*INTERPRETAÇÃO DE 1 PEDRO 3.18-20*
*Uma exegese acurada, sincera e cheia de dinamismo. Um relato interpretativo em suas minudencias de um dos textos mais polêmicos do NT.*


Buscamos por respostas para tudo. Respostas que muitas vezes vagas não encontramos de maneira fácil e por isso as buscas se tornam dolorosas. Este texto que aquí é apresentado tem em seu cunho este senso de raridade, pois suas evidências apontam para uma gama de interpretações e muitos que se atrevem a debate-lo caem em contradição com as Sagradas Escrituras. Tomei muito cuidado para não repetir tais erros, pois estou acostumado com os debates que se acirram não somente deste assunto, mas de toda a Bíblia em seu contexto de Gênesis até Apocalipse. 

*1 PEDRO 3.18-20*
18. Pois também refere as palavras que vêm a seguir no texto ao que nele foi dito antes: “porque é melhor que sofrais por praticardes o que é bom” (v. 17). Pois também Cristo sofreu (praticando o bem e a justiça). Formalmente, o começo desse novo trecho é literalmente igual ao começo do trecho 2.21-25, de que já falamos em outra oportunidade: otikai Christos ...epathen, sublinhando assim a identidade entre as duas passagens, bem como o seu papel semelhante dentro da carta. Já de início temos uma dupla possibilidade de leitura dentro do texto grego, que se reflete nas diferenças entre as versões portuguesas: uma parte dos manuscritos gregos antigos traz a palavra apethanen, que significa morreu (cf. ARA e a maior parte das nossas versões), e outra parte traz epathen, sofreu (nesse sentido ARC traduz por “padeceu”); esta última é a leitura adotada em NA (nisso diferindo da edição anterior), e que parece ser mais provável. O sentido, na verdade, não muda muito, senão que epathen tem, conforme o uso, aqui, um sentido mais abrangente, pois se refere ao sofrimento de Jesus incluindo a Sua morte, que é o que apethanen especifica. Em 2.21, numa frase paralela, como já vimos, também aparece epathen, “sofreu”, e pouco depois a morte na cruz é incluída na perspectiva. E como o tema no contexto é o sofrimento dos crentes, sofrimento injusto, dizer que também Cristo sofreu tem certamente um impacto maior nos leitores, que vêem reiterada a identificação deles com seu Senhor (como já ocorreu em outras partes da carta em questão). O fato de que Ele, finalmente, morreu, também serve-lhes como indicação, se preciso, a também ir até aí na sua identificação com Ele. Há um aspecto na Paixão de Cristo, todavia, que não é paradigmático, sendo “único e intransferível”. Ele sofreu e morreu pelos pecados, aqui claramente os pecados de toda a humanidade (cf. 2.24, “carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados”; e 1 Jo 2.2, “pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos próprios, mas pelos do mundo inteiro”). Isto quer dizer que Jesus morreu por causa dos pecados da humanidade, e para carregá-los, removendo-os de sobre nós (essa abrangência de sentido é possibilitada pela preposição grega peri, “pelos”). E nesse sentido a sua Paixão foi única. 
Essa morte substitutiva, esse sacrifício que realmente tem poder para carregar o pecado, só precisou acontecer uma única vez (gr. hapax; nesse sentido a palavra é usada em Hb 9.26, 28;10.10). Isso ressalta aqui, como em Rm 10.6, “que os pecados que separam de Deus finalmente foram superados, e que o caminho para Deus, no qual Cristo nos leva com Ele (v. 18c), por fim está aberto” (Goppelt). Este hapax (único) é muito significativo na concepção geral do cristianismo. Pois, ao insistir o Novo Testamento em que Cristo lidou com o problema do pecado de uma vez por todas, ele também nega que o sofrimento passado por qualquer outra pessoa, seja no passado ou no presente, tenha esta eficácia ativa de redimir o homem das suas culpas e dos seus pecados. A religiosidade popular em todas as épocas esteve impregnada da concepção da necessidade de se fazer alguma coisa para expiar os pecados da pessoa e da sociedade. E muitas vezes o meio para isso é o sofrimento, de uma ou de outra forma (auto-inflingido ou passivamente aceito, quando as causas são externas). Entram nessa categoria todo tipo de mutilações e “castigos” auto-impostos (físicos ou psicológicos), bem como concepções que acompanham certas catástrofes, de que pessoas ou grupos “estão expiando o mal que cometeram”. A própria religião do A.T. deixa entrever aqui e ali traços disso, e certamente se prestava a ser manipulada nessa direção (contra o quê os profetas se levantaram). E mesmo no seu caráter de instituição na qual Deus agiu numa determinada época da história, a expiação dos pecados que ela podia oferecer era sempre parcial e provisória, apontando mais para frente (para o Dia de Cristo) do que realmente resolvendo de forma adequada o problema do passado.

Nesse sentido, o cristianismo é uma alternativa radical às religiões do homem, desmistificando-as, bem como todo esforço por querer resolver sozinho o problema da culpa e do pecado, esforço persistente que, quando desmascarado, revela-se nos atos e concepções mais inusitados da vida humana. A proclamação desse versículo, portanto, ao mesmo tempo que anuncia a melhor notícia que jamais ouviremos, anuncia também um juízo radical a todas as formas humanas de dissimular o problema do pecado ou de orgulhosamente querer resolve-lo sozinho, construindo todo tipo de substitutos de Cristo, os ídolos que fazemos para usurparem o lugar da graça de Deus. A morte de Cristo foi a morte do justo pelos injustos. Somos colocados aqui numa situação em que toda a humanidade, sem exceção, está colocada de um lado, e Cristo, sozinho, do outro. O termo dikaios (justo) apareceu há pouco na carta, em 3.12, referindo-se aos cristãos, os que aceitaram por fé o sacrifício redentor de Jesus por eles, sendo assim “justificados”, tornados justos e passando agora a “viver para a justiça” (2.24). Estes são contrastados lá com “aqueles que praticam males” (no mesmo versículo, 3.12), e que basicamente são os mesmos que aqui são os injustos, sendo que devemos acrescentar dentro dessa designação, aqui em 3.18, também os que lá são chamados “justos”; ou seja, todos são “injustos” (cf. Rm 3.10-12: “não há justo, nem sequer um... Não háquem faça o bem, não há nem um sequer”). Cronologicamente, então, o que é dito em 3.18 vem antes do que o que é dito em 3.12; nesse meio tempo, os cristãos (justamente por aceitarem o sacrifício de Jesus em favor deles) passaram de “injustos” para “justos”, possibilidade esta que, em virtude de que o mesmo sacrifício de Cristo (único que é) vale ainda para todos, está aberta a todos (esta é, em síntese, a proclamação missionária dos cristãos; é o “grande feito de Deus”, que chama agora a todos “das trevas para a luz”, 2.9). Este caminho aberto das trevas para a luz é conseqüência da morte de Cristo pelos pecados da humanidade. Estes, nas palavras do profeta Isaías (que, como estamos vendo, de vez em quando surge na mente do autor), “fazem separação entre os homens e Deus”, “encobrindo o rosto de Deus”, ou seja, não permitindo o acesso até Ele (Is 59.2). Agora, como a conseqüência maior da morte salvífica de Cristo, o acesso a Deus fica aberto (cf. Rm 5.2). Simbolicamente, o véu que separava o lugar da presença de Deus do lugar em que ficavam os sacerdotes e os adoradores, no templo de Jerusalém, é rasgado ao meio (Mt 27.51) no exato momento da morte de Jesus na cruz, proclamando assim que, agora, todos têm acesso a Deus por intermédio da fé em Jesus. Essas passagens ilustram essa coisa tão fundamental e ao mesmo tempo tão simples de que se fala aqui: tudo isso é para que o homem possa novamente desfrutar da comunhão livre e desimpedida que tinha com Deus quando foi criado, antes de o pecado separá-los (uma bonita relação de comunhão que está implicada na narrativa de Gn 3.8-10, por exemplo). Esta comunhão desimpedida com Deus é a bênção maior, ápice de tudo que a Bíblia descreve (cf. o belo modo de mostrar isso no Apocalipse, onde a partir do capítulo 21 o relato vai num crescendo, de fora para dentro, chegando cada vez mais perto e tendo seu clímax em 22.4,5, na visão de Deus face a face pelos salvos, para todo o sempre). A mediação de Cristo neste processo  mostrada de uma forma descritiva: Ele é quem nos leva até Deus, quem nos conduz. Pois Cristo foi morto, sim, mas ressuscitou (logo, está vivo). Isso é dito em duas frases justapostas e perfeitamente paralelas (talvez aludindo a algum hino cristão, ou uma confissão de fé). 
Morto, sim, na carne. O verbo thanatõtheis está no passivo, e isso é significativo: Ele “foi morto” (é o verbo geralmente usado para morte violenta causada por outros). Também nisso Ele é o exemplo maior de muitos cristãos (talvez vários entre os leitores) cuja fé os leva ao martírio. Morto na carne. São comuns nos escritos bíblicos, e mesmo na literatura grega da época, as oposições entre “carne” e “espírito” (que tanto podè ser pneuma, como aqui, ou psyche). A carne é sarx, e tanto carne como espírito estão aqui no modo que na sintaxe grega se chama “dativo de referência”. Isso quer dizer que a oposição não é entre o corpo e a alma (o espírito) de Jesus (pensando na imagem de um corpo morto e uma alma desencarnada que seria imortal), mas sim entre duas “esferas” de existência, dois modos de existir. Cristo foi morto na “esfera da carne”, e é importante que isso seja dito: 
*Ele realmente morreu, como qualquer um de nós morrerá um dia, no atual modo de existência que temos. Essa foi a realidade daquela sexta-feira: Jesus Cristo morreu, e foi sepultado (cf. Mc 15.44-46).*
Até quanto se pode ver com os olhos “desta carne”, tudo terminou aí, e talvez seja o que pareça também para aqueles cristãos sujeitos à morte por causa da sua fé (o que talvez não estivesse acontecendo ainda entre os leitores de 1 Pedro, mas certamente era uma possibilidade que se antevia no horizonte). Nesses casos, sempre é mais fácil falar do que viver na pele uma tal situação. Mesmo o sentido redentor da morte de Jesus não se deixa descobrir se a isolamos na história. O que vem a seguir é que determina também a compreensão que podemos ter do significado dessa morte (o mesmo valendo, guardadas as proporções, para os cristãos que morrem).

E o que vem a seguir é: morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito. A interpretação dessa frase deve seguir o mesmo caminho da outra, por serem paralelas. 
*Cristo foi vivificado (passivo), isto é, recebeu nova vida, no espírito, ou seja, na “esfera espiritual”; Jesus começou uma nova existência em um outro estado, o estado “espiritual” (o que está prometido a todos os salvos, cf. 1 Co 15.52-54). Isto se dá pela ressurreição.*
Assim, vivificado é sinônimo de “ressurreto”, sendo que as duas frases paralelas apontam para os dois momentos climáticos da Paixão e mesmo da história como um todo: a morte e a ressurreição de Jesus. Certo que o termo não se aplica a Jesus em mais nenhum lugar do NT; por isso, muitos o têm interpretado como significando algo como um despertar do espírito de Jesus antes da Sua ressurreição (ou seja, entre a morte e a ressurreição), num estado intermediário em que o espírito de Jesus estaria vivo, mas ainda sem corpo, sem o corpo da ressurreição. Mas essa interpretação não se mostra a mais plausível, mesmo porque parece que as duas frases podiam já estar juntas, como vimos, em algum hino ou fórmula litúrgica, e que Pedro assim fizesse uso delas aqui (o que lhes daria o sentido simples de morte e ressurreição). Pois a interpretação do “vivificado mas ainda não ressurreto” tem em vista principalmente a harmonização do v. 18 com o que vem a seguir na passagem que estamos analisando.

O sentido da morte de Jesus ficou claro, então, a partir da Sua ressurreição. Ela era necessária para pôr fím à velha ordem e dar passagem à nova ordem de Deus. Sem morte para o velho, não haveria nascimento para o novo. E com Jesus começa, por ter Ele acertado as nossas contas com o passado, o novo tempo em que as pessoas ressuscitam depois de morrer, e entram numa outra dimensão de existência completamente nova. 
*A morte não é o fim de tudo para aquele que está “em Cristo” (3.16), pois com Ele a barreira da morte é superada para dar passagem a um novo tipo de vida, “incomparavelmente melhor” (nas palavras de Paulo, Fp 1.23), que os olhos não podem ver, mas que aos olhos da fé é uma realidade certa (Hb 11.1).*
E essa é a mensagem aqui no contexto de 1 Pedro, para encorajar a todos os cristãos, que “amam a vida” e “querem ver dias felizes” (3.10), mas que sabem que não podem trocar por uma vida boa no presente o que está reservado para eles “nos céus” (1.3-4); e mais, que sabem que a única verdadeira esperança para o mun­ do está na paz (3.11) e na justiça (2.24; 3.14) que, a partir da vitória de Cristo, certamente haverão de ser implantadas definitivamente no novo mundo de Deus. E para que isso se tome realidade, vale a pena morrer.

19, 20a. Apesar de ser bem pequeno, o v. 19 é um dos mais controvertidos de todo o N.T. Praticamente cada uma das suas nove palavras (no grego) tem sido objeto de intenso debate na pesquisa bíblica. Aparentemente, esta é a única passagem do N.T. que fala (ao menos de forma tão “clara”) de um tema que mais tarde foi incorporado ao segundo artigo do Credo Apostólico: 
*“foi crucificado, morto e sepultado; desceu ao o inferno, ressuscitou dos mortos ao terceiro dia”*
Esse fato tem condicionado de várias maneiras a interpretação dessa passagem em muitos segmentos da igreja universal, sendo a passagem lida (conscientemente ou não) à luz do credo. Este delimitaria, então, a interpretação em dois aspectos: 
a) que o “foi” do v. 19 significa “desceu”, e que o lugar para onde Ele foi é “o inferno”; 
b) cronologicamente, que isso se deu entre a morte e a ressurreição de Jesus (quer dizer, entre a sexta-feira santa e a páscoa).

Com respeito a esta passagem do Credo e de sua relação com 1 Pe 3.18-22, é importante frisar o seguinte: é um fato marcante que na literatura patrística dos dois primeiros séculos, apesar de encontrar-se muito difundida a concepção da descida de Cristo ao inferno, em nenhum lugar ela é relacionada diretamente com a passagem de 1 Pedro; a primeira vez que isso ocorre é com Clemente de Alexandria, no fim do segundo século. Mas essa é uma discussão muito complicada, e fora do nosso horizonte aqui. Basta mencionar o fato, e salientar que não há necessariamente relação entre a passagem de 1 Pedro e a do Credo (embora mais tarde essa relação tenha sido feita; o importante é que a doutrina que entrou no Credo pode ter vindo primeiramente de outro lugar que não o texto de 1 Pedro). Isto para deixar claro, desde logo, que o texto de 1 Pedro deve ser interpretado independentemente.


A palavra 'no qual' também parece se relacionar diretamente com “no espírito”, a palavra imediatamente anterior (fim do v. 18). Ao bradar no Calvário "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!" (Lucas 23.46) remete a possibilidade de que o espírito humano de Jesus, gerado no momento de sua concepção tenha sido recebido nos céus por Deus-Pai enquanto sua alma era conduzido em outra direção como fala o verso seguinte. Este conceito é trinitário. O cumprimento de Eclesiástes 12.7 assinala para a humanidade de Cristo provando, que Ele era, quando em carne 100% homem. Sua deidade é provada aqui. Seu espírito-alma obtém a passagem para a dimensão dos mortos e ali permanece até ser trazida de volta do mundo dos mortos, a expressão seria "dentre os mortos" ou "ex necron" (1 Corintios 15.20), pelo Espírito Santo de Deus na manhã da Páscoa. 
 Uma outra possibilidade é que 'no qual' se refira ao conjunto dos acontecimentos de que fala o v. 18 (a Paixão). A expressão en hõ (no qual) é usada assim, aparentemente, em outros lugares da carta (1.6; 2.12; 3.16; 4.4). Se for tomada nesse último sentido, significa então “durante os eventos da Paixão” (com isso deixando lugar para que a ida de Jesus aos espíritos em prisão possa ter ocorrido entre a Sua morte e ressurreição, conforme diz o Credo). Mas o modo mais natural de ler en hõkai (no qual também), aqui, parece ser mesmo se referindo a pnêumati (no espírito), a palavra anterior, assim levando adiante o pensamento começado. 

Conforme já vimos, “vivificado no espírito” (v.18) refere-se à ressurreição, e assim o que aqui é dito é que o Cristo ressuscitado “foi...”. Foi é poreuthêis, que traduz o ato de ir, sem indicar direção (o Credo explicita “desceu”). 
*O mesmo verbo é usado no v. 22, e lá se diz “ir para o céu” (ou seja, para cima); é claro que necessariamente deveria ou não ser este também o sentido aqui. A direção, então, não é dada com clareza, só o lugar para onde Cristo foi ao mundo dos mortos.*

Aos espíritos em prisão é a parte mais difícil do versículo. A palavra traduzida por "espíritos" é pnêumasin, e a discussão mais imediata é se se trata de pessoas ou seres angélicos. O uso do termo para pessoas é muito raro (e em nenhum caso aparece absoluto, como aqui); no N.T. só se encontra em Hb 12.23, referindo-se aos “espíritos dos justos aperfeiçoados”. Apesar disso, Bauer, p.1338, interpreta o termo aqui em 1 Pe 3.19 como tendo esse significado (cf. o Léxico, 169). As suas palavras são: “depois da morte do homem, o priêuma, continua a viver como entidade independente, no céu ...no mundo inferior ...ou no espaço do ar”; assim, se trataria dos espíritos dos que já morreram, e que se encontram por aí, em algum lugar, e aos quais Cristo, também “no espírito”, se dirigiu. Mas isso não entraria em conflito em parte com a interpretação que demos aos termos “na carne” e “no espírito” no v.18? Não vemos um conflito por assim dizer. Este autor vê uma coadunação entre ambos. Logo, assim que o espírito sai do corpo e se vai chegando a mansão dos mortos, há encruzilhadas onde tem que se tomar uma decisão para se poder prosseguir, e que, daí em diante os caminhos tomados vão determinando um ao outro destino final à alma. Este raciocínio pode ser melhor observado em JÓ 33.21-24 que afirma que depois de morrer o homem: "A sua carne, que se via, agora desaparece, e os seus ossos, que não se viam, agora se descobrem." (verso 21), Aqui fala do corpo que é o invólucro de sua vida e contato com o terreno ou tudo que é material. Eclesiástes 12.7 afirma que "volte ao pó" o destino de todo ser humano está implicado na sua natureza terrena. Já o verso seguinte, afirma que, enquanto o corpo desce à sepultura, não é o fim da cessação de vida, não é o fim de tudo como pensam muitos, pois haverá continuidade de 'consciência' no além túmulo: "A sua alma se vai chegando à cova, e a sua VIDA, aos portadores da morte" (verso 22), por COVA entendemos que quer dizer o 'mundo dos mortos' em contraste com sua VIDA sendo entregue ao anjo da morte: "Se com ele houver um anjo intercessor, um dos milhares, para declarar ao homem o que lhe convém" (verso 23), este anjo, estranhamente é chamado aqui de "anjo intercessor", mas não pode, necessariamente, significar que seja um outro ministério de Cristo ao interceder pela alma do homem em contraste com a constante reclamação do inimigo por esta alma recém chegado do mundo dos vivos, como mostra Apocalipse 12.11 onde Satanás é o acusador incansável de nossos irmãos. Não há dúvida que este anjo não haje só, como ele existem outros 'milhares' que tem a mesma função de conduzir a alma até seu local de repouso ou castigo. Tudo isso é o resultado de como tal homem viveu sua vida na terra, dependendo de sua conduta ou convicções, seu destino final é decidido ali naquela 'encruzilhada' sobrenatural. A versão AM traz um ensejo mais animador: "então, Deus terá misericórdia dele e dirá ao anjo: Redime-o, para que não desça à cova; achei resgate". Esta outra COVA descrita aquí é o lugar em questão neste estudo. Não podemos definir onde fica o lugar que Cristo 'foi' ao espirar, sabemos contudo que independente de sua localização, este lugar, ele é real, e será o destino dos que não quiseram dar ouvidos à pregação da Palavra de Deus, nem ao chamado de amor do Senhor quando diz em Mateus: 11.28: "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei" (Bíblia JFA Offline) quando vivos aqui neste mundo visível e material até onde os olhos podem contemplar. Não se arrependeram de seus pecados e estão desgraçados por toda a eternidade. A expressão deste verso que diz: "Deus terá misericórdia" não se aplica aos infiéis. Aqui neste verso 24, há a afirmação de que, se depois da morte, Deus "achar resgate" pela vida do homem, logo logo, ele será restaurado à sua condição original antes da queda de Adão (ver o verso 25). Quando o homem morre sua carne é condenada ao pó, seus ossos se descobrem na corrupção da carne e sua vida ou alma é levada para julgamento imediatamente: "a sua VIDA aos portadores da morte". No além-túmulo porém, se não houver quem o reclame como um homem íntegro (redime-o) não haverá resgate pela sua alma, e logo, tal homem é condenado a segunda morte (desça à cova). Assim não havendo resgate sua condenação é evidente. 

Voltando para o texto do nosso estudo, sabemos que o uso mais comum de priêumasin, contudo, não é se referindo a pessoas, mas a “um espírito como um ser independente, que não pode ser percebido pelos sentidos físicos” (Léxico, 169). Nesse sentido, o termo é usado para: 
a) Deus (só em Jo 4.24); 
b) bons espíritos, anjos; 
c) maus espíritos, demônios (tanto um como outro se encontram várias vezes no N.T.).
Não podemos dizer que é melhor deixar a questão aberta, e prosseguir.

Em 'prisão' é tradução de en fylakê, e pode estar se referindo, como um adjetivo, à situação ou estado em que se encontram os mencionados espíritos; ou então, o que é mais provável, como um substantivo, ao lugar em que eles se encontram, uma prisão. Foi a este lugar, então, que Cristo se dirigiu, aos espíritos que lá estavam. Como não temos nenhuma pista do que seria isso, nem de onde seria, o melhor é prosseguir e voltar depois para uma vista geral num próximo estudo. 

A segunda questão maior na interpretação do v. 19 é o conteúdo de pregou (gr. ekêryxeri). Usualmente, no N.T., o verbo keryssein (de onde vem “querigma”, a mensagem do evangelho) é usado que como um termo técnico para a proclamação do evangelho. Mas ele também pode ser usado em sentido neutro, de “proclamação” (sem implicar nada sobre o conteúdo). Como veremos adiante, entendê-lo aqui em um ou outro sentido fará bastante diferença na interpretação. A primeira parte do v. 20 deve ser lida junto com o v. 19. Continuando acerca dos espíritos em prisão, surge mais uma pista. Estes são aqueles que noutro tempo foram desobedientes, quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca. A expressão noutro tempo é a mesma que já apareceu em 3.5, referindo-se lá às “santas mulheres de outrora”. Significa “no passado”, e também aqui não está claramente delimitado como sendo nos dias de Noé. Naquele tempo, os citados espíritos foram desobedientes (gr. apeithêsasin, cf. 2.8), e parece haver uma relação entre essa desobediência e a sua prisão. Isso é tudo que nos diz o texto, além da menção à história de Noé, que se encontra em Gn 6-9. Estes, então, são os dados exegéticos com os quais temos que jogar para conseguir uma leitura coerente da passagem que temos à nossa frente. Juntando-os, vamos perceber o seguinte: há duas possibilidades principais de leitura dessa passagem, ambas coerentes em si mesmas, bem argumentadas, e dando conta dos dados do texto; é possível, além disso, mais um bom número de combinações com elementos das duas, mas com variações mais para um ou mais para o outro lado. Ambas apresentam ainda, e isso é importante, uma interpretação relevante para o contexto de 1 Pedro. Mas as duas seguem em direções distintas, interpretando os dados de forma diferente, e assim chegando a conclusões bem diversas. 

Vamos, então, ler o texto, primeiro por uma e depois pela outra.
1) Começamos lendo en hõ kai (no qual também) no sentido mais amplo a que nos referimos acima. A expressão, então, indica todo o evento da Paixão (da morte até a ressurreição) de que fala o v. 18. Neste período, Cristo foi aos espíritos em prisão, que foram desobedientes nos dias de Noé. Trata-se da geração que viveu nos dias de Noé, que “não obedeceu” à sua pregação de arrependimento, preferindo continuar na maldade em que vivia (e que é bem descrita em Gn 6). Lá não se diz que Noé pregou para os seus contemporâneos, mas a tradição judaica é bas­ tante clara nesse sentido (cf. 2 Pe 2.5, “Noé, pregador da justiça”). Em vários lugares de 1 Pedro fica evidente que o autor, mesmo sendo judeu, faz uso de uma terminologia helenista (mesmo que mais na forma que no conteúdo, às vezes). Nesse sentido, a carta aproxima-se da Epístola aos Hebreus e dos escritos de Lucas. E nesse grupo de escritos encontramos um uso de priêuma (espírito) que se aproximaria do uso do termo no período clássico grego, onde ele era intercambiável com psyche representando a “alma” (a parte invisível do ser). Cf. Hb 12.23; Lc 24.37,39. Este seria, então, o sentido de priêumasin aqui em 1 Pedro 3.19: os espíritos daqueles que morreram (especificamente, nos dias de Noé). O v. 4.6 parece corroborar isto, ao falar que “o evangelho foi pregado a mortos”.

Onde estariam estes espíritos? Há várias passagens, em escritos do período pós-apostólico, que falam que os espíritos dos descrentes são aprisionados no mundo dos mortos (significativamente, são escritos relacionados de perto com a comunidade cristã de Roma, de onde provavelmente 1 Pedro foi escrita, segundo a tradição, há quem refute esta linha com facilidade).  No imaginário comum a todo o mundo antigo, os mortos continuavam tendo algum tipo de existência em algum lugar (geralmente este é localizado nas regiões subterrâneas, a partir do fato de que os mortos são enterrados). Na tradição do A.T. e do judaísmo, este lugar era chamado Seol; em grego, Hades. A evolução desse conceito, e os posteriores refinamentos, não nos interessam aqui, só o fato em si. Os mortos, então, iam para o Hades, onde, segundo a tradição que aparece aqui em 1 Pedro, os desobedientes se encontravam aprisionados. 

A estes, então, Cristo foi e pregou. O termo keryssein (pregar), quando usado no N.T. a respeito de Cristo ou da mensagem cristã, significa sempre a pregação do evangelho, de boas-novas, a oferta do evangelho. Assim, esse seria também aqui o conteúdo da pregação: à geração desobediente dos dias de Noé, Cristo pregou o evangelho, dando-lhes a oportunidade de arrependimento. O fato de se falar justamente dessa geração de Noé não é casual. Na tradição rabínica, a geração do dilúvio era considerada particularmente má, e eternamente perdida, sem possibilidade alguma de redenção. Pedro, aqui, coloca justamente essa geração (os últimos que se esperaria que fossem alcançados pelo evangelho) como tendo tido a possibilidade de se defrontar com o evangelho de Cristo. Com isso, esta geração serve de paradigma para todos os que morreram sem ouvir a boa-nova, sem ter tido a oportunidade de arrependimento. 

Os “piores dentre os piores” foram alcançados por Cristo (incluindo assim todos os outros). E efetivamente a limitação aqui expressa seria desfeita em 4.6, onde “todos os mortos” puderam ouvir o evangelho. Não precisa estar implícito aqui nenhum tipo de universalismo, no sentido de que todos foram salvos. Tiveram a sua oportunidade de ouvir o evangelho, isso é que é dito (a decisão seria com eles).

Na seqüência da leitura dentro dessa linha, tomam-se ainda significativos os seguintes fatos: a) ao se caracterizar a geração de Noé como “desobedientes”, há uma identificação entre ela e a geração em meio à qual vivem os cristãos do primeiro século, entre os quais o autor e os leitores de 1 Pedro. A geração deles também é “desobediente à palavra” (2.8), “não obedecem ao evangelho de Deus” (4.17). 
b) assim como o grupo de Noé era uma insignificante minoria no meio da sua geração, assim também são os cristãos na Ásia Menor (vv. 20, 21); mas são eles que são salvos, pela ruptura e passagem “das trevas para a luz” representada pelo batismo (assim como foi o dilúvio para o grupo de Noé). 
c) a proclamação da vitória de Cristo ao mundo angélico poderia estar contida no v. 22; por ocasião da Sua ascensão ao céu, depois da ressurreição, Ele teria passado pelas “regiões celestes” (Ef 6.12), no “ar” (Ef 2.2), onde se encontram os poderes demoníacos, e anunciando a eles a sua derrota irreversível e o Seu senhorio sobre todo o universo, pelos méritos da Sua morte e ressurreição.

Temos, assim, uma leitura fluente, onde os dados se encaixam, e que ao mesmo tempo seria de grande significação para os leitores de 1 Pedro. Eles devem seguir “praticando o bem”, optando pelo caminho de Cristo, estando dispostos ao sofrimento injusto e até à morte, por causa do evangelho (pois à morte na carne se segue a ressurreição, vivificação no espírito, a suprema vitória). A geração em meio a qual vivem pode ser muito corrupta, mas ainda assim Deus quer que lhe seja pregado o evangelho (como Cristo fez à geração de Noé, a mais corrupta de todas). Isto acrescenta uma nota importante à teologia missionária de 1 Pedro, à dimensão missionária da presença dos cristãos na sociedade, em palavras e ações (mesmo tendo que sofrer por isso). O fato de eles serem uma pequena minoria também não precisa ser visto negativamente, pois já uma vez na história Deus salvou só uma pequena minoria. O importante é estar do lado certo, do lado da obediência ao evangelho de Cristo, o Senhor glorificado e soberano do universo.


2) Uma segunda leitura de 1 Pe 3.19-20 privilegiará desde o começo uma outra direção, constituindo-se assim numa alternativa de interpretação do mesmo texto. A primeira questão, de como se lê en hõ kai (no qual também) fica em aberto, embora, como vimos mais acima, pareça que o mais natural é referir essa expressão à última palavra do v. 18, “no espírito” (= ressuscitado). O Cristo ressurreto, então, é quem foi ao “lugar” onde estão os “espíritos em prisão”. Aqui começa a primeira grande e decisiva diferença da leitura anterior. A partir do fato de que raras vezes o termo priêuma significa (tanto no N.T. como no mundo contemporâneo) “espírito” de gente que já morreu, ou, no sentido popular, as almas dos mortos, e de que a grande maioria das vezes em que o termo se refere a seres distintos ele está ligado a criaturas angélicas (an­ jos ou demônios), fica-se com a suspeita de se priêumasin não deve ser lido assim também, aqui em 1 Pedro. Tratar-se-iam, então, de anjos aprisionados, que teriam sido desobedientes “nos dias de Noé”. Seria essa uma idéia nova, ou mesmo absurda?

A narrativa de Gn 6-9, que conta a história dos “dias de Noé”, pode não fala de anjos, nem de desobediência. Fale talvez, sim, da maldade espraiada e corrupção generalizada que havia naqueles dias na terra (Gn 6.11, 12), e que por isso Deus chegou a se arrepender de ter criado o homem (6.5). O incidente que parece ter levado a isso foi o obscuro episódio dos “filhos de Deus” que seduziram as “filhas dos homens”, sendo que destas uniões (claramente consideradas ilícitas e repudiáveis) nasceram os “gigantes” que havia na terra (6.1-4). Em repulsa, Deus decidiu destruir a raça humana pelo dilúvio.

É evidente, porém que Pedro lia essa passagem, e a história que ela narra, como homem do seu tempo. E como ela era lida no seu tempo? Já os Evangelhos dão evidência de que a história de Noé e do dilúvio era largamente usada no tempo de Jesus e dos apóstolos. Era uma característica judaica (e isso se reflete na literatura daquela época) que a crença de se estar vivendo nos últimos dias estimulava a especulação acerca dos “primeiros dias” ou primórdios da humanidade. Pois o começo da história era tido como protótipo do fim dela (assim, no Apocalipse o fim da história humana é deimagens do começo de Gênesis). Não é por acaso, então, que vamos encontrar a história de Noé e do dilúvio sendo usada por Jesus dentro dos Seus discursos escatológicos, com a declaração de que “assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do homem” (Mt 24.37-39). Em vários lugares da literatura judaica da época encontramos referências aos dias de Noé, estruturando-se toda uma tradição ao redor do núcleo básico formado pela história do Gênesis. Estas tradições e esta literatura tiveram muita influência no cristianismo primitivo desde o próprio Jesus, sendo um fator significativo na interpretação do Novo Testamento (pelo menos em partes dele). Isso podemos sentir, por exemplo, em 2 Pedro e Judas (duas cartas de especial importância para a interpretação da nossa passagem, especialmente 2 Pedro). Não seria, portanto, nenhuma novidade se aqui em 1 Pedro se fizesse uso de tais tradições a serviço da pregação do evangelho. Paulo também o fizera, anteriormente. Com efeito, temos várias indicações de que Pedro se situa dentro dessa tradição, tal como encontrada, por exemplo, nos livros de Jubileus, e especialmente 1 e 2 Enoque, livros apocalípticos dos dois séculos anteriores à era cristã. Parece que os livros de Enoque eram tidos em alta conta pelos primeiros cristãos, como o indica a referência em Judas 14 (que o cita como as demais Escrituras). É bem possível que nestes escri­ tos (bem como 2 Pe 2 e 3) tenhamos a chave para interpretar 1 Pe 3.19- 20, que parece estar se referindo a esta tradição, sem mencionar explicitamente que está citando alguma coisa (em vários lugares da carta textos do A.T. também são introduzidos assim sem mais, sem explicitação). E é muito provável que os cristãos da Ásia Menor (ou pelo menos parte deles) conhecia bem essa tradição, identificando logo o que Pedro estava dizendo, e podendo extrair das suas palavras várias significações que a nós, num primeiro momento, passam despercebidas. A história de Gênesis 6, de que falamos acima, era interpretada na apocalíptica judaica e por, pelo menos, parte dos primeiros cristãos, como de anjos que “não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio” (Jd 6); estes são os “filhos de Deus”, de Gn 6.2,4, que, assim, em desobediência, abandonaram o seu “domicílio” (para Paulo isso seria “as regiões celestes”, Ef 6.12, ou simplesmente “o ar”, Ef 2.2) e vieram à terra, seduzindo mulheres e tendo filhos com elas. Neste ponto tais anjos “pecaram” (2 Pe 2.4), e isso teve efeitos negativos na vida da humanidade da época, sendo um sintoma (ou a causa, como parte dessa tradição o explica) da maldade reinante, que apressou o julgamento de Deus. A reação de Deus, então, foi: “precipitando-os no tártaro, os entregou a abismos e trevas” (2 Pe 2.4), tendo-os assim “guardado sob trevas, em algemas eternas” (Jd 6) até o dia do juízo (2 Pe 2.4; Jd 6). Na tradição (e conforme a seqüência da narrativa em Gênesis) isso veio a ser associado com Noé e o dilúvio (a mesma associação temos em 2 Pe 2.5). O livro de 1 Enoque é o que mais detalhadamente aborda essa história (que ocupa vários capítulos dele), sendo que aqueles anjos são, em vários lugares, chamados de priêumata (a mesma palavra de 1 Pe 3.19). A tudo que vimos acima, Enoque acrescenta a ordem que ele próprio recebeu de ir a estes anjos decaídos, no lugar em que estavam aprisionados, e proclamar-lhes seu castigo. Assim, todos os detalhes da nossa passagem podem ser explicados a partir dessa tradição, que devia ser amplamente conhecida (conferindo, com isso, significação a estes versículos). A referência à longanimidade de Deus (v. 20) aponta para outro aspecto importante, que também aparece em 2 Pe 3.5-13. Ali se fala do julgamento futuro de Deus sobre a terra e a humanidade. Assim como estes já passaram por um julgamento, quando foram “afogados em água” (2 Pe 3.6, referindo-se ao dilúvio dos dias de Noé), um novo julgamento os aguarda, desta vez pelo fogo (v.7), que destruirá a terra e os homens ímpios (v. 7). Se esse julgamento ainda não ocorreu, é por causa da longanimidade de Deus (v. 9), que espera (cf. o aguarda em 1 Pe 3.20) que todos cheguem ao arrependimento (v. 9). Esta mesma expectativa do fim iminente se faz sentir aqui em 1 Pedro, domo temos visto, e isso acresce significado à referência aos dias de Noé e do dilúvio, sinalizando para o juízo de Deus, que está para começar a qualquer momento (1 Pe 4.17). O efeito da nossa passagem, então, nessa linha de leitura, é de sinalizar que este juízo de Deus já começou com a Paixão de Jesus. Ao passar pela morte e pela ressurreição, Jesus teve uma vitória completa. O diabo e as forças do mal foram derrotadas na cruz (Cl 2.15), e a morte (último inimigo a ser derrotado, 1 Co 15.26) foi derrotada na ressurreição (cf. Ap 1.18; 3.21; 5.5). Essa Sua vitória, e a derrota das forças do mal, foi o que Cristo foi anunciar aos anjos aprisionados (ou seja, o julgamento deles, para o qual haviam sido presos, 2 Pe 2.4; Jd 6). O termo keryssein (3.19) é, então, entendido no sentido neutro, de proclamação (cf. Ap 5.2, onde um anjo faz uma proclamação, em alta voz), o que mesmo não sendo usual, poderia se admitir. Este anúncio, então, é ao mesmo tempo a proclamação do julgamento de Deus que começou (iniciando no mundo angélico, que na concepção bíblica está na raiz do pecado que contaminou toda a humanidade e o mundo). Como aqueles anjos (demônios, anjos maus) eram considerados os mais corrompidos e perigosos (por isso estavam aprisionados), eles servem como paradigma para o conjunto total dos demônios, que assim é julgado por Cristo. Quanto ao “lugar” em que se encontravam aprisionados estes demônios, poderia ser algum “lugar” nas “regiões celestes” ou no “ar” (como Paulo diz em Efésios), por onde Jesus teria passado na Sua ascensão ao céu (sendo que 3.22 repete que, nesta ocasião, “foram-Lhe submetidos” anjos, potestades e poderes, todas as forças espirituais). E de fato, a maior parte dos escritos em que encontramos a tradição dos anjos aprisionados no tempo de Noé, localiza a sua prisão nas esferas ce￾lestes, no ar (na região que separa Deus dos homens). Mas há uma outra tradição, que vamos encontrar em Ap 9, que parece situar um agrupamento de anjos num lugar subterrâneo, fechado com chave, que é chamado “o poço do abismo” (9.1). São descritos como “gafanhotos”, mas é evidente pela descrição de 9.7-10 que eram mais que isso; além disso, o seu chefe é chamado de “o anjo do abismo” (9.11). Parece que é o mesmo lugar em que, mais adiante, o próprio Satánas é preso (Ap 20.1- 3). Essa tradição, então, se situaria na linha da de 1 Pedro, prevendo um período no final da história em que estes anjos, julgados por Cristo, saem à terra, onde serão finalmente destruídos (Ap 19.19-21). O mesmo ocorre com o príncipe dos demônios, Satanás, que, já julgado na cruz, também recebe a proclamação deste julgamento e é expulso do céu, atirado à terra (Ap 12.9, 12; Lc 10.18), para ser finalmente castigado (Ap 20.10). Assim, dentro desta última tradição, Cristo poderia ter “descido às regiões subterrâneas” para proclamar a Sua vitória e o juízo aos demônios lá encarcerados, e depois ir ao céu, fazendo no camcom as forças espirituais das “regiões do ar”.

Assim, a tônica nessa passagem seria que as forças espirituais do mal foram julgadas por Cristo na morte e na ressurreição, e que Ele próprio proclamou-lhes a Sua vitória, ficando elas submetidas a Ele desde então, como soberano celeste, que governa à destra de Deus. A mensagem seria, assim, a mesma do quadro pintado em Cl 2.15, de uma procissão triunfal em que Cristo expõe “os principados e potestades” derrotados na cruz. Para os cristãos da Ásia Menor, aos quais 1 Pedro foi escrita, certamente esta era uma mensagem de tremenda significação. A Ásia Menor era conhecida como uma região em que grassava todo tipo de artes mágicas e envolvimentos com forças ocultas. Como exemplo, pode-se ver At 19.19, que menciona os que praticavam artes mágicas em Efeso, antes da sua conversão a Cristo, e como queimaram os livros de magia. Em Pérgamo, segundo Ap 2.13, encontrava-se “o trono de Satanás”; e em Tiatira muitos se gabavam de conhecer “as cousas profundas de Satanás” (Ap 2.24). Pelo menos em parte, a oposição que se levantava contra os cristãos a quem foi escrita 1 Pedro devia ter sido interpretada como se devendo, em última análise, a essas forças do mal que se opõem a Cristo e aos cristãos. As declarações de Paulo aos efésios sobre as “ciladas do diabo” que eles teriam de enfrentar (Ef 6.11), os “dardos inflamados do maligno” que contra eles eram lançados (Ef 6.16), lembravam que “a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal” (Ef 6.12), e certamente seriam relevantes para os cristãos de 1 Pedro, que sabem que “o diabo, vosso adversário, anda em derredor, procurando alguém para devorar” (1 Pe 5.8). Numa situação como essa, o anúncio da vitória de Cristo sobre todas as forças do mal, na Sua morte e ressurreição (vitória já proclamada no mundo demoníaco), certamente é muito encorajador. Estas forças angélicas haviam se tornado objeto de culto.

Aqui, então, são proclamadas a sua derrota e a superioridade incontestável de Cristo sobre todas elas. Estar do lado de Cristo é estar do lado do Senhor do universo, do lado da vitória, da vida, sem se deixar intimidar por quaisquer forças malignas que se levantem contra aqueles que “em Cristo” (3.16) “passaram das trevas para a luz” (2.9). É até natural essa última reação enfuriada das forças do mal, mas este é o seu último estertor, antes de serem finalmente destruídas. E aqueles que, no meio da sociedade, se levantam contra os cristãos, são (sem saber) instrumentos dessas forças de oposição à luz do evangelho. Esta segunda leitura de 1 Pe 3.19-20a parece-nos ser a que melhor sintoniza com os dados e, principalmente, com a carta como um todo, da qual ela ganha o seu sentido maior, e para a qual também contribui ricamente. E, por isso, a leitura que privilegiamos, sem com isso eliminar a possibilidade da primeira leitura que analisamos, que deve permanecer. As forças e as possibilidades de cada uma delas foram expostas, bem como as diferentes perspectivas que tomam do texto e tentam traduzir num relato coerente. Devemos mencionar ainda, por fim (como já notamos acima), as várias interpretações “mistas” que modernamente têm sido apresentadas, tentando casar elementos de ambas as leituras que analisamos. O resultado tem sido um expressivo leque de significações que, por um lado, dificulta a interpretação da passagem e, por outro, a enriquece.

Foi nos dias de Noé que aqueles “espíritos” foram desobedientes, enquanto se preparava a arca, quer dizer, enquanto se ia cons­ truindo o meio de salvação para Noé e sua família. Sobre a arca, ver Gn 6.14-16. Em linha com a interpretação tipológica que encontramos no v. 21, muitos têm visto na arca um tipo ou prefiguração da igreja, tal como o conhecido símbolo do barco (igreja) que singra pelo mar (dos povos), em meio a tempestades. Mas isto não está no texto, e parece claro que os que querem enxergá-lo aí vêem uma imagem de igreja (institucional, depositária da salvação) que não parece ser a mesma que ainda encontramos em 1 Pedro. O melhor é deixar a arca como simples referência histórica, sem equivalente no esquema tipológico.

Na qual poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos exprime algo muito significativo: uma pequena minoria, sem importância no cenário maior, foi salva, enquanto o grande restante pereceu no dilúvio. O número oito segue literalmente a história de Gênesis (6.18), que coloca na arca Noé e seus três filhos (4) mais as mulheres dos quatro (8). Mas a mensagem para os cristãos da Ásia Menor seria inconfundível: o fato de serem uma minoria desprezada e marginalizada na sua sociedade (aos olhos humanos) não os impedia de ser o grupo dos salvos, dos construtores da nova sociedade de Deus, depois do julgamento que Ele estava por trazer. Este 'poucos' é significativo também no N.T. Vários ditos de Jesus referem-se ao pequeno número dos que são salvos (cf. Mt 22.14, “poucos são escolhidos”; Mt 7.14, “estreita é a porta, e são poucos os que acertam com ela”). Foram salvos é diesõthêsan, que significa “trazer em segurança” {Léxico), literalmente: “foram salvos através”. Através da água indica este “através do que” foram salvos. A repetição da preposição dia (através) provavelmente não tem significado maior; água é o dilúvio, a enxurrada que lavou a terra e destruiu a humanidade nos dias de Noé, representando o juízo de Deus sobre aquela geração corrompida.