelha à posse, mas que dela difere na essência, como nos efeitos”.

Corrobora que existem dois elementos inerentes à posse, “material e anímico, hão de estar sempre conjugados, e, sem a sua presença conjunta, nenhuma posse há”. Quanto às suas terminologias, a saber, “corpus e animus” (PEREIRA, 2014, p. 13). Logo, é evidente a dependência entre esses dois elementos, pois não se tem vontade ou animus se a coisa é inexistente. Assim como a coisa ou corpus não pode ser objeto da posse se o indivíduo não tem vontade ou interesse para a sua fruição.

No que concerne à propriedade, esta pode ser conceituada como “o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha”. Tal conceituação é dada por Caio Mário da Silva Pereira (20014, p. 75), que buscou embasamento no Código Civil (2002).Não há, portanto, uma definição clara do que seja a propriedade, como Pereira (2014, p. 75) corrobora, a legislação atribui quais são os poderes do proprietário.

Mais uma vez, a propriedade denota um amparo jurídico do qual o proprietário goza em casos controversos, constituindo a vontade da lei e exercendo a devida tutela por parte do Estado. Por outro lado, a posse constitui situação de fato, que não necessariamente encontra amparo na Lei, pois o possuidor e o proprietário em muitos casos não se encontram no mesmo indivíduo.

O presente paper trata da questão da usucapião rural, que é uma modalidade de aquisição da propriedade, ou seja, o decurso do tempo aliado ao cumprimento de certos requisitos legais fornece ao trabalhador rural que se utiliza de tal mecanismo uma tutela e um direito subjetivo que pode ser demandado ao Estado e, portanto, ao Judiciário. Ou seja, o indivíduo que, a priori, não tem a propriedade sobre a terra, mas somente a posse, passará a ter a propriedade. Busca-se, pois, a concentração da figura de possuidor e proprietário no mesmo indivíduo, o trabalhador rural. Em tópico posterior, a usucapião rural será tratada sob a perspectiva explicativa.

 

3 A USUCAPIÃO RURAL EM UMA PERSPECTIVA EXPLICATIVA

 

A priori, o presente artigo busca destrinchar acerca da figura da usucapião de modo geral, trazendo entendimentos doutrinários sobre tal instituto e, posteriormente, dispõe da usucapião rural ou pro labore, delimitação da pesquisa e uma espécie, da qual a usucapião é gênero. Ademais, no presente artigo, foi disponibilizado um julgado atinente a procedência de pedido de usucapião rural.

Concomitantemente, neste diapasão, faz-se mister salientar a importância exercida por todas as outras modalidades de usucapião, tais quais familiar, urbana, coletiva, entre outros. Como a função social da propriedade é princípio máster da ordem jurídica vigente, levando em consideração o elevado índice de produção agrícola e dimensões continentais do Brasil, o homem do campo, tal qual o urbano, merece proteção de sua dignidade humana.

No Brasil é muito comum que uma pequena quantidade de pessoas possua a posse de uma propriedade e acabe não ligando para seu bem, deixando que outras pessoas que não possuem uma propriedade para morar ou produzir seu sustento nela residem. E exatamente nesta situação que acaba ocorrendo a usucapião por parte daqueles que estão residindo na propriedade, pois a usucapião se caracteriza como:

 

[...] uma situação de aquisição do domínio, ou mesmo, de outro direito real (caso do usufruto ou da servidão), pela posse prolongada, permitindo a lei que uma determinada situação de fato alongada por certo intervalo de tempo se transforme em uma situação jurídica: a aquisição originária da propriedade (RIBEIRO apud TARTUCE, 2017, p. 181).

 

Desta forma, é possível perceber que a usucapião determina um prazo para se comprovar que o proprietário do bem imóvel não exerce sua função como proprietário, o que faz com a propriedade possa ser transferida para a pessoa que está exercendo os direitos e obrigações sobre o bem. Assim, há um modo de se estabelecer uma justiça distributiva em remanejar o direito de propriedade para o indivíduo que o queira exercer da maneira mais correta, traduzido pela figura do agricultor e de sua família. Este, servindo aos princípios adotados pela Constituição Federal (1988) e legislação específica, pode atribuir à propriedade a função social requerida por todos os entes federativos e sociedade em geral.

Associado a esta característica, temos o conceito de usucapião para Maria Helena Diniz, que faz alusão a característica da novidade presente no instituto supramencionado, onde para ela a usucapião é:

 

[...] um direito novo, autônomo, independente de qualquer ato negocial provindo de um possível proprietário, tanto assim que o transmitente da coisa objeto da usucapião não é o antecessor, o primitivo proprietário, mas a autoridade judiciária que reconhece e declara por sentença a aquisição por usucapião. (DINIZ, 2012, p. 173).

Ou seja, diferente do âmbito contratual, que pressupõe um ato volitivo de ambas as partes envolvidas no contrato, que devem ser detentoras, de igual maneira, de um consensualismo que possibilita o tipo de contrato a ser celebrado, na usucapião não há esse vínculo que liga duas pessoas. Pelo contrário, aqui, conforme entendimento doutrinário citado, é a figura do magistrado que possibilita a aquisição da propriedade imóvel. Logo, faz-se necessário reiterar as diferenças entre os Direitos Obrigacionais e os Direitos Reais, um ligando dois sujeitos e o outro possibilitando a aderência do sujeito à coisa.

Existe várias formas de usucapião, porém a pesquisa em questão é sobre a usucapião rural ou usucapião constitucional. E para que possamos entender melhor como ela ocorre, veremos sua origem, que de acordo com Jonas da Silva Alves:

 

Sua origem decorreu com o propósito de fixar o homem no campo para resguardar a terra, tornando-a produtiva, não bastando somente a posse. A Constituição Federal de 1946 admitia a modalidade de usucapião especial rural em seu art. 196, § 3º[4]. Mais tarde eis que surgiu o Estatuto da Terra lei nº 4.504, de 30-11-1964, regulamentando também esta modalidade em seu art. 98, que previa a usucapião especial para fins de cultivação em terra e nela estabelecendo morada. (ALVES; YOSHIKAYA, 2014, p. [?])

 

Como fundamento legal para embasar o estudo acerca de tal modo de aquisição de propriedade imóvel, tal modalidade de usucapião está prevista nos artigos 191, caput, da Constituição Federal, e artigo 1239, do Código Civil. Logo, há uma parte destinada ao estudo do direito de propriedade no Código Civil, que é devida e possui fundamento no documento mais importante do ordenamento jurídico, o qual goza de supremacia. Segundo o artigo 1239 do Código Civil, poderá utilizar a usucapião:

 

Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade (BRASIL, 2002, p. 239).

 

Com isso fica elencado que os requisitos gerais da usucapião rural são: área não superior a 50 hectares situada em zona rural; posse por cinco anos ininterruptos, sem oposição e como dono; utilização da propriedade para seu trabalho ou de sua família e tendo nela sua moradia; não ser proprietário de outro bem imóvel. Contudo, existe outros requisitos que proíbem a usucapião rural, como aponta Flávio Tartuce:

 

Além desses requisitos gerais, cumpre destacar que o art. 3.º da Lei 6.969/1981 proíbe que a usucapião especial rural ocorra nas seguintes áreas:

- Áreas indispensáveis à segurança nacional.

- Terras habitadas por silvícolas.

- Áreas de interesse ecológico, consideradas como tais as reservas biológicas ou florestais e os parques nacionais, estaduais ou municipais, assim declarados pelo Poder Executivo, assegurada aos atuais ocupantes a preferência para assentamento em outras regiões, pelo órgão competente (TARTUCE, 2017, p. 191)

 

 Deste modo, pode-se dizer de forma resumida que só não se pode aplicar a usucapião rural em terras públicas. Entretanto, mais uma questão merece ser atentada que é o fato dos cinquenta hectares ser o máximo permitido, porém uma área menor do que esta seria improdutiva para o sustento, por isto acredita-se que o legislador tenha colocado esta medida levando em consideração a função social da propriedade (MARTINS, 2015).

Dispõe-se, também, de uma jurisprudência reconhecendo um pedido de usucapião rural, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a saber, Apelação Cível AC 70054221643 RS (TJ-RS), com o seguinte teor:

APELAÇÃO CÍVEL.USUCAPIÃO(BENS IMÓVEIS). AÇÃO DEUSUCAPIÃO. MODALIDADERURAL. ART. 191 DA CF. REQUISITOS PREENCHIDOS.PROCEDÊNCIADO PEDIDO. Merece julgamento deprocedênciao pleito deusucapiãoformulado pela autora, considerando ter comprovado não ser proprietária de imóvel e que possuiu o bemruralobjeto da contenda, inferior a cinquenta hectares, por mais de cinco anos, com animus domini, de forma mansa, pacífica e sem oposição, tornando-o produtivo por seu trabalho, tendo nele sua moradia. RECURSO PROVIDO, POR MAIORIA. (Apelação Cível Nº 70054221643, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em 12/09/2013).

Logo, para efeito de julgamento, há o devido enquadramento com os requisitos objetivos previstos no corpo legislativo, fazendo com que se deva reconhecer a procedência da usucapião rural em favor da requerente. À fim de um desempenho jurisdicional satisfatório para efeitos de composição de lide envolvido conflitos possessórios, a previsão legal de normas é essencial.

Em uma perspectiva de cunho demonstrativo, buscou-se explicar os requisitos essenciais para que o agricultor possa pleitear à aquisição da propriedade imóvel, restringindo-se à objetividade necessária, com a concordância de que o Estado deve delimitar requisitos mínimos para que se tenha a usucapião rural, a despeito de maior organização e observância aos recursos limitados os quais a União tem acesso serem necessários. Assim, no próximo tópico, uma análise de teor crítico foi feita a fim de que se problematize quais os efeitos, tanto para o Estado quanto para a sociedade, da existência da usucapião rural.

 

4 REFLEXÃO ACERCA DOS IMPACTOS DA USUCAPIÃO RURAL À LUZ DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE SOB A ÓPTICA CRÍTICA

 

Quando a propriedade é analisada sob um ponto de vista social, o trabalhador rural passa a ser um sujeito suscetível a algumas problematizações, principalmente no que concerne a falta de terras que acomete alguns desses trabalhadores. Logo, princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana podem ser mitigados, fragilizando não só a própria Carta Magna, como também todo o ordenamento jurídico.

A falta de equidade no acesso à promoção do direito à propriedade, traduzida na falta de terras para todos os brasileiros em iguais condições, muito se deve à falta de políticas públicas ou atuações estatais de víeis fundiário. Quanto ao Estado, denota-se, pois, uma inércia frente à desigualdade social que assola boa parte da população brasileira. Tal desigualdade é agravada quando a figura estatal é conivente com a política latifundiária, que concede privilégios tão somente aos grandes proprietários de terra.

Guedes; Reydon (2012, p. [?]) atentam, ainda, para uma outra problemática, atinente à

 

questão do que é terra pública e o que é terra privada, discriminação que deveria ter sido feita supostamente pela lei de terras, permanece angular no que diz respeito à atual questão fundiária, pois a permanência dessa indeterminação econômico-jurídico-política abre amplo espaço para o avanço privado do domínio público, inviabilizando qualquer política nacional de terras.

 

Além do fato de que o trabalhador rural precisa recorrer a usucapião rural para viabilizar o direito à propriedade e ao mínimo existencial – ou a uma vida minimamente digna, na discussão constitucional – ainda existe uma problemática no registro de tais propriedades. Problemas de cunho registral, portanto, dificultam aos governantes a efetivação de reformas de caráter fundiário a fim de que se garanta a efetivação da função social da propriedade, pois nem mesmo o Estado tem total controle sobre o que seja público e o que seja privado.

Quanto ao mínimo existencial, Bernardo Gonçalves (2016, p. 668) esclarece: “esses direitos protegidos sobre tal rótulo voltam-se para o atendimento e concretização das necessidades básicas de um ser humano”. Logo, a usucapião rural, como modalidade de aquisição de propriedade, colabora com o ideal de mínimo existencial, pois confere ao trabalhador não urbano condições básicas para a manutenção de sua vida. Concomitantemente, há a reflexão de uma postura que não coaduna com a transgressão de normas, pois para que se adquira a propriedade através da usucapião rural, a violência não pode estar presente durante o tempo requisitado.

Tartuce (2017, p. 191) elucida “alguns enunciados aprovados nas Jornadas de Direito Civil”. O referido autor cita o Enunciado n. 312 do CJF/STJ, dispondo que o estabelecimento de área máxima para essa modalidade de usucapião leva em consideração o módulo rural e a atividade agrária regionalizada. Infere-se, portanto, que tal enunciado doutrinário, do professor Paulo Henrique Cunha da Silva, visa atribuir maior eficiência à atividade agrária, havendo um importante diálogo do Direito Civil com o Direito Agrário.

Também, recente entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) conclui que é possível que “a usucapião agrária incida sobre área inferior a um módulo rural”. O fato de incidir sobre área inferior a um módulo rural, conforme entendimento do referido Tribunal Superior, prestigia a função social do imóvel rural, pois tal modalidade de usucapião é constituída pelo elemento “posse-trabalho”. Logo, a exploração econômica da terra de forma coerente, ainda que seja inferior a tal módulo, é primordial para assegurar direitos fundamentais relativos à propriedade (TARTUCE, 2017, p. 191).

Cassaniga (2003, p. 52) atenta para o fato de que, atualmente, não se entende o estudo da posse como simples reflexo do direito de propriedade, este “passou de uma concepção capitalista e individualista para aplicação do princípio da função social da propriedade”. Ou seja, a tutela fornecida em tempos atuais visa ir além do individual e busca, desta forma, privilegiar a coletividade. Como resultado, incidiu até mesmo na flexibilização do pacta sunt servanda no âmbito contratual, que guarda certa relação com o Direito das Coisas, já que há esse diálogo entre os Direitos Pessoais e Direitos Reais.

Há de se falar, ainda, que “o Estado contemporâneo encontra-se inserido num contexto social onde as diferenças entre os cidadãos são alarmantes”. Complementa-se, deste modo, como exemplo das distorções sociais que assolam a sociedade brasileira, “os bolsões de miséria encravados em nossas grandes capitais em contraste com os bairros tidos como nobres e seus moradores”. Assim, a usucapião, não somente em sua modalidade rural, detém como mecanismo tornar mais igualitário o acesso à moradia entre classes tão distintas (CASSANIGA, 2003, p. 54).

Para Cassaniga (2003, p. 55), a intervenção do Estado nas questões possessórias deve levar em consideração os interesses da comunidade. Por isto, quando estiverem em conflito com interesses de pessoas isoladas, pressupõe-se que a coletividade exercerá supremacia, pois é em que se baseia o Direito Civil Moderno. Em uma sociedade cada vez mais individualista, pensar no coletivo tornou-se tarefa de difícil realização, mas é o que se propõe o conjunto de normas brasileiras, que pregam um ideal de cidadania.

No que se refere à reforma agrária – que foi mencionada não como enfoque do presente trabalho, mas sim como acessória - e usucapião rural, não deve haver uma proposta estritamente idealista de promover o direito à propriedade e à moradia. A reserva do possível explica muito bem a restrição imposta ao Estado no que se refere a sua capacidade orçamentária de promover direitos sociais.

Desse modo:

As políticas públicas para efetivação de direitos sociais demandam, na grande maioria das vezes, gasto de recursos públicos. E esse é o ponto central no debate a respeito da exigibilidade judicial dos direitos sociais, pois uma decisão judicial para a tutela de um determinado direito social no caso concreto pode obrigar o Estado a realizar gastos públicos e, uma vez que os recursos públicos disponíveis são menores do que o necessário para oferecer a todos os cidadãos todos os direitos que a Constituição prevê, muitas vezes a Administração não tem ou não pode dispor dos recursos necessários para atender a decisão judicial sem prejudicar a tutela de um outro direito que o Poder Público entendeu ser mais importante. (WANG, 2008, p. 540).

Ou seja, o direito à moradia necessariamente demanda do Estado uma ação, porém as necessidades são ilimitadas face a recursos limitados. Dessa maneira, a figura estatal não pode arcar com todos os gastos, devendo haver um racionamento e delimitação do que é primordial para assegurar o mínimo existencial aos cidadãos. Assim, quando o Poder Público opta por prover um direito fundamental em detrimento de outro, deve haver um processo de justificação racionalizado, que forneça à população justificativas plausíveis.

Logo, deve haver um equilíbrio entre a promoção do direito à moradia e à propriedade e os recursos limitados. Tal equilíbrio visa assegurar um Estado Democrático de Direito que observa as garantias fundamentais a que se propõe.

 

5 DISCUSSÃO DO TEMA

 

Inicialmente, tinha-se como problemática os impactos da usucapião rural à luz da função social da propriedade, onde um dos principais impactos que decorreu da prática da usucapião rural foi a possibilidade do agricultor e sua família conseguir um pedaço de terra para morar. Assim, pois, seria possível garantir, através de sua força de trabalho, a subsistência e o progresso social e econômico da nação, como um todo, e prover a obtenção de um meio de vida digna para o próprio agricultor e sua família.

Quanto aos objetivos desempenhados pelo presente artigo, discorreu-se acerca da posse e propriedade, pois o estudo dos dois referidos institutos exerce primordial importância para o Direito Civil e ordenamento jurídico, em detrimento das constantes relações comerciais e sociedade cada vez mais globalizada e dinamizada. Encontra-se na posse e na propriedade, pois, instrumentos pelos quais é possível o gozo do direito à moradia.

 Ademais, o instituto da usucapião rural ou pro labore, como forma de propiciar condições mais igualitárias ao agricultor e a sua família, mostra-se fundamental para o incentivo a uma sociedade mais democrática. E, por fim, foi debatida a influência dessa modalidade de usucapião e os seus reflexos em relação a princípios constitucionais, fazendo-se mister salientar o debate acerca da problemática supramencionada.

 

6 CONCLUSÃO

 

Por conseguinte, com a pesquisa realizada, percebeu-se que além de conseguir um pedaço de terra para o agricultor morar e produzir seu sustento, também foi visto que a usucapião acaba funcionado como um meio de tentar garantir uma igualdade, pois a Constituição determina que todos têm direito à propriedade, porém na prática isso não ocorre, prevalecendo, assim, a desigualdade social.

 A usucapião rural vem como uma forma de garantir, para aqueles que não possuem, uma porção de terra, que o agricultor tem o animus domici, ou seja, age como dono, cuidando e produzindo naquela pequena porção de terra na zona rural. Logo, em função de uma política estritamente latifundiária, que é adotada em território pátrio, há o prejuízo unicamente de indivíduos que não detém condições suficientes para prover o próprio sustento e de sua família.

Ao suscitar a supremacia constitucional vigente, percebe-se, pois, como reitera a Carta Magna, que a dignidade da pessoa humana engloba o gozo do direito à vida de modo satisfatório. Isto é, a existência de uma vida digna para todo e qualquer brasileiro deve ser proporcionada pela figura estatal, a despeito de haver uma igualdade formal garantida pelo ordenamento jurídico.

Por fim, quando é admitida uma igualdade apenas formal, há presunção da ausência de uma igualdade material. Ou seja, o agricultor que utiliza de mecanismos como a usucapião rural ou pro labore não detém igualdade de condições em relação a indivíduos com poder aquisitivo maior, que conseguem prover do direito à moradia, integridade e vida digna pelos próprios meios.

Deste modo, deve haver uma atuação mais presente tanto pelos órgãos legitimados quanto pela própria sociedade, efetivando políticas públicas, que não devem ser, sobremodo, negligenciadas, porém se observando a reserva do possível. A realização de reformas agrárias e a compreensão de institutos como a usucapião rural, que possuem víeis inclusivo e atuante, são verdadeiros reflexos de uma postura que deve ser cada vez mais adotada pelo governo, ao promover a devida proteção que deve ser conferida aos direitos fundamentais.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

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[1] Paper apresentado à disciplina Direitos Reais, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

² Alunos do 4º período do Curso de Direito, da UNDB.

³ Professor Especialista, Mestre ou Doutor, Orientador.