UMA ANÁLISE CINEMATOGRÁFICA SOBRE A PRÉ-HISTÓRIA

 

 Marcelo FERRAZ

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RESUMO

 

O ensino de história pode ser potencialmente enriquecido com a utilização do cinema, pois com o advento dos Analles, um novo mundo de fontes se abriu para o historiador. Além disso, a Pré-História encontra um importante aliado nas obras cinematográficas, como agente facilitador da assimilação do tema exposto, mostrando-nos o quão vantajoso pode ser o uso do cinema na sala de aula, respeitando-se seu caráter ficcional, não sendo a realidade, mas uma imitação desta.

Palavras-chaves: cinema, ensino, pré-história, aula.

 

INTRODUÇÃO

            

Nos idos do século XIX, com a prevalência da Escola Positivista, consideravam-se fontes somente os documentos oficiais, limitando-se aos documentos de Estado.

Entretanto, a partir do advento da Escola dos Analles, no início do século XX, começa-se a questionar a limitação das fontes oficiais. O resultado deste questionamento foi o significativo aumento do número de fontes possíveis de investigação por parte do historiador (SOUZA; SOARES, 2003).

A partir daí, dá-se como fonte de pesquisa também as fontes orais, arqueológicas, audiovisuais, periódicos, entre outros que possam servir para a narrativa histórica.

Mais recentemente, a partir da década de 1970, através de trabalhos de Marc Ferro e da Nova História (SANTIAGO JÚNIOR, 2001), começa-se, inclusive, a considerar as obras cinematográficas, como de importância historiográfica, em um claro sinal da multiplicidade de fontes.

A essa altura, convém questionarmos a possibilidade do cinema como ferramenta auxiliar no processo ensino-aprendizagem de história.

Segundo Napolitano (2008, p. 236) “vivemos em um mundo dominado por imagens e sons”, corroborando com Ferro (2010), que nos diz que a imagem está por toda parte, o que por si só já seria suficiente para fazermos incorporar o cinema e outras tecnologias na sala de aula.

O cinema, palavra de origem etmológica grega, KINEMA (imagem em movimento), “possibilita aqueles que o assistem de terem diante de seus olhos uma representação da realidade social da época em que vivem ou até mesmo de épocas passadas” (LIMA, 2015, p. 94), facilitando a assimilação de assunto exposto em sala.

Mesmo o filme, sendo “imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História” (FERRO, 2010, p. 32), acima de tudo.

Cabe ao profissional da História utilizar-se de seu potencial, com o objetivo de enriquecermos a aula expositiva da forma mais vantajosa possível, com o objetivo de incremento na absorção de conteúdo por parte do aluno.

Entretanto, apesar de termos tal ferramenta disponível, “o uso de recursos cinematográficos ainda carece de melhoramentos por parte dos profissionais que o utilizam” (SOUZA; SOARES, 2003, p. 1). Há muito ainda o que se extrair de benefício da utilização das obras cinematográficas em sala de aula.

De certo, com o auxílio do cinema “é possível aprender História, e esse processo de cognição serve para interpretar a ação humana em tempos e lugares diferentes” (PEREIRA; SILVA, 2014, p. 318).

A utilização do cinema no processo ensino-aprendizagem favorece o estabelecimento de “diálogos com conceitos teóricos que remetem para discussões e as posturas em relação à iconografia e imagens, trazidas pelas novas abordagens historiográficas” (SOUZA; SOARES, 2003, p. 2), além de facilitar a “assimilação de conteúdos por parte dos alunos despertando o interesse pelo tema tratado” (LIMA, 2015, p. 95).

Alguns autores observam a existência de algumas dificuldades na aplicação do material fílmico na sala de aula. Uma dessas dificuldades, refere-se à duração do filme, maior que a duração da aula. Para contornar tal problema Pereira e Silva (2014) sugerem a utilização de recursos de edição, realizando-se recortes de trechos que sirvam para valorizar o tema abordado.

Outro problema apresentado por Souza e Soares (2003) é referente ao uso indevido de tal tecnologia. Segundo os autores, em muitos casos é observado a utilização do cinema na sala de aula como forma de apenas preencher os espaços no planejamento didático, trazendo implicações negativas para o alcance dos objetivos propostos no estudo de História.

Um filme é um excelente recurso didático. Entretanto, como qualquer outro, ele por si só, “não resolve os problemas no processo ensino-aprendizagem” (LIMA, 2015, p. 95), porém, os filmes “tem sempre alguma possibilidade para o trabalho escolar” (NAPOLITANO, 2004, p. 12).

 

 

FONTES E METODOLOGIA

 

Para a realização deste trabalho, foi efetuada pesquisa bibliográfica, onde pudemos observar que o tema tem sido bastante explorado nos últimos anos.

Para a grande maioria dos pesquisadores, Marc Ferro continua sendo a grande referência, por seu trabalho pioneiro, iniciado na década de 1970, dando origem posteriormente à obra Cinema e História, traduzido em vários idiomas.

Para os pesquisadores brasileiros, entre os quais Marcos Napolitano, a utilização do cinema como ferramenta auxiliar no processo ensino-aprendizagem de história é de excepcional valia.

Vários artigos tem sido publicados nos últimos anos, onde damos destaque aos que se referem não só à importância do cinema para com a História, mas também à utilização do primeiro na sala de aula.

Dentro do contexto da pré-história, o foco principal do presente trabalho, utilizamos-nos da obras cinematográficas de Jean-Jacques Annaud, A guerra do fogo (La guerre du feu), realizada em 1981, e de 2001 – Uma Odisséia no espaço (2001 – A space odissey), de Stanley Kubrick, realizada em 1968.

Os dois fimes tem entre si a temática do homem pré-histórico, mostrando, entretanto momentos distintos de seu estágio social, mas de grande utilidade em se tratando da utilização cinematográfica para o processo de ensino-aprendizagem de pré-história.

 

 

 

 

 

CINEMA E PRÉ-HISTÓRIA

 

Segundo Ferro (2010), o cinema deveria ser visto como uma contra-análise da sociedade, com a possibilidade de apelar-se para outros saberes para melhor compreendê-lo.

Para Miceli (2014), a maioria das pessoas considera como filmes históricos, apenas aqueles que tratam dos romanos, dos faraós ou sobre guerras, não considerando a importância dos demais gêneros para a História.

Ricon (2016) sustenta a idéia de que qualquer filme pode ser pesquisado das mais diversas formas, e essa possibilidade é das mais crescentes atualmente em nosso país.

Nas obras cinematográficas analisadas, partindo do pressuposto elencado por Ferro, criamos uma idéia do que poderia ter sido o cenário e contexto do Homem pré-histórico, de forma ficcional, respeitando, até o possível o aspecto plausível.

Gosden nos alerta sobre esse cuidado ao se tentar recriar esse cenário.

 

A dificuldade e a escassez de evidências nos tornam desconfortavelmente cientes de que o esforço imaginativo necessário para compreender o passado pode facilmente nos levar à fantasia, a projetar nossas visões prosaicas do mundo na grande tela da pré-história humana (GOSDEN, 2012, p. 17).

 

Annaud, com sua Guerra do fogo (1981), permite-nos visualizar toda a mística e magia que circunda a presença do fogo entre os homens da pré-história.

No texto de abertura da película podemos observar:

 

80.000 anos atrás, a sobrevivência do homem, em uma terra vasta e inóspita dependia da posse do fogo.

Para aqueles humanos primordiais, o fogo era um objeto de grande mistério, desde que ninguém o tivesse criado. O fogo tinha que ser subtraído da natureza. Tinha que ser mantido vivo – abrigado do vento e da chuva, a salvo das tribos rivais.

O fogo era um símbolo de poder e um sentido de sobrevivência. A tribo que possuisse o fogo, possuiria a vida[1] (ANNAUD, 1981).

 

O homem dominou a arte de produção do fogo ainda no paleolítico.

Além disso, didaticamente, é possivel observar a utilização de peles com o objetivo de proteção contra o frio, construção de tendas rudimentares, fabricação de lanças e utilização do próprio fogo para a alimentação e proteção do seu grupo social.

Tais artifícios, responsáveis pela sobrevivência e multiplicação da raça humana, são chamados de equipamentos por Childe (1981, p. 10), onde, graças a esse equipamento “o homem atua sobre o mundo exterior e reage em função dele”.

Ao contrário de outros animais, que nascem providos de seus equipamentos naturais, o homem precisou criar e adaptar seus próprios equipamentos para sobreviver.

Pinsky (2001) nos diz que o homem é o animal mais inadequado a sobreviver em nosso planeta, entretanto, o mais poderoso.

Em A guerra do fogo, o cineasta deixa evidente a utilização de equipamentos por parte do homem.

O filme conta a história de um grupo humano pré-histórico, que atacado por uma tribo rival, perde a posse do fogo, um bem precioso para a sua sobrevivência.

Dessa forma, alguns membros do grupo são obrigados a irem em busca de outra fonte de fogo para garantirem a sobrevivência da coletividade, o que Lima (1985, p. 22) chamou de “uma fantástica reflexão sobre o poder”.

O filme de Annaud, trata de temas relevantes no cenário humano pré-histórico, como socialização, proteção contra predadores e tribos rivais, além de antropofagia e sexualidade.

Em 2001 – Uma odisséia no espaço (1968), realizado por Stanley Kubrick, alguns desses temas são tratados, dando evidência ao espírito beligerante do homem primordial, que em nome do bem-estar de seu grupo social, lança mão da violência como recurso.

Ambos os filmes são de grande utilidade para o estudo da pré-história, sendo que a obra de Kubrick serve ao propósito somente em sua parte inicial intitulada The dawn of man (O alvorecer do Homem).

O filme de Annaud, por ser totalmente dedicado ao tema de nosso estudo, parece-nos mais rico em detalhes sobre os primórdios do homem.

A maquiagem, o figurino e o cenário, presentes em A guerra do fogo, levam-nos ao tempo-espaço pré-histórico, onde a música completa magistralmente o plano do diretor de fazer do espectador envolver-se com a jornada que se desenvolve na tela.

Na obra de Annaud, em sua jornada, os homens pré-históricos escapam de predadores, digladiam-se com uma tribo antropofágica e encontram um grupo humano mais desenvolvido, assim denominado por dominar a arte da criação do fogo.

Esse momento é determinante no filme, pois ao descobrir, surpreso, que alguém consegue fabricar o fogo com suas próprias mãos, o personagem pré-historico, inicialmente incrédulo vai às lágrimas, não conseguindo conter a emoção.

Pontuando e criando os momentos de emoção, tensão e alegria, a música criada por Phillipe Sarde, em A guerra do fogo, serve para envolver o espectador, além de servir de linguagem em um filme onde não se utilizam de diálogos intelegiveis.

Para os diálogos dos personagens foi criada uma linguagem própria, derivada do alemão primitivo e de linguas latinas pelo escritor e linguista Anthony Burguess (LIMA, 1985, p. 22).

Coincidentemente, o filme de Kubrick também tem poucos diálogos, sendo preenchido por música clássica.

O tema de 2001 – Uma odisséia no espaço, foi composta em 1896 por Richard Strauss, intitulada Also sprach Zarathustra, e é um dos mais icônicos temas musicais utilizados em obras cinematográficas, sendo facilmente reconhecida.

Na obra de Annaud, as relações sociais e sexuais do homem pré-histórico também são discutidas. Inicialmente percebe-se a formação da família endogâmica, como característica do grupo inicialmente tratado.

Friedrich Engels, em sua obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884), trata da formação familiar, baseado em estudos antropológicos de Lewis Morgan, em A sociedade antiga (1877), que procurava tecer o desenvolvimento social dos grupamentos humanos, o qual foi classificado em estágios de selvageria, barbárie e civilização.

Segundo Morgan, as famílias surgiram de forma endógena, formando laços entre irmãos, onde havia um antepassado comum a todos, sendo chamada de família consanguínea, até que, com o tempo, essas uniões fossem formadas de forma exógena, ou seja, por elementos de grupos distintos, sendo chamada de família sindiásmica, tal qual se observa em A guerra do fogo.

Nas cenas finais do filme é observado a formação da nova família sindiásmica, com a presença da fêmea, oriunda de grupo social distinto, agora grávida.

 

CONCLUSÃO

 

Os filmes A guerra do fogo e a primeira parte de 2001 – Uma odisséia no espaço, são profícuos no estudo e no processo ensino-aprendizagem de Pré-História.

Ambas as obras tratam de questões pertinentes ao contexto do homem pré-histórico, e mesmo sendo apenas representações da realidade, permitem-nos criar um cenário plausível sobre o espaço-tempo analisado.

Mesmo sem a classificação de “filme histórico” – ambos classificados como ficção – as obras estudadas, como muitas outras, são reconhecidamente objetos de estudo histórico.

Tal condição, de reconhecer as obras fílmicas como fontes de pesquisa histórica, só foi possível graças ao advento dos Annales, e posteriormente à dedicação do historiador francês Marc Ferro, que encontrou eco na História Cultural.

Cabe ao professor e pesquisador de história saber explorar, da melhor maneira possível, este cabedal de informações, em prol do desenvolvimento da História.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

2001 – UMA ODISSÉIA no espaço. Direção: Stanley Kubrick. EUA: Metro-Goldwyn-Mayer, 1968. 1 DVD (148 min).

CHILDE, Vere Gordon. O que aconteceu na história. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro, 2006.

FERRO, Marc. Cinema e história. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

A GUERRA do fogo. Direção: Jean-Jacques Annaud. França/Canadá: 20th Century Fox, 1981. 1 DVD (100 min).

GOSDEN, Chris. Pré-História. Porto Alegre: L&PM, 2012.

LIMA, César Garcia. A guerra do fogo. Bizz. n. 18, jan. 1987, p. 22.

LIMA, Daniel Rodrigues. Cinema e história: o filme como recurso didático no ensino/aprendizagem da história. Revista Historiador, [S.l.], n. 07. p. 94-108, jan. 2015.

MICELI, Paulo. Uma pedagogia da História? In: PINSKY, Jaime (org.). O ensino de história e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 2014. p. 37-52.

NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.

NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais:a história depois do papel, In: PINSKY, Carla Bessanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo : Contexto, 2008.

PEREIRA, L.R; SILVA, C.B. Como utilizar o cinema em sala de aula? Notas a respeito das prescrições para o ensino de História. Espaço Pedagógico, Passo Fundo, v. 21, n. 2, p. 318-335, jul./dez. 2014.

PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo: Contexto, 2001.

RICON, Leandro. Apresentação. In: SOUZA NETO, José Maria; SCHURSTER, Karl; RICON, Leandro. Imagens em movimento. Ensaios sobre cinema e história. Rio de Janeiro: Autografia, 2016.

SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes. Cinema e historiografia: trajetória de um objeto historiográfico (1971-2010). História da historiografia, ouro preto, n.8, abr/2012, p. 151-173.

 

SOUZA, Polyana Jessica do Carmo; SOARES, Valter Guimarães. Cinema e ensino de história. XXVII Simpósio Nacional de História. Natal. 22-26 jul. 2003.

 

 

[1] 80,000 years ago, man’s survival in a vast uncharted land depended on the possession of fire.

For those early humans, fire was an object of great mystery, since no one had mastered its creation. Fire had to be stolen from nature. It had to be kept alive – sheltered from wind and rain, guarded from rival tribes.

Fire was a symbol of power and a means of survival. The tribe who possessed fire, possessed life.