A missão era fazer o reconhecimento da Estação Ecológica de Maracá-Jipioca (SEMA/MMA), localizada na costa do então Território Federal do Amapá. A equipe formada por mim, um colega de botânica, outro de pesca e mais um monitor da ecologia da então Faculdade de Ciências Agrárias do Pará, FCAP, hoje Universidade Federal Rural da Amazônia, UFRA. Fomos para Macapá em voo comercial. De lá seguimos por estrada – BR 156 – até a cidade do Oiapoque, ponto mais setentrional, mais próximo da estação e de onde embarcaríamos em um barco pertencente ao governo do Território para finalmente chegarmos na estação. O gestor local da estação nos prestou assistência logística e também acompanhava a expedição. Antes da partida de Macapá, porém, o coordenador do Projeto Rondon, campus do Amapá nos procurou pedindo que a gente deixasse um jovem estudante paulista que estava acantonado no campus ir com a gente na expedição. Concordamos prontamente. Na hora prevista da partida o rapaz chegou acompanhado do coordenador que nos informou ser ele vegetariano e que só comeria vegetais. Mostrou-nos uma enorme saca de aniagem cheia dos alimentos (frutas, hortaliças, arroz, feijão, farinha, etc.) que foi em seguida embarcada na camionete de nossa viagem. Partimos.

Chegando em Oiapoque (cerca de 600 km de Macapá) fomos para o escritório da base da estação aguardar a chegada do barco do Território mais adequado, que faria o trecho aquático e o restante da expedição até as ilhas de Maracá e Jipioca. O primeiro dia anoiteceu e o barco não chegou. A comunicação telefônica entre a cidade de Oiapoque e Macapá era quase impossível. O que nos valeu foi eu ter levado o meu rádio amador PX portátil e uma antena. Instalei na bateria da caminhonete e comecei à “chamar” por Macapá. Finalmente, através de uma “ponte” com um colega PX consegui saber que o barco do Território já tinha partido para o Oiapoque. O dia terminou e o barco nada de chegar. No outro dia insisti e novo contato foi estabelecido. Afirmei que o barco não tinha chegado ainda. Foi aí que tomamos conhecimento que o dito tinha encalhado e por isso não conseguiu chegar em Oiapoque. Sabendo disso, conversei com a equipe e decidimos alugar um barco local para finalmente cumprir a missão.

O barco alugado era bem pequeno, mas o maior lá disponível. Satisfazia as nossas necessidades mínimas. O colega da botânica desistiu de continuar a viagem alegando compromisso e voltou pra Belém. Estávamos no quarto dia da viagem quando partimos finalmente em direção às ilhas. De saída, percebemos que a correnteza nessa parte da costa oceânica era bastante intensa. O barco que viajávamos encarava as enormes ondas de proa. Em alguns instantes só víamos água na nossa frente. Todos os embarcados usávamos os coletes salva-vidas. Decidimos com a ajuda do comandante atravessar na altura do igarapé do Inferno – o nome já diz tudo – que separa as duas ilhas. Segundo ele, a maresia era bem menor e poderíamos fazer as observações ambientais necessárias com mais calma e segurança. Assim, fizemos. Já estava anoitecendo quando decidimos ancorar na entrada do igarapé, um ponto mais calmo com pouca maresia. O marinheiro que ajudava o comandante era também o nosso cozinheiro. O cardápio era sempre ou quase sempre feijão com arroz, farinha e charque. O jovem vegetariano, porém, dele não participava. Sentava-se no convés, pegava o saco de aniagem, desamarrava-o e tirava o que ia comer. Algumas frutas, cenouras, e outras. Assim era a rotina da viagem.

Já estávamos no sexto dia. Tínhamos feito todo o perímetro de Jipioca, a menor das duas ilhas. Agora iríamos fazer o de Maracá. Rumamos em frente pelo igarapé do Inferno. Ao chegarmos no ponto mais afastado do litoral, ou seja, em mar aberto, a coisa pegou. O pequeno barco chacoalhou tanto que decidimos não encarar as grandes maresias. O vento era forte demais! Recuamos e ficamos ancorados na boca do igarapé. Segundo o comandante, a maresia pela manhã era menor. Acatamos a sua informação e pernoitamos aí.

Todos os dias pela manhã, eu tentava comunicação através do rádio PX, mas em vão. Já na hora do almoço deste sétimo dia, – em nosso planejamento era o último da expedição – observamos que o jovem vegetariano não comera nada. Oferecemos a nossa “boia” mas recusou e mostrou o que tinha sobrado em seu saco-dispensa: cinco ouriços de castanha-do-pará! – Eu não sei comer isso! – falou ele, meio desanimado e encabulado. Nos entreolhamos e o comandante sabiamente disse: – Pra se comer tem-se que abrir o ouriço. Dentro dele é que estão as castanhas-do-pará! – O jovem vegetariano fez cara de não saber como abrir o pixídio, ou cumbuca. Aí, o comandante pegou um terçado que guardava no armário da cozinha do barco e ensinou ao jovem vegetariano como abrir o ouriço e assim alcançar as castanhas-do-pará. O jovem vegetariano tomou para si a tarefa e começou a abrir um ouriço, o maior, segundo ele, para comer as castanhas. Acho que demorou quase uma hora para abri-lo visto que o material era duro e ele não tinha nenhuma habilidade no uso do terçado. Oferecemos o almoço para ele, mas ele intransigente e decidido optou pelo alimento vegetal. Eram quase quatro da tarde quando ele conseguiu abrir o primeiro e quiçá o único ouriço de castanha-do-pará daquele dia. Mas o alimento ainda não estava pronto para ser ingerido. Faltava tirar os pericarpos – cascas – das sementes. O jovem já bastante suado não desistia. Oferecemos mais uma vez a comida do almoço e ele irredutível, respondeu de novo não. Seguimos viagem.

No dia seguinte, completada cerca de 70% da missão – faltou fazer a parte de fora da ilha maior – Maracá – decidimos retornar para o Oiapoque e encerrar a expedição. Nas últimas refeições no barco, finalmente o jovem vegetariano pediu arrego. Só tinha aberto mais um ouriço de castanha-do-pará, porém, a fome falou mais alto. Passou a alimentar-se de nossa comida até, enfim, chegarmos de volta à Macapá: Charque com feijão, arroz e farinha grossa à vontade!