Autora: Roberta Bellini
Psicóloga CRP: 07/23585

UM DEVANEIO INICIAL

Prosa e verso. Quem disse que eu não saberia rimar? Mulheres múltiplas, multimulheres. Ultimamente tenho pensado sobre elas...aliás, sobre nós. E aqui também não fico de fora, sou mulher, mulheres: instigantes e inconclusivas. Já que insistem em desvendar nossos mistérios, aí vai um recado: não se apressem. Temperamento sanguíneo, sorriso fulminante. O olhar arredio insiste em manter-se em movimento. Nem Da Vinci com toda sua versatilidade artística poderia captar nossas mais sublimes formas. Lutam pelo que querem, mas querem que lutem por elas. Mesmo nuas, desejam estar cobertas de razão. Quanta pretensão. Tarde demais, deram asas a nossa imaginação, voamos longe. Românticas, por vezes perversas. Querem um amor para vida toda, mas toda vida para muitos amores. Encaremos os fatos: de Cinderela e Bruxa, todo mundo tem um pouco. Príncipes (des) encantados. Esqueçam os comerciais de margarina. Uma dose de insegurança, por favor, com limão e gelo. Nos quebra-cabeças, sempre faltam peças. São largas lacunas, intransponíveis. Elas são mães, pais, esposas, namoradas, donas-de-casa, empregadas, empregadoras e hoje, também mulheres! Vacilam quando a ordem é despreocupar-se; mas não titubeiam quando se sentem desafiadas. Vai encarar? São mulheres, femininas e masculinas, um pouco de tudo e de tudo um pouco. Politicamente (in) corretas. Espontâneas e desconcertantes. Mulheres, por vezes meninas. Lêem Nietzche e Kafka, mas não dispensam os contos de fadas dos Irmãos Grimm. É o poder atômico de sua amarga doçura. Seres errantes, destino incerto. Nômades. Pulam de galho em galho, que hábito estranho. Ainda buscam o que não sabem. Recuperam o fôlego. Compromisso descompromissado. Frias ou quentes, mornas nunca! Que tal um manual (nada) prático para (des) entender as mulheres? Querem suas histórias estampadas no Arquivo Confidencial e esperam que o final feliz nunca chegue ao fim. Sonham com acontecimentos diários. Querem ser surpreendidas. E quem não quer? Absorvem demais, expelem de menos. É uma culpa hormonal, promíscua, irreverente. E que graça teria se não fosse assim, visceral? Escrevo com Robertas, com pensadores, com encontros humanos e inumanos. O “eu” e o “nós” se misturam ao longo da escrita e apontam para uma construção coletiva e para possibilidade do sujeito ser múltiplo. Como pista: começa-se pelo meio. As representações dão espaço para que se possa conhecer o mundo com Rolnik (Corpo, Arte, Clínica, 2004): através do encontro corpo-carne-força. Então, como um gole de conhaque em noite fria, os devaneios começam a tomar corpo com a seguinte captura na obra de Deleuze e Guattari: “Quem é Eu? é sempre uma terceira pessoa” (O que é a filosofia? 1992 p.87). A escrita é lançada para longe daquilo que consideramos produção única e convidamos o pensamento a compartilhar os delineamentos de uma construção coletiva. Quando experimentamos a solidão, intensamente povoada, o desejo nós lança para viver a escrita de corpo inteiro, como ler Lispector quando nós sentimos só rodeados pela multidão. Como pista seguinte, podemos dizer que exploramos nosso pensamento e o levamos para territórios desconhecidos, inesperados (e talvez inusitados?) em que produzimos pensamento e escrita na veia social e assim fazemos circular aquilo que os mestres, já citados, elegeram como a mais alta potência do pensamento: a criação! Pois, buscamos na poeira das leituras antigas o que necessitamos para oxigenar nossas veias delirantes e fazer circulação à escritura. A palavra aprende a pegar delírio e pesquisador faz ser atual, como sugere Barthes, “uma cultura passada” (em O rumor da língua, 2004, p.104). Por isso buscamos extrair nas memórias literárias nosso problema filosófico (outra pista?), o combustível de nossa pesquisa, para então dar voz as palavras e fazer circular, aquilo que, em potência, é criado. Pesquisar é escrever, inventar outros modos de existência. É dar rumor ao pensamento até então enclausurado em nossa discreta individualidade: tecer o “eu” em múltiplos “nós”. ESCRITA QUE SE ESCREVE POR SI Limitar-me a verdades e a respostas: tão fácil, tão constante, tão previsível. O além é sempre o mesmo, as palavras se conectam sempre com as mesmas entonações, eu sigo em uma estrada reta que me permite visualizar tudo o que está por vir. Indecisões pouco aparecem. A certeza se sobrepõe. A certeza se cristaliza. Cristal. Brilhante. E como brilha! Resplandece para todos os lados. Mas resplandece sempre igual. Sempre igual. Sempre transparente. E a incerteza? Foi despertada. Movimentou convicções, verdades pré- formuladas, imposições, certezas. Movimentou em direção à ampliação da vida. À ampliação do olhar, da sensibilidade, do permitir-se. Inquietou. Incomodou. Desassossegou. A incerteza de tudo levou a uma desestabilização, a um vazio, a um oco de representações. Como preencher o que já não se sabia mais como? Só a criação poderia transformar o vazio em algo novo. Só a desestabilização poderia levar à invenção. O “só”, porém, me parece um resquício da escrita cientificista... Talvez, não seja “só” e sim “mais uma dentre as várias possibilidades”. O sentir o mundo de outros jeitos e a desestabilização experimentada geraram outros possíveis. Possíveis atrelados ao brincar com os conceitos, com as ideias, com as palavras e as verdades. Fica a sensação de estranhamento frente a tudo. E isso causa medo! Angustia saber que tudo pode ser transformado, basta para isso permitir-se brincar. Ou seria permitir-se fazer como as crianças: olhar para tudo como se fosse a primeira vez e perguntar mil vezes “por que”? Porque não serve mais para explicação, por quê? Porque explicar não é o fio da meada e sim brincar. E sim criar. E sim desassossegar a criança travessa e questionadora escondida em cada corpo capturado pelo capital. O corpo. Ganhou asas ao longo do semestre. Saiu voando da sala de aula e pousou em lugares desconhecidos. Pousou, apenas para ganhar outros ares. Para se reinventar e reinventar incessantemente. Escrita que se escreve por si? Fluxos. Ondas imprevisíveis. Escrita que foi se escrevendo sem razão, sem motivo, sem objetivo. Escrita com o corpo? Há como separar corpo e mente? Escrita sentida e não pensada: será possível? Mil possíveis. Mil possíveis. Mil possíveis.