Um outro peru de Natal

Por Kátia R. Maffei dos Reis | 02/01/2013 | Crônicas

Calma! Não é aquele do Mário de Andrade. Este é um outro peru de Natal, e, garanto, muito mais aromático que o do Mário. Esse peru é de um jovem casal gaúcho de Caxias do Sul. Tudo começou com os preparativos da viagem. Iriam para o Rio de Janeiro de avião visitar a mãe dela. E nada melhor do que a época de festas de final de ano para passar agradáveis dias ao lado dos que amamos.

Janelas bem fechadas, luzes desligadas e tomadas desconectadas, todas desconectadas. Ela diz que o marido é exagerado, mas ele garante que precaução nunca é demais. Beleza! O casal embarca em seu carro, vai a Porto Alegre para pegar o voo ao Rio. A viagem foi excelente. Lanchinho grátis e nada de turbulências. Ao chegar lá, melhor ainda. Além de matar a saudade da mãe dela, os dois puderam aproveitar muito a Cidade Maravilhosa, inclusive tirando muitas fotos junto ao Cristo Redentor. Havia um pouco de neblina, mas, como estar no Rio não é privilégio da maioria, o casal nem se incomodou com isso. Pelo contrário. Sentiram-se deslumbrantes. Era como haver no clima uma mistura do país tropical com ares londrinos.

Já na noite de Natal, a mãe dela perguntou se eles haviam se lembrado de trazer no isopor o peru sobre o qual ele havia feito a maior propaganda. Pela primeira vez a empresa em que ele trabalha resolveu presentear os colaboradores com um peru de marca e tamanho nobre. Sabe aqueles perus de Natal deliciosíssimos, lindíssimos e caríssimos? Era um daqueles, com muitos “íssimos”. Mas a empolgação com a viagem fez com que os dois deixassem a bela ave em casa, e congelada. Desculparam-se, e a mãe dela fez questão de comprar um peru para a ceia. Não um peru daquele nível, pois seria muito caro, mas um simples para dar uma pompa à noite especial. Deu tudo certo. Foi maravilhoso. Teve até torta de maçã de sobremesa, feita pela mãe dela, que trabalhara numa confeitaria há alguns anos. Portanto, sem explicação. Foi uma ceia inesquecível.

Dias divertidos, papo em dia, boa comida e excelente companhia. Tudo ótimo, até com rima. Nenhum sintoma do stress da vida moderna. Mas, em algum momento, é tempo de voltar à realidade. Não que o casal tenha uma vida ruim, mas os dois trabalham bastante durante o ano para terem uma vida de bacana pelo menos por alguns dias do ano. Portanto, depois dos dez dias no Rio, hora de voltar para casa, afinal as passagens aéreas já estavam compradas.

Ao aterrissar em Porto Alegre, os dois têm um pressentimento estranho. Falam um ao outro que talvez não fosse esse o momento de voltar para casa. Sentem um cheiro estranho, cheiro de monotonia... Roupas para lavar, casa para organizar, ir ao mercado. Por isso, não restam dúvidas. Vão prolongar as férias na bela praia de Torres, no litoral gaúcho. Já estão bronzeadinhos e nem precisarão se preocupar com isso. É só desfilar a pele com tonalidade carioca em praia de predominância “branquela”. Que luxo!

Ao chegar, começaram a procurar um lugar para ficar, mas parecia que estavam sem sorte. Nada de vagas em hotéis, muito menos em pousadas. Até que encontraram um apartamento. Não era dos melhores. Uma que outra barata ou lagartixa, lençóis nem tão brancos assim e um leve, bem leve, cheirinho de mofo. Bem, muito melhor o cheirinho de mofo do que o cheiro de monotonia da casa deles. E nem ficariam muito dentro do local. Era só para dormir mesmo. Ficaram em Torres durante três dias. Na última noite em que dormiram na praia, um lembrou ao outro sobre a rotina a que voltariam. Fazer o quê? Uma hora ou outra é preciso voltar à realidade.

Pegaram estrada. No caminho, lembraram de algo muito especial: do peru, aquele que ficara no congelador e não pôde ser saboreado na noite da ceia. Por que não mudar o aroma? Ele não precisava ser de monotonia, poderia muito bem ser de peru assado. Conotasse a reflexão como poética ou não, seria uma delícia. Apressaram-se um pouco por calcularem também o tempo que demorariam para assar a ave. E a ideia ficou cada vez mais empolgante. Parecia que o cheirinho e o sabor do peru já estavam presentes.

Chegaram a casa às 18 horas, em ponto. Ao se aproximarem da porta, já começou a bater uma “deprê”. O cheiro aumentava à medida que os passos progrediam. Mas não era o cheiro de peru assado. Era o inevitável cheiro da realidade. Mas estava muito forte, cada vez mais forte, insuportável, causando agudos enjoos. Nossa, pensaram, será esse mesmo o cheiro da monotonia? Ao se aproximar da cozinha, ela abre a geladeira e se depara com o inesperado. Cadáver? Não! Ninguém poderia ter entrado na casa, estava tudo tão seguro. Ele é cuidadoso com essas coisas. O que é então? É ele. O peru de Natal, que teve um triste fim. Foi vítima da precaução excessiva do dono da casa. Se ele não tivesse se preocupado tanto em desconectar todas as tomadas, inclusive a da geladeira, naquela noite eles poderiam saborear um peru de Natal ao invés de pensar como sepultariam a geladeira.