Um General que chegou a Coronel

 

Caixinha de surpresas. Essa expressão que os cronistas esportivos costumam atribuir ao futebol, poderia muito bem ser atribuída, da mesma forma, ao nosso cérebro. Ele às vezes nos pega de surpresa com coisas que retira lá do fundo do baú de nossas reminiscências.  Sem que saibamos o porquê, lembranças de fatos que a julgávamos já terem sido apagadas, emergem do interior dessa caixinha quando menos se espera.

O professor e psiquiatra Augusto Cury investiga esses fenômenos. Em um livro seu que li recentemente, se entendi bem o conceito, ele chama de autofluxo a essa atividade do cérebro que traz à tona coisas do nosso arquivo que a gente não pediu. Ele chama a atenção para que treinemos nosso cérebro para ir buscar essas coisas em áreas boas, pois existem lugares na nossa memória, que ele denomina janelas killer, onde se encontram os medos, as angústias e as experiências negativas. Mesmo sabendo que um excesso de “visitas” a essas janelas pode produzir efeitos nocivos como depressão e ansiedade, nosso cérebro, muitas vezes, insiste em visitá-las.

Acho, entretanto, que meu cérebro estava de bem comigo um dia desses. Num domingo de manhã, acordando para enfrentar mais um dia de quarentena que fará inesquecível este 2020, eis que uma lembrança me aflora. Não sei como nem porque, surge em minha mente o saudoso professor Gerson Rodrigues — hoje nome de rua em Bauru — e uma lição de meu livro de português da segunda série do ginásio, hoje sétimo ano. 

Tratava-se de um texto com um título muito sugestivo: “Um General que Não Chegou a Soldado”. Era tudo o que eu sabia. 

A combinação ócio-Google criou condições para que eu descobrisse com facilidade que se trata de um texto de Humberto de Campos, publicado na edição do Diário Carioca de domingo, 4 de dezembro de 1932. Não consegui saber se aparece também em algum livro do autor.

Não foi preciso reler a crônica para eu me reencontrar com certo menino de 12 anos, naquela sala de aula do Instituto de Educação Ernesto Monte, que acompanhava com atenção a leitura do texto. Para fazê-la, o velho professor trocou seu semblante sisudo por um leve sorriso, para transmitir a carga de ironia que a história continha. 

Contado em primeira pessoa, o texto falava de um rapaz do interior do Piauí que ajudava sua mãe fabricando meias, mas tinha a inquietação de vencer na vida. Um dia, ao conversar com uma senhora “que alimentava paixão pela farda, reminiscência de um cadete do Ceará que lhe ficara no pensamento”, foi instigado por ela a procurar pela carreira militar, o que o deixou muito motivado. 

Na conversa a tal senhora falou das possibilidades da carreira e “com uma vivacidade atordoante”, descreveu sua ascensão pelos postos, primeiro alferes, aos dezenove anos, tenente aos vinte e dois, depois capitão, major... Nomeou todos os postos da carreira, que culminaria com o generalato. Falou dos galões de ouro e do quepe enfeitado com folhas de loureiro. Nas palavras do autor, “abriu diante dos meus olhos espantados o futuro que me aguardava”. 

 No mesmo dia, conseguiu um livro de álgebra (sempre a álgebra, terror de gerações de cadetes!) e pôs-se a estudar freneticamente enquanto se imaginava altivo, em seu uniforme vistoso marchando à frente de suas tropas, até que sua mãe, já na madrugada, aproximou-se mansamente e acariciou sua testa com a mão meiga. O desfecho da história merece ser transcrito, tal como o localizei: 

– Em que pensas, meu filho? 

– Na Escola Militar, mamãe... No principio do anno que vem vou a Therezina tirar os preparatorios... Depois sigo para o Rio de Janeiro e me matriculo na Escola Militar. 

Minha mãe sorriu com amargura. Beijou-me a cabeça: 

– Com que dinheiro, meu filho? 

Fechei o livro. E o futuro general brasileiro viu-se de repente, degradado, e reduzido, de novo, á sua condição real, e irremediavel, de humilde, pequeno e obscuro fabricante de meias na cidade piauiense de Parnaiba... 

A conclusão da leitura, com as pausas e entonação perfeitas provocou o esperado riso na classe. É um sentimento inexplicável, mas parece que a notícia da desgraça alheia faz bem ao nosso ego.

Confesso que não achei a mesma graça que meus colegas, pois na minha intimidade, já naquela época eu vislumbrava seguir a carreira militar e, como o personagem, não tinha dinheiro. Ao contrário dele, porém, tive pai e mãe que se desdobraram para que eu atingisse meus objetivos. 

Irônico também nessa história foi meu cérebro, por me brindar com essa lembrança poucos dias após eu concluir uma carreira militar de 49 anos.  Ela não me levou ao generalato, mas me permitiu realizar, à custa de muita álgebra, todos os sonhos que povoaram a cabeça do tal fabricante de meias naquela noite de estudo. 

Como brinde especial, a lembrança carinhosa do professor Gerson Rodrigues que tantos anos depois  permitiu-me, legado de sua competência e dedicação, continuar tirando lições daquela aula ministrada no distante 1968. À sua memória dedico este texto.