UMA ANÁLISE DAS FIGURAS DE PODER EM HESIODO

 

___________________________________________________________________________________________________________________________SOUSA, SOUSA.J. Maciel Silva de. Uma Análise das Figuras de Poder em Hesíodo.

 

RESUMO

 A pesquisa aqui apresentada debruçou-se, num primeiro momento, sobre a significação do mito na cultura grega arcaica; e num segundo momento na análise das figuras de poder presentes na Teogonia de Hesíodo: Urano, Crono e Zeus. Figuras de poder estas que revelam, em suas distinções e relações, não somente a concepção cosmológica de Hesíodo, e da própria cultura em que estava inserido, mas também os modelos por excelência de exercício de poder entre os homens, portanto no cosmos político. 

Palavras-chaves: Mito, Cosmogonia, Cultura grega arcaica, Hesíodo,Urano, Crono, Zeus.

 

SUMÁRIO

Introdução

CAPITULO I

As conceituações de Mito

CAPITULO II

As figuras de poder em Hesíodo: Urano, Crono e Zeus

2.1. Urano: Origem e Modulação de poder

2.2. Crono: Origem e Modulação de poder

2.3. Zeus: Origem e Modulação de poder

CONSIDERAÇÕES FINAIS

BIBLIOGRAFIA

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INTRODUÇÃO                                                                                                                               

O objeto de estudo desta pesquisa é o poder, tal como é compreendido miticamente na Teogonia de Hesíodo. Neste mito, três deuses (Urano, Crono e Zeus) figuram como diferentes manifestações de poder. Tal diversidade corresponde às distintas qualidades de ser (timé) de cada um ser desses deuses, ainda que todos tenham o poder como seu quinhão (môira), sua parte no todo do cosmos.

É importante lembrarmos que, na Grécia arcaica, os mitos são as falas que, por excelência, reúnem e disponibilizam o saberes. Saberes exemplares, sagrados, desde os quais as ações humanas ganham referencias. Urano, Crono e Zeus, por serem distintas formas de manifestação do poder, oferecem aos homens parâmetros para o seu próprio exercício do poder. 

O objetivo desse estudo é, portanto, compreender essas formas de poder na Grécia arcaica, desde as quais os referentes culturais da civilização ocidental começaram a ser erigidos.

Para tratar dessa questão, dialogamos sobretudo com os estudiosos Mircea Eliade, Jaa Torrano, Marcel Detienne e Junito Brandão. Sendo que no primeiro capítulo são estabelecidas algumas das características do mito na cultura grega arcaica. E no segundo capítulo são observadas as peculiaridades distintivas das três formas de manifestação do poder: Urano, Crono e Zeus. Os três deuses serão observados no contexto de suas respectivas genealogias e compreendidos, em suas manifestações de poder, a partir de seus governos nas três fases cósmicas delineadas na Teogonia de Hesíodo.

 

CAPÍTULO I

 

CONCEITUAÇÃO DE MITO

Definir o mito não é uma tarefa muito fácil, mas podemos partir do sentido do mito para os antigos povos do mediterrâneo para conceituá-lo. O mito constitui uma realidade antropológica fundamental, pois representa um conjunto de relatos sagrados que narram a origem do universo, o surgimento e as façanhas das entidades divinas e a condição de ser dos homens, explicando quais são as atividades que são próprias a cada qual destas manifestações. 

Cada cultura mítica revela em seus mitos os aspectos reais de suas experiências. Tal experiência é que mostra o valor simbólico e real que esses relatos sagrados têm. Essas narrativas míticas são mantidas oralmente como uma significativa colcha de retalhos de várias experiências. Ou seja, temos em cada cultura a explicitação narrativa do modo como um povo ou uma civilização identifica, interpreta e entende a existência da totalidade das manifestações. Assim, o mito se torna um relato exemplar, presente em todas as culturas e, principalmente, nas sociedades ágrafas, como mostra Mircea Eliade:

 

Todas as grandes religiões mediterrâneas e asiáticas possuem mitologias. (ELIADE, 1989, p.10)

 

No período neolítico, datado por volta do ano 8000 a 4000 a.C., é efetivada a primeira revolução da historia da humanidade. Essa revolução é conhecida como Revolução Verde ou Agropastoril. Uma das fortes características desta revolução é o surgimento do pensamento mítico na cultura primitiva.  O mito, na cultura primitiva, é reconhecido e homologado como narrações sagradas que revelam as ações dos deuses, suas criações, suas vontades e a explicação de tudo que existe.  Esses mitos eram interpretados pelos sacerdotes, por meio da prática dos ritos e proclamados pelos poetas da época.  Por isso, para Eliade:

 

[...] é preferível começar por estudar o mito nas sociedades arcaicas e tradicionais, reservando para análise ulterior às mitologias dos povos que desempenharam um papel importante na história. Isso porque, apesar das modificações sofridas no decorrer dos tempos, os mitos dos “primitivos” ainda refletem um estado primordial. Trata-se, ademais, de sociedades onde os mitos estão vivos, onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a atividade do homem. (ELIADE, 1989, p.10)

 

Os mitos primitivos das antigas sociedades têm os deuses como princípios cosmogônicos. Desde os tempos mais remotos até a Grécia arcaica, os mitos configuram a propriedade de ser e o lugar do homem neste mundo pleno de deuses. Neste sentido, o mito tem uma relação muito estrita com a religião, posto haver entre deuses e homens um liame a ser sempre renovado. Lembremos que os deuses não são apenas entes extraordinários que os homens têm como exemplos, mas são constituíntes da própria realidade que cotidianamente experimentam e com a qual têm de lidar. Sendo assim, os deuses figuram como entes sagrados que merecem rituais como forma de culto, veneração e respeito. São os deuses que explicam e ensinam aos homens a criação do mundo e a vida em sociedade como deve ser.

É fato, porém, que os entes sobrenaturais são reflexos da cultura, e não o contrário. Mas ainda que os deuses sejam expressões culturais de um dado povo, não são vistos como o mesmo que os homens. Estes são considerados ordinários em seu poder de atuação no cosmos. Enquanto que os deuses são ditos, por exemplo na cultura grega arcaica, os imortais; enquanto os homens são os mortais, aqueles cujo poder reconhece limites insuperáveis. Donde a idéia que o homem arcaico tem dos entes sobrenaturais o faz reconhecer-se humano e não divino. É este parâmetro que configura seu pensamento e dá sentido para suas atividades e formas de vida.

 

“A cosmogonia constitui o modelo exemplar de toda situação criadora: tudo que o homem faz repete, de certa forma, o “feito” por excelência, o gesto arquetípico do Deus criador: a criação do Mundo.” (TORRANO, 2003, p. 34)

 

Na Grécia arcaica temos ótimas referências do mito como aspecto predominante da cultura. Nessa sociedade, o mito revela o sentido da vida e estabelece tais referidos parâmetros para a compreensão da realidade e de tudo que está implicado na constituição do mundo.

 

A principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria. (ELIADE, 1989, p. 13).

 

O mito pertencente à cultura primitiva é a tentativa de explicação e de compreensão da realidade. Por isso figuram como as explicações exemplares acerca da realidade, das quais surgem os ritos, as práticas mediante as quais os mitos são memorizados por meio de atividades exercitadas coletivamente. Através dos mitos e dos ritos é que o homem primitivo constrói e armazena os saberes e os valores culturais.

 

O mito lhe ensina as “histórias” primordiais que o constituíram existencialmente, e tudo o que se relaciona com a sua existência e com o ser próprio modo de existir no Cosmo o afeta diretamente. (ELIADE, 1989, p. 16)

 

Lembremos que a Grécia arcaica, por exemplo e em específico, é uma cultura predominantemente ágrafa até por volta do século VI a.C.. Donde, a importância daqueles homens que, por excelência e função, assegurem a conservação dos mitos. Tais homens são tidos como poetas (aedos) – aqueles que seriam inspirados pelas deusas Musas a terem o poder de memorizar e, então, de sempre disponibilizar o conhecimento destas falas explicativas.

 

O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musa). (TORRANO, 2003, p. 16)

 

Tendo presente tal estatuto de importância do mito em uma cultura primitiva, cabe-nos ter esclarecida a especificidade do pensamento que funda e é manifesto na fala mítica. Eliade sintetiza:

 

[...] o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. [...] Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo pelo que fez nos tempos prestigiosos dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (ELIADE, 1989, p. 11)

 

O Mito é, em suma, uma narrativa poética tradicional que tem um caráter exemplar e religioso, e cuja finalidade é explicar a constituição do mundo e os acontecimentos da vida humana. É, portanto, uma explicação de caráter cosmogônico, que fundamenta o mundo e o torna significativo para os homens. Por isso, os  personagens míticos são entes sobrenaturais, ou seja, os deuses, aqueles cujo poder é extraordinário em relação aos homens, figurando como modelos delimitadores do poder de ser dos mortais. Como dito por Eliade:

 

 “Toda história mítica que relata a origem de alguma coisa pressupõe e prolonga a cosmogonia. Do ponto de vista da estrutura, os mitos de origem homolongam-se ao mito cosmogônico. Sendo a criação do Mundo a criação por excelência, a cosmogonia torna-se o modelo exemplar para toda espécie de “criação”. Isso não quer dizer que o mito de origem imite ou copie o modelo cosmogônico, pois não se trata de uma reflexão concertada e sistemática. Mas todo novo aparecimento – um animal, uma planta, uma instituição – implica a existência de um Mundo.” (ELIADE, 1989, p. 25)

“O mito, em si mesmo, não é uma garantia de “bondade” nem de moral. Sua função consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma significação ao Mundo e à existência humana.” (ELIADE, 1989, p.128)

 

De certo, o mito está presente nas raízes de cada cultura, como se pode perceber na história da Grecia arcaica. A existência de vários mitos e de variações de cada qual evidenciam as várias gerações que os contaram e recontaram. Como ressalta Eliade: “o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.” (ELIADE, 1989, p. 11)

Nesse contexto, temos grandes poetas que contribuíram para a variante sobrevivência dos mitos. Na Grécia arcaica, Homero e Hesíodo são dois destes significativos poetas que guardaram renovadamente a cultura de seu povo. Na Ilíada de Homero temos a narrativa das façanhas dos deuses, fazendo magníficas alusões a cultura micênica e aos entes sobrenaturias mais significativos de seu tempo e região. Na Odisséia é narrada toda problemática política entre gregos e troianos, em paralelo às relações existentes entre os homens e os deuses. Hesíodo, por sua vez, apresenta-nos nos Trabalhos e os dias a narrativa mítica que explica a razão de ser da disinção entre homens (os mortais que têm de cultivar a terra para sobreviverem) e deuses (os imortais que têm sacrifícios em seu louvor). Já na Teogonia, nos dá a saber a concepção cosmogônica de seu tempo e cultura. Escutamos em Torrano:

Os estudiosos designaram Arcaica a época em cujos umbrais Hesíodo viveu e compôs seus cantos. Na Grécia, os séculos VIII ou começo do século. VII a.C. testemunharam a germinação ou transplante de instituições sociais cujo florescimento ulterior transmutaria revolucionariamente as condições, fundamentos e pontos de referências da existência humana: a polis, o alfabeto e a moeda.  No entanto, a poesia de Hesíodo é anterior ao florescimento dessas três invenções catastróficas e, ainda que já tenha sido escrita ao ser composta, toda ela se orienta e vigora dentro das dimensões anteriores às condições paulatinamente trazidas por essas três. A polis e a moeda estão ausentes ou só pressentidas no poema a que, por sua envergadura social, agrícola e mercantil, mais elas interessariam: Os trabalhos e os dias. E o uso do alfabeto e suas conseqüências (cujo caráter deletério para a Memória Sócrates acusa Fedro) estão ausentes e afastados da concepção de poesia que é exposta na Teogonia (no hino às Musas, vv. 1 – 115) e que subjacentemente fundamenta tanto a elaboração como a devida fruição do poema. (TORRANO, 2003, p.15)

 

É também nesta narrativa mítica que é a Teogonia que Hesíodo, inspirado pelas artes das nobres Musas, nos apresenta sua experiência poética com o sagrado.

 

Elas um dia a Hesíodo ensinaram o belo canto

Quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.

Esta palavra primeiro dissera-me as Deusas

Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:

“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,

 sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos

e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.

(HESÍODO, 2003, vv.25, p. 107).

 

O poeta, então, é consagrado, inspirado pelas Musas a proferir seus cantos, seus mitos. A teogonia é uma narrativa mítica que tem por finalidade dar a ver aos homens a gênese do cosmos como gênese dos deuses, dos princípios ontológicos (arché) que constituem a realidade. A Teogonia narra como o cosmos é organizado dentro de uma teia de relações entre estes princípios de ser sempre vivos, os quais tem domínios de poder e exercício (môira) e qualidades de ser (timé) que os distingue e fazem do cosmos este mundo que os homens experimentam. Conforme Torrano:

 

Assim é arcaica a poesia hesiódoca: ligada formalmente à épica homérica (hexâmetros, estilo próprio à composição oral), ligada prenuncial e prefiguradoramente às duas mais importantes correntes culturais ulteriores a ela (a dos pensadores e a da poesia lírica), expondo uma concepção característicamente ágrafo-oral de poesia e expondo-se rigorosamente segundo essa concepção. (TORRANO, 2003, p. 19)

 

A cosmogonia teogônica de Hesíodo configura o pensamento mítico na relação do homem com os deuses, e na relação homem e mundo. A força da poesia hesiódica está na manifestação das Musas como “força da palavra”, como arché da narrativa poética. A palavra cantada edifica a transmissão do mito capaz de revelar aos homens os fundamentais saberes acerca da totalidade das manifestações que perfazem o mundo.

Por meio do poder da palavra que são as Musas, Hesíodo narra como os deuses se manifestam na realidade experimentada pelos homens, estabelecendo a relação do profano com o sagrado. Neste sentido é que a narrativa mítica é reveladora e guarda o ser que se faz presente na fala do poeta, no ato de poetizar, de dizer reveladoramente a realidade.

 

[...] o que aqui, no caso de Hesíodo, é o mais real, são especificamente as Palavras. E as Palavras falam do que é real e do que não é real, apresentando-os quando e como elas querem (“ se queremos...” v.28). As palavras falam tudo, elas apresentam o mundo. Sendo as palavras por excelência o mais real e constituindo o poder delas especificamente num poder de presentificação, nas Palavras é que reside o ser. (TORRANO, 2003, p. 30)

 

Enquanto experimentada como múltiplas forças numinosas, a linguagem é uma estrutura que encerra para o homem não só todos os eventos e todas as relações possíveis entre eles, mas ainda a própria consciência que o homem tem de si e do mundo. (TORRANO, 2003, p. 30)

 

A narrativa poética é a dança das Musas e a possibilidade de falar com autoridade (Zeus é pai das Musas) acerca da origem dos deuses e do universo, assim como da vida dos homens. É esta a palavra que tem como aliada a memória (Mnemosyne é a mãe das Musas) que guarda e nos faz novamente lembrar a importância dos eventos primordiais e extraordinários para a constituição do mundo e da vida humana. Como dito por Torrano:

 

“Em Hesíodo as palavras cantadas não são uma constelação de signos abstratos e vazios, mas forças divinas nascidas de Zeus Pai e da Memória, que sabiamente fazem o mundo, os Deuses e os fatos esplenderem na luz da Presença, e implantam, na vida dos homens, um sentido que, com vigor do eterno, centra-a e ultrapassa-a.” (TORRANO, 2003, p. 20)

 

“Esta extrema importância que se confere ao poeta e à poesia repousa em parte no fato de o poeta ser, dentro das perspectivas de uma cultura oral, um cultor da Memória (no sentido religioso e no da eficiência prática), e em parte no imenso poder que os povos ágrafos sentem na força da palavra e que a adoção do alfabeto solapou até quase destruir. Este poder da força da palavra se instaura por uma relação quase mágica entre o nome e a coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presença da própria coisa.” (TORRANO, 2003, p. 17)

 

Assim, para os povos da cultura arcaica, o mito encerra a compreensão do mundo e das coisas existentes. Pelo mito, tal cultura se compreende, assim como ao universo e a ordem da existência das coisas. Sendo assim, o mito figura como a instância por excelência da verdade, do incessante e inesgotável desvelamento de tudo o que é (alétheia). Está sempre direcionado à realidade como fator de existência, ou seja, fala da pedra e esta está realmente aqui, fala da morte e esta também se apresenta entre os homens; e aponta para a diversidade das manifestações (physis) que estão entorno do homem, podendo ser percebidas cotidianamente. Portanto, corrobora Eliade:

O mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma “história verdadeira”, porque sempre se refere a realidades. O mito cosmogônico é “verdadeiro” porque a existência do Mundo aí está para prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente “verdadeiro” porque é provado pela mortalidade do homem, e assim por diante. (ELIADE, 1989 p. 12)

Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje – um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras. (ELIADE, 1899, p. 16)

 

 O mito na Grécia arcaica constiui uma visão de mundo que é passada de tempos em tempos através destas narrativas. Essas narrativas são sagradas e respeitadas pelo círculo de cultura. O poeta tem a missão de levar ao povo o conhecimento dos mitos sagrados, e manisfestar a vontade dos deuses por meio das narrativas reveladoras por excelência. Neste sentido, o mito não pertence a um único homem ou povo, mas ele é o resultado da crença de vários homens e de vários povos que se preocuparam em erigir e transmitir a visão cosmogônica como princípio de tudo e sentido para entender a vida.

Por parte de uma tradição cultural, o mito configura assim a própria visão de mundo dos indivíduos, a sua maneira mesmo de vivenciar esta realidade. Nesse sentido, o pensamento mítico pressupõe a adesão, a aceitação dos indivíduos, na medida em que constitui as formas de sua experiência do real. O mito não se justifica, não se fundamenta, portanto, nem se presta ao questionamento, à crítica ou à correção. Não há discussão do mito porque ele constitui a própria visão de mundo dos indivíduos pertencentes a uma determinada sociedade, tendo portanto um caráter global que exclui outras perspectivas a partir das quais ele poderia ser discutido. Ou o individuo é parte dessa cultura e aceita o mito como visão de mundo, ou não pertence a ele e, nesse caso, o mito não faz sentido para ele, não lhe diz nada. A possibilidade de discussão do mito, de distanciamento em relação à visão de mundo que apresenta, supõe já uma transformação da prórpia sociedade e, portanto, do mito como forma reconhecida de se ver o mundo nessa sociedade. (MARCONDES, 2008, p.20)

O mito, como narrativa reveladora e sagrada, aponta para o sentido da vida e, portanto, constitui uma visão de mundo de uma dada coletividade histórica. Assim, o mito configura-se e funciona como mediação simbólica entre o sagrado e o profano, condição necessária à ordem do mundo e às relações entre os homens e destes com as demais manifestações. E por isso é uma narrativa sagrada, religiosa no sentido de estabelecer liames significativos entre a totalidades dos entes que perfazem o cosmos.

 

CAPÍTULO II

 

AS MODULAÇÕES DE PODER EM HESÍODO

 

2.1. Urano: Origem e Modulação de Poder

Na gênese do poema e inspirado pelas Musas, Hesíodo proclama a genealogia dos deuses. Os primeiros versos, após o hino proêmio feito às Musas, narra a origem dos deuses Primordiais. A origem da totalidade do cosmos é constituída a partir da quádrupla gênese de Caso, Terra, Tártaro e Eros.

Em princípio surge o Caos. Caos é o abismo insondável e o vazio primordial. O Caos gera por cissiparidade, ou seja, não precisa de outro ser para gerar outro ser; há uma bipartição de si como processo de criação de outro (esquizogênese, cissiparidade). Assim, também, a Terra surgida em seqüência ao Caos, desde seu amplo seio, gera Urano, o Céu, e os primeiros deuses, os Titãs. A Terra é o solo firme que se estende como a sede para os deuses todos. Depois de surgida a Terra, advém Tártaro nevoento no mais profundo do solo. E, então, Eros, o mais belo entre os imortais, com tal força de atração, que é capaz de reunir em amor os imortais e os mortais. Eros, assim, em paralelo, ainda que em distinção a Caos, será uma força de criação, de geração, representando a união dos deuses e dos homens.  Como profere Hesíodo:

 

Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também

Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,

dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,

e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,

e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,

solta membros, dos Deuses todos e dos homens todos

ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.

Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.

Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,

Gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.

Terra primeiro pariu igual a si mesma

Céu constelado, para cercá-la toda ao redor

e ser aos deuses venturosos sede irresvalável sempre.

Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas

ninfas que moram nas montanhas frondosas.

E pariu infecunda planície impetuosa de ondas

o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu

do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos

e Coios e Crios e Hipérion e Jápeto

e Téia e Réia e Têmis e Memória      

e Febe de áurea coroa e Tétys amorosa.

E após com ótimas armas Crono de curvo pensar,

filho o mais terrível: detestou o florescente pai.

(HESIODO, 2003, p.111-113)

 

Hesíodo apresenta, mediante sua experiência numinosa de contato com as Musas, a genealogia dos deuses – teogonia. Inspirado pelo poder de narrar conferido pelas deusas Musas, Hesíodo narra a gênese da primeira linhagem do Caos e a geração dos Titãs desde a união amorosa entre a Terra, Gaia, e o Céu, Urano. Em seguida é cantado o nascimento dos Ciclopes, seres símeles com um único olho na testa e os Hecatônquiros, seres com força brutal de cujo tronco brotam cem braços e cinqüenta cabeças. Aqui se encerra a primeira teofania. Ressaltando-se que, na concepção mítica hesiódica, a descendência é uma explicação do Ser e da natureza da divindade genitora. Portanto, as relações ontológicas se dão desde três linhagens genealógicas: a do Caos, que somente gera por esquizogênese; a do Céu e do Mar, que também geram por união amorosa.  

A deusa Terra tem como ponto de oposição Caos bem como o Tártaro nevoento. Tal oposição da Terra ao Caos se deve ao fato desta possuir formas distintas, separada e precisa, como assevera Vernant. Pois, Gaia é o chão do mundo, e a ela se atribui a firmeza, a estabilidade, o lugar onde os deuses e os homens e todas as espécies de vida podem andar com segurança.

 

‘No fundo do chão’ significa “no âmago da Terra”, mas um âmago onde a Terra não é mais Terra e sim seu contrário: no âmago do Ser encontramos sua gemelaridade com o Não-Ser. (TORRANO, 2003, p. 45)

A Terra, que surgiu do Abismo, liga-se a ele em suas profundezas. (VERNANT, 2008, p.18)

 

A outra oposição já referida é entre Eros e Caos. Eros, ao contrário de Caos, representa aquilo que atrai os opostos; a união dos deuses por meio do amor.  Na influência de Eros, os deuses unem e se fortalecem no ato de criação: é do amor de Noite e Érebos, por exemplo, que nasceram Éter e Dia.  Entretanto, a ação de Eros é mais limitada em comparação à do Caos, uma vez que Caos gera de si, enquanto Eros faz outros gerarem entre si.

 

Eros é a potência que preside à procriação por união amorosa, Kháos é a potência que preside à procriação por cissiparidade. (TORRANO, 2003, p. 44).

 

Como dissemos a pouco, também por cissiparidade a Terra pariu igual a si mesma, antes de tudo, Urano, o Céu constelado. Todo força, a qualidade de ser (timé) de Urano consiste em cobrir totalmente a Terra, num ato amoroso e gerativo. Esta é a sua parte, o seu quinhão ontológico (môira) no cosmos.

 

Ele está deitado, estendido sobre quem a gerou. O Céu cobre completamente a Terra. [...] Urano é o Céu, assim como Gaia é a Terra. Na presença de Urano, Amor age de outro modo. Nem gaia nem Urano produzem sozinhos o que cada um tem dentro de si, mas da conjunção dessas duas forças nascem diferentes de uma e outra. (VERNANT, 2008, p. 20)

 

A Terra recebe de Urano a chuva, que é uma das formas de sua hierofania (da manifestação de si em sua força de ser). Chuva que a fecunda e lhe faz florescer criaturas novas e belas.  Dessa união surgem as criaturas chamadas de Titãs, que representam as forças da natureza. O punho dos Titãs pode sobrepujar quaisquer entes que não façam frente ao vigor de seu ser, posto serem a natureza primordial. Os deuses primordiais vão surgindo e ocupando espaço e tempo pelo universo na unidade do Céu com a Terra.  Assim, diz Brandão:

 

Urano, em grego (Uranos). Não mais se aceitando a aproximação com Veruna, talvez se pudesse cotejar o vocábulo grego com sânscrito varsa-, “chuva”, donde Urano seria “o que chove”, fecundando Geia. É a personificação do Céu, enquanto elemento fundador de Geia. Urano (Céu) era concebido como um hemisfério, a abóbada celeste, que cobria a Terra, concebida como esférica, mas achatada: entre ambos se interpunham o Éter e o Ar e, nas profundezas de Geia, localiza-se o Tártaro, bem abaixo do próprio Hades, como já se mencionou. Mais adiante se falará da mutilação de urano por Crono. Do ponto de vista simbólico, o deus do Céu traduz uma proliferação criadora desmedida e indiferente, cuja abundancia acaba por destruir o que foi gerado. Urano caracteriza assim a fase inicial de qualquer ação com alternância de exaltação e depressão, de impulso e queda, de vida e morte dos projetos.

Deus celeste indo-europeu, símbolo da abundância, o deus do Céu é representado pelo touro. Sua fertilidade, todavia, é perigosa, além de inútil. A mutilação de urano por Crono põe cobro a uma odiosa e estéril fecundidade e faz Afrodite, nascida do esperma ensangüentado do deus, a qual introduz no mundo a ordem e a fixação das espécies, impossibilitando qualquer procriação desordenada e nociva. André Virel, com base na mitologia grega, caracterizou as três fases da evolução criadora: urano (sem equivalente no mito latino) é a efervescência caótica e indiferenciada, chamada cosmogonia; Crono (Saturno) é o podador, corta e separa. Com um golpe de foice ceifa os órgãos de seu pai, pondo fim a secreções indefinidas. Ele é o tempo da paralisação. É o regulador que bloqueia qualquer criação no universo. É o tempo simétrico, o tempo da identidade. Sua fase denomina-se esquizogenia. O reino de Zeus (Júpiter) se caracteriza por uma nova partida, organizada e ordenada e não mais caótica e anárquica: a esta fase A. Virel chama autogenia. Após a descontinuidade, a criação e a evolução retomam seu caminho. (BRANDAO, 1991, p. 191,192)

 

Urano é o pai dos deuses primordiais e uma das potestades que constitui a cosmogonia na sua origem. Esta figura de poder aparece para envolver a Terra nas suas extensões, e exercer seu poder de fecundar a Terra. O Céu e a Terra estão juntos, agregados numa relação de incessante geração.   

Da união de Urano a Gaia surgem os novos personagens divinos como: Oceano, Coiós, Crios, Hipérion, Jápeto, Téia, Réia, Têmis, Memória, Febe, Tétis e Crono. Ainda este ciclo continua com os Ciclopes, Trovão, Relâmpago, Arges, Cotos, Briareu e Giges.  Segundo Torrano, esse momento de fertilidade de Urano e Gaia, constitui a primeira fase cósmica e culminará na primeira partilha do mundo. O que é o mesmo que dizer na partilha das qualidades de ser, das honras (time) e das partes, dos quinhões (môira) de cada um dos imortais.

 

A primeira fase está nas proximidades das Origens. Num universo ainda informe, prevalece a força fecundante do Céu, que, ávido de amor e com inesgotável desejo de cópula, freqüenta como macho a Terra de amplo seio. Nesta fase original, o Céu desempenha as mesmas funções que, enquanto Céu, sempre terá: 1) cobrir toda a Terra ao redor, e 2) ser para os Deuses venturosos assento seguro (cf.vv. 127-8). Cobrir a Terra e fecundá-la hierogamicamente através da chuva sêmen; ser o assento dos Deuses é dar-lhes origens e fundamento, fundar-lhes a existência. Nesta primeira fase a Proximidade das Origens é tão forte e impõe-se tanto em sua unificante força de coesão, que ambas as funções do Céu se desempenham no único e mesmo movimento da fecundação: as mesmas hierogamias que fecundam a Terra essentam a existência dos Deuses de modo irresvalável. A Terra está constantemente prenhe, o Céu está em constante desempenho de ambas as suas funções, que, pela extrema vizinhança das Origens, se cumprem numa só ação extremamente cheia de potência vital. (TORRANO, 2003, p.53,54)

 

Esse episódio, segundo Hesíodo, marca o tempo primordial das primeiras potestades. Momento caracterizado pelas forças engendrosas dos deuses, numa ação hierogâmica, fecunda e procriativa. Neste mesmo sentido, a ação de Urano, o seu manifestar-se, o seu exercício de poder apresenta a potência vital de poder copular e, assim, manter a Terra grávida. Na perspectiva ontológica (compreendida como arché), este tempo primordial, e em específico o poder de ser de Urano, constitui-se como ponto de partida da genealogia e da ordem do mundo. Os deuses que surgem da dessa união de Urano e Gaia manifestam, cada qual, a derivação do imenso poder, da incessante potência destes dois primeiros deuses.

No presente momento desta primeira fase cósmica, Urano é uma força de origem e de originar: vital e fecundante, irrefreável e inquestionável, que reina sobre o cosmos. Urano é o poder de fazer irromper que não consegue sossegar-se, aquietar-se, limitar-se. A tudo e a todos os deuses governa, desde esse poder gerativo e desordenado, inclusive a Terra assim quer assim conduzir. Caso não lhe obedeçam, torna-se despótico, igualmente como sempre irrefreável na manifestação de seu poder de a tudo submeter ao seu próprio ejacular-se.  

Desmedido e sem limite nas suas ações, goza o privilégio de ser o que é no tempo e espaço infinito (aión). De tal modo que o tempo e o espaço passam a ser ilimitados junto a esse deus. Tal poder é a manifestação mesma da sua timé e sua môira. Está sempre se deitando em chuva em cima da Terra, fecundando-a e deixando-a inchada, seja com os filhos a serem gerados, seja com os filhos já gerados que novamente os faz presos no seu ventre por haverem desafiado-lhe o poder de assim ser. Urano é o excesso por excelência.  Assim diz Torrano:

 

Para Hesíodo, o mundo é um conjunto não-enumerável de teofanias, séries sucessivas e simultâneas de presenças divinas. Cada presença é um pólo de forças e de atributos, que instaura e determina a área temporal-espacial de sua manifestação. [...] a presença do Deus é a força suprema e original, originadora de si mesma e de tudo o que a ele concerne. O Deus não é senão a sua superabundante presença e está todo ele presente em todas as suas manifestações, já que presença não é senão manifestação, negação do esquecimento, verdade, a-létheia. (TORRANO, 2003, p. 51)

Hesíodo, no seu poema, mostra que Urano detestava os filhos se estes o contrariassem, e os castigavam na ausência da luz, no profundo Tártaro. Um deus irrepreensível que se alegrava com seus próprios intentos e reinava com desmesura pelo o universo. 

Rendida à insatisfação, com as maléficas atitudes do Céu, a Terra oferece aos filhos uma foice de aço tirada do seu próprio seio, para dar um fim às tramas e façanhas desmedidas de Urano. Os filhos não aceitaram de antemão tal tarefa, salvo o titã mais jovem conhecido como Crono de curvo pensar. Este deus aceita e executa o desejo de sua mãe de por fim ao poder desmedido do pai. Esse episódio, segundo Torrano, constitui-se como o primeiro momento de partilha entre os deuses.

 

O primeiro momento da partilha das honras é o da insurreição de Crono de curvo pensar, instigado pela Terra. Corno interfere na fecundação da Terra pelo Céu, pondo limites a e essa fase em que os seres divinos (e também os humanos?) nascem diretamente do seio da Terra fecundada pelos sêmenes celestes. Crono representa uma forma de inteligência sinuosa, que obliquamente, e pondo-se de tocaia, surpreende e fere seu pai, o Céu, enquanto ele se entregava inadvertido e desenfreado a sua atividade, que, intensa e puramente vital, não conhecia regras nem a reflexão sobre convivências e conseqüências.  (TORRANO, 2003, p. 54)

 

O deus Crono, colocando-se de tocaia, usa a foice de aço e mutila o falo de seu pai na silenciosa noite de coito com a sua mãe. Logo depois, ocupa o lugar de seu pai no governo do cosmos. Esse ato trouxe-lhe conseqüências que se manifestarão na vida futura de Crono, ou seja, no ápice do poder dele; e desse ato de mutilação, surgiram, do respingo do sangue na terra, as Eríneas, e do sêmen em contato com as águas do Mar,  Afrodite.

Crono já e um deus com características bem mais afeitas ao modo de pensar da época arcaica na Grécia, para o qual a medida é um valor de suma importância.

 

2.2. Crono: Origem e Modulação de poder

A história de Crono tem sua origem na união do Céu com a Terra, como mencionado acima. Crono é o mais jovem dos titãs, e o único a ousar por limite ao poder irrefreável do pai. Este deus, embora reunindo características semelhantes às de Urano, no que se refere à qualidade de ser dos titãs, tal como o curvo pensar, Crono modula este curvo pensar ao agir na tocai, sempre de atalaia, sob suspeita. Por isso mesmo, e ainda que liberte seus irmãos do seio da Terra, estabelece-lhes precisos limites para que assim continuem livres; do contrário, serão novamente encerrado no Tártaro profundo. E, agora, com ciência prévia, posto que anteriormente alertados acerca de incontornáveis limites estabelecidos.

Esposou sua irmã, uma titânia de nome Réia, e com ela teve filhos que representariam uma ameaça à sua soberania. Tentando escapar ao destino decretado pelas Erínias nascidas dos respingos do sangue de Urano, de ser destronado como seu pai, e também pelo próprio filho, Crono começa a devorar os filhos logo após Réia dar à luz. Essa ação indignou sua esposa Réia, e com um plano aconselhado pela Terra, Crono irá um perder o governo do cosmos para um filho seu. É o que mostra Junito Brandão:

 

CRONO, em grego (Krónos), sem etimologia certa até o momento. Por um simples jogo de palavras, por uma espécie de homonímia forçada, Crono foi identificado muitas vezes com o Tempo personificado, já que, em grego, (Khrónos) é o tempo. Se, na realidade, Krónos, Crono, nada tem a ver etimologicamente com Khrónos, o Tempo, semanticamente a identificação, de certa forma, é válida: Crono devora, ao esmo tempo que gera; mutilado a Urano, estanca as fontes da vida, mas torna-se ele próprio uma fonte, fecundando Réia.

O fato é Urano, tão logo nasciam os filhos, devolvia-os ao seio materno, temendo certamente ser destronado por um deles. Géia então resolveu liberta-los e pediu aos filhos que a vingassem e libertassem do esposo. Todos se recusaram, exceto o caçula, Crono, que odiava o pai. Entregou-lhe Géia uma foice (instrumento sagrado que corta as sementes) e quando Urano, “ávido de amor”, se deitou à noite, sobre a esposa, Crono cortou-lhe os testículos. O sangue do ferimento de Urano, no entanto, caiu todo sobre Géia, concebendo esta, por isso mesmo, tempos depois, as Erínias, os Gigantes e as Ninfas Mélias ou Melíades. Os testículos, lançados ao mar, formaram, com e espuma, que saía do membro divino, uma “espumada”, de que nasceu Afrodite. Com isto, o caçula dos Titãs vingou a mãe e libertou os irmãos.

Após os Hecatônquiros, falaremos de todos estes filhos do sangue e dos testículos de Urano. Com a façanha de Crono, Urano (Céu) separou-se de Géia (Terra). O titã, após expulsar o pai, tomou seu lugar, casando-se com Réia.  Dois pontos básicos devem ser ressaltados no episódio de Crono e Urano: a castração do rei e, em conseqüência, sua separação da rainha.

A castração de Urano põe fim a uma longa ininterrupta procriação, de resto inútil, uma vez que o pai devolvia os recém-nascidos ao ventre materno. (BRANDAO, 1991, p. 198, 199)

 

As Erínias (Aleto, Tisífone e megera), espíritos punitivos, nascidas do sangue de Urano e temidas por qualquer outro por deuses e pelos homens, não tardarão a cobrar o preço da façanha de Crono ao castrar o pai Urano. Mas não antes de Crono exercer, em todo vigor, seu próprio poder. O poder manifesto por Crono é aquele que, num extremo oposto de Urano, estabelece limites, freia, corta, delimita, estreita.

O tempo e o espaço, a ordem do cosmos, agora passam a ser regida pela qualidade de ser de Crono. Ele cumpre uma etapa fundamental na constituição do cosmos. Separa Urano de Gaia e cria, entre ambos, um espaço delimitado. Isso significa que todas as regiões ganham configuração distintiva e o próprio espaço se transforma.

 

A Segunda fase cósmica é o reinado de Crono, cujo poder é o exercício de seu curvo pensamento, sempre de atalaia e sempre se disfarçando. Crono sabia, pela Terra e o Céu constelado, que, apesar de toda a sua força, era seu destino por desígnios do grande Zeus ser dominado por um filho (vv. 463-5). Se, ao reinar, o Céu por sua atividade se define como fecundo (thalerón, v 138), Crono enquanto rei é o vigilante sempre à espreita (dokeúon, v.466). Tocaiar e engolir seus filhos recém-nascidos são os expedientes com que ele toma o poder e procura preservá-lo.  (TORRANO, 2003, p. 55)

 

Agora, nesta segunda fase cósmica são a timé e a môira de Crono que estabelecem a medida do novo mundo, sua geografia e temporalidade finitas. E é, então, aqui que tempo e espaço se definem como extensão. Assim como é deste o governo de Crono que os deuses agora surgidos já não poderão ser titãs, posto que desde agora os limites estarão bem estabelecidos.

2.3. Zeus: Origem e Modulação de Poder

Da união de Crono com sua irmã Réia nasceram deuses brilhantes e poderosos, como: Héstia, Deméter, Hera, Hades, Poseidon e o jovem Zeus. Como sabemos, Crono fora sentenciado a pagar por seu ato delimitador dos poderes de Urano. Esta sentença asseverava que Crono seria destronado por um de seus filhos, em expiação ao crime do passado por ele cometido em relação ao seu inconseqüente pai.

Com terror e desespero ao que seria um perigo iminente ao seu poder, Crono começa a devorar seus filhos, um por um, por ordem de chegada ao mundo. Réia ao dar à luz, tinha que entregar o filho, enfaixá-lo e dá-lo a Crono, que impiedoso devorava sua prole. Porém, nem tudo estava perdido, pois sua trama terminaria com a vingança de Réia.

Réia aconselha-se com a Terra, e arma um plano para livrar o seu sexto filho desse destino imposto e cruel. O plano consistia em ela fogir para a ilha de Creta e lá dar à luz ao filho que carregava no ventre, Zeus. Depois do nascimento do deus, Réia havia de entregá-lo às Náides, aos cuidados dos Dáctilos, e dos Curetes, no monte Ida. Em seguida, retorna ao seu lar e entrega, no lugar da criança, uma pedra envolta em faixas para Crono. E este, por sua vez, devora a pedra sem verificar a trama de Réia, posto ser ela também da linhagem dos titãs, portanto capaz do tramante curvo pensar.

 

Zeus veio ao mundo na matrilinear ilha de Creta e, de imediato, foi levado por Géia para um antro profundo e inacessível. Trata-se, claro está em primeiro lugar, de uma encenação mítico-ritual cretense, centrada no menino divino, que se torna filho e amante de uma Grande Deusa. Depois, seu esconderijo temporário numa gruta e o culto monóico de Zeus Idaios, celebrando numa caverna do monte Ida, têm características muito nítidas de uma iniciação nos ministérios. [...] o entrechocar das armas de bronze dos curetes abafava o choro do recém-nascido, o que traduz uma projeção mítica de grupos iniciáticos de jovens que celebravam a dança armada, uma das formas da dokimasía grega. [...] a mais significativa das experiências de Zeus foi ter sido amamentado pela cabra Amaltéia e, como o simbolismo da cabra é muito rico... [...] os gregos, a cabra simboliza o raio. A estrela da cabra na constelação do cocheiro anuncia a tempestade e a chuva, assim como a cabra Amaltéia, nutriz de Zeus. (BRANDAO, 1991, p, 333)

 

Zeus logo cresceu com sabedoria, vigor e brilhante estatura, sua força já se equiparava ao do seu pai, e assim, estava preparando-se para iniciar o movimento de oposição à sua soberania. O jovem Zeus decide voltar e desafiar seu pai para um combate; aí está para fazer justiça ao seu avô, mãe, seus tios e irmãos; e instaurar um novo reino, uma nova ordem no universo. Este episódio Hesíodo chama de titanomaquia, o que veremos com mais detalhe.

A força de Zeus está na sua capacidade de ser o que é; sua timé o faz um deus de espírito guerreiro, mas que guerreia com sabedoria, que age com astúcia e coragem. Neste sentido, ao invés de lutar ferozmente com o pai, acabando por arriscar perder os irmãos que estavam encerrados em Crono, Zeus age com parcimônia e, pedindo auxilio à Terra e Réia, faz Crono beber um veneno que o fará vomitar os filhos, agora já crescidos. E é assim que se passa; Crono vomita os filhos e Zeus vence o pai Crono através da sua refletida qualidade de ser. Agora, a Totalidade Cósmica se completa com o reino de Zeus.

 

O segundo momento da partilha das honras é o da dominação de Crono por Zeus e o catastrófico movimento que constitui a Titomaquia. Castrando com o aspecto benévolo com que perduram para sempre o reino de Crono e a vida sob Crono (ho epì Krónou bíos), mas concorde com este outro lado de um Crono-Ogro a devorar os próprios filhos, temos essa horrenda batalha entre forças coligadas por Crono e os Deuses Olímpios comandados por Zeus. Nessa disputa por decidir-se em quem se centra a realeza universal, a Terra, o Céu, o Mar e as circulares correntes do Oceano estremeceram abrasados pelo fogo do combate.  A Totalidade Cósmica parece reingressar nas Origens donde proveio: Céu e Terra parecem fundir-se desabando-se um no outro, a chama prodigiosa reúne tudo num único sopro, e o próprio Caos – esse princípio cosmoGônico de cisão e de diferenciação – é transpassado na fusão desse incêndio (vv. 690-705). (TORRANO, 2003, p. 56)

 

Zeus reúne em si todas as virtudes necessárias para ser o que é: a um só tempo um líder corajoso e estratégico, com poder de fecundar e de legislar. Afinal, Zeus é a descendência sintetizadora dos demais outros deuses cuja môira, a parte que cabe a cada um, é justamente o poder. Porém, o poder manifesto por Zeus é o justo meio entre Urano e Crono. Neste sentido é que não somente fecunda, como estabelece delimitadas alianças e acordos. Zeus procura fazer laços que ampliem seu poder e lhe garanta permanência do poder, sem sofrer o risco de perder tal poder conquistado. Para tanto casa-se e tem filhos com várias deusas, além de tantas outras relações e alianças que estabelece com imortais e mortais e das quais outros filhos são gerados. Zeus se torna, assim, o pai dos deuses e dos homens, não porque os gerou, mas porque pode lhes dar parâmetros de governo e de justiça.

“Se com a primeira aliança nupcial Zeus se assegura do domínio sobre o imprevisível, o instável e o cambiante (Métis se traduz por sapiência, mas também por Astúcia, Ardil), no segundo consórcio Zeus se associa ao estável, ao inabalável e incontestável: Thémis, filha do Céu e da Terra, e que, segundo o Prometeu de Ésquilo, é um outro nome da própria Terra.” (TORRANO, 2003, p. 64).

“No seu terceiro casamento, Zeus desposa, como da primeira vez, uma Deusa de natureza aquática: a oceanina Eurínome, irmã de Métis e cuja aparência desperta forte desejo amoroso. Eury-nóme significa “Grande-Partilha” e esta oceanina unida a Zeus gera as Graças (Khárites)...” (TORRANO, 2003, p. 65)

“No quarto casamento, Zeus desposa, como no segundo, uma Deusa de natureza terrestre: a multinutriz Deméter, sua própria irmã. Se Thémis explicita a Terra sob o aspecto inabalável e da firmeza incontestável, Deméter a explicita enquanto forças ctônicas fecundas e produtoras de alimentos. Assim, a filha de Deméter, Perséfone, se associa a Hades, já que os mortos e a fecundidade subsolar pertencem ao mesmo reino.” (TORRANO, 2003, p. 66)

“No quinto e sexto casamentos, nos cônjuges de Zeus prepondera à natureza urânica. Com Mnemosyne (Memória) a lucidez e a sobranceria do Céu transparecem na natureza das nove filhas, as Musas elas-mesmas. E com Leto, [...] a luminosidade e a sobranceria do Céu transparecem na ímpar beleza de Apolo e Ártemis, os mais invejáveis (ou desejáveis) dentre todos os que descendem do Céu.” (TORRANO, 2003, p. 65)

“Completando a constituição de seu reino, por último, Zeus desposou Hera, outra irmã sua, de quem nasceu Juventude (Hébe), Ares (guerra) e Ilitiia (partos).” (TORRANO, 2003, p. 66)

“Com o reinado de Zeus completo e firme, completa-se e firma-se a ordem da Totalidade Cósmica, que nele se centra. Ao instalar-se e manter-se, o reinado de Zeus não implica a destruição e aniquilação dos reinos de Cronos e do Céu, mas, ao contrário, delimita-os, define-lhes com maior precisão o âmbito e – de um certo modo e até um certo ponto – engloba-os em sim Cada uma das três fases cósmicas delimita a precedente e engloba-as em parte.” (TORRANO, 2003, p. 66)

 

CONCLUSÃO

Desde este estudo podemos perceber que o mito, na Grécia arcaica, é a expressão de uma cultura ágrafa que permite contar por meio de uma narração os tempos fabulosos em que viveram os deuses; e, que por meio das Musas atualizam-se nos cantos poéticos proferidos pelos poetas.

O mito, então, é a forma por excelência de ver e compreender o mundo. Desde as narrativas da origem da força de manifestação, de ser dos deuses manifesta-se a razão do cosmos e sua ordem, bem como a condição e as exigências de ser dos homens em distinção e relação com as divinas. 

Segundo Eliade, podemos circunscrever que: “o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.” (ELIADE, 1989, p. 11) O mito constitui um saber acerca da realidade e tem um caráter sagrado por ser exemplar. Por isso, por ser uma narrativa exemplar é que tem como personagens os deuses, ainda que estes estejam em relação com os homens. O mito é uma expressão cultural do homem arcaico e pode ser visto de muitas formas. Assim, não existe nenhuma sociedade que não tenha o mito presente em suas raízes.

Ainda segundo Mircea Eliade:

[...] o mito é considerado como uma história sagrada, e portanto uma “história verdadeira”, porque se refere sempre a realidades. O mito cosmogônico é “verdadeiro” porque a existência do Mundo aí está para o prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente “verdadeiro” porque é provado pela mortalidade do homem, e assim por diante. Pelo fato de relatar as gestas dos Entes Sobrenaturais e a manifestação de seus poderes sagrados, o mito se torna o modelo exemplar  de todas as atividades humanas significativas.  (ELIADE, 1989, p.12)

Em suma, os mitos revelam e descrevem as diversas e frequentemente dramáticas eclosões do sagrado ou do sobrenatural no mundo. É está “intromição” ou eclosão do sagrado (sobrenatural), que funda, que dá origem ao mundo tal como ele é hoje. Sendo também graças à intervenção de seres sobrenaturais que o homem é o que é.

Hesíodo nos dá a ver o pensamento arcaico, em específico, as formas de poder que a cultura de seu tempo reconhecia. Urano, Crono e Zeus são estas diferentes modulações em que o poder pode ser manifesto, exercido. Do despótico poder irrefreável de Urano, passando pelo tirânico poder de a tudo refrear de Crono, ao diplomático poder democrático de Zeus: são os gregos arcaicos que estão, eles próprios, manifestando seu ideário e experiência de poder.

 Os poemas hesiódicos apresentam como, em cada fase cósmica, há uma transição e remodelação de poder. Sabendo-se que a temporalidade mítica é qualitativa e não cronológica quantitativa. Portanto, a sucessão das três modulações do poder é, em verdade, simultaneidade, posto que Urano, Crono e Zeus são concomitantes qualidades de poder.

Decerto, Zeus é a medida certa e a expressão máxima do poder. Poder que se manifesta na plenitude dos tempos, na conexão e organização das honras e dos privilégios dos deuses, das tarefas e sacrifícios a serem realizados pelos homens em louvor aos deuses todos. Mas isto porque Zeus é um pouco de Urano, seu avô, e um pouco de seu pai, Crono. A sua temperança advém do tempero de Urano e Crono, da juntura equilibrada e justa de cada qual destas extremas modulações do poder. A medida, tão cara aos gregos, é a forma mais valorosa do poder, seja entre os deuses, seja entre os homens.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDAO, Junito de Souza. Mitologia grega. 7 ed. Petrópolis: Vozes 1991. vol.1.

DETIENNE, Marcel; SISSA, Giulia. Os deuses gregos. Tradução de Rosa Maria Boaventura. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução de Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1989.

HESIODO. Os trabalhos e os dias. Tradução, introdução e comentários de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 2008.

______. Teogonia. Estudo e tradução de Jaa TORRANO. São Paulo: Iluminuras, 1991.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 12 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

VERNANT, Jean-Pierre. O Universo, os deuses, os homens. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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Lembremos que “[...] o canto (as Musas) é nascido da Memória (num sentido psicológico, inclusive) e do mais alto exercício do Poder (num sentido político, inclusive).” (TORRANO, 2003, p. 16)

CRÉDITOS: ZETTA MARCELLA MACYEL MYRANDA DA SILVA - 24/11/18 - ÀS 15H22.