UM CÃO E SEU DONO   (Conto)

              Nicolau trabalhava em Alegrete-RS, num centro de processamento de dados.  Todos os finais de semana, após o expediente, que se prolongava até a madrugada de sexta para sábado, viajava para Santana do Livramento, a duzentos quilômetros dali.  O trecho rodoviário entre as cidades de Alegrete e Rosário do Sul era muito ruim, e não havia qualquer tipo de sinalização.

                Numa dessas madrugadas em que saiu de Alegrete com destino a Livramento, estava chovendo torrencialmente e Nicolau se orientava mais pela intuição do que pela visibilidade da estrada.   Num determinado momento, houve aquele estrondo...   O carro havia caído num buraco e o motor imediatamente se apagou. Tentou reacionar a ignição e os faróis, mas nada estava funcionando.  Nicolau estava no escuro,  sob a chuva e a cerração intensas.  Eram mais ou menos três horas da madrugada.  Desprevenido, como sempre, não tinha lanterna nem guarda-chuva, ou sequer um isqueiro ou uma caixa de fósforos.   De qualquer modo, desceu do carro, abriu o porta-malas, retirou o triângulo e o colocou na estrada que, àquela hora, já não tinha nenhum movimento.  Olhou para os lados. Sob a luminosidade ocasional dos relâmpagos só enxergava a vasta extensão dos campos e alambrados.  Entrou novamente no carro e esperou não sabe quanto tempo.  A chuva continuava cada vez mais forte.  De repente ouviu um leve ruído.  Algo arranhava a porta do carro, do seu lado.  Abaixou o vidro.  Era um cão ...  Estava inquieto e gania.  Acariciou-lhe o focinho molhado e o animal pareceu acalmar-se.  Abriu a porta e o cão, gemendo, pareceu que lhe pedia para seguí-lo ...  Fechou o vidro, chaveou a porta do veículo e andou atrás do cão até uma porteira.  Nela havia uma tábua dependurada com uma inscrição que não conseguiu ler...  Abriu a porteira e seguiu o cachorro.  Andaram uns cinqüenta metros por um caminho bastante pedregoso, até que avistou uma casa no meio do arvoredo.  Uma luz bruxuleava lá dentro.  Aproximou-se da casa e bateu palmas.  Estava agora tão  molhado como o cão.  A porta se abriu e apareceu um homem idoso, segurando um lampião à altura do rosto magro.

                 -- Boa noite – disse Nicolau.

                 -- Boa noite – respondeu o homem –  O que deseja?

                 -- Fiquei na estrada, a uns cem metros daqui.  O senhor teria uma lanterna?

                 -- Só tenho este lampião a querosene.  Mas não se preocupe, eu vou com o senhor até lá.

                 -- Desculpe – falou Nicolau -- mas como é o seu nome?

                 -- Aqui todos me conhecem por Reinaldácio.

                 E o sr. Reinaldácio acompanhou Nicolau até onde estava o carro, tapando com a mão a parte superior do lampião para que não se apagasse com a chuva, que continuava a cair intensamente.

                 À luz do lampião, abriu o capô e examinou o motor.  Tudo parecia em ordem, exceto o cabo da bateria, que estava solto.  Recolocou o cabo no lugar, entrou no carro e acionou o motor, que funcionou ao girar a chave.  Sem nenhuma dificuldade, conseguiu retirar o carro do buraco.  Fê-lo rodar alguns metros e estacionou.  Desceu e recolheu o triângulo.   E voltando-se para agradecer a ajuda do homem, disse:

                   -- Obrigado pela ajuda e desculpe o incômodo, seu ... – mas o homem e o cão haviam  desaparecido.

                   Nicolau continuou a sua viagem.  Dali até Rosário do Sul havia aproximadamente uns quarenta quilômetros.   O restante da viagem transcorreu sem maiores contratempos, apesar do  péssimo estado da estrada. 

                    Quando chegou em Livramento eram 5:30 hs da manhã.

                    Depois de passar o fim de semana, na segunda-feira de tarde retornou para Alegrete.

                  A partir de Rosário do Sul, ía controlando a distância.  Mais ou menos uns quarenta quilômetros depois de Rosário, pela estrada que conduzia a Alegrete, estacionou.  Desceu e andou pela rodovia.  O tempo agora estava bom e a tarde ensolarada lhe permitiu observar melhor aquela lamentável estrada.  “A casa do seu Reinaldácio deve ficar por aqui ...”, pensou.  “Preciso agradecer a esse cidadão pela ajuda que me prestou...”

                    Em seguida localizou a porteira com a tabuleta.  Mas o que quer que nela dissesse, estava apagado e ilegível ...

                    Pela estrada vinha um trator.   Fez sinal que parasse.

                    -- Boa tarde, moço!  O senhor sabe onde mora por aqui o seu Reinaldácio?

                    O homem pareceu surpreso com a pergunta.

                    -- Ele morava ali onde está aquela tapera.

                    Nicolau olhou na direção indicada e avistou apenas uns restos de parede de tijolo, sem nenhum teto, entre o arvoredo

                   -- O senhor quer dizer que ele não mora mais ali?       

                   -- Não, ele ...

                   -- Prossiga, por favor, disse Nicolau.            

                   -- Ele era um homem simples.  Uma criatura muito boa.  Possuía uma pequena chácara e uma lavoura e levava seus produtos para vender na cidade.  Ele tinha uma camioneta velha ...  Uma noite, quando voltava para casa, acidendou-se, exatamente naquele lugar onde o senhor  pode ver uma cruz de ferro ...

                   Nicolau foi até o lugar e se deparou, ao lado da cruz, com um enorme buraco.  Era sem dúvida o lugar onde havia caído.  Mas não referiu o caso ao homem do trator.

                   Apenas perguntou:         

                   -- E qual foi a causa do acidente?

                   -- Ah, isso faz mais de vinte anos.  Ele se desviou da estrada para não atropelar o seu próprio cão que vinha esperá-lo ao chegar em casa.

                   -- E conseguiu salvar o animal?     

                   -- Não ...  Morreram os dois.

 

(Versão integral do conto premiado em quinto lugar no Concurso Literário da cidade de Taquara-RS, organizado pelas Faculdades Integradas e Jornal Panorama, em homenagem aos duzentos anos de nascimento do poeta e escritor Edgar Allan Poe)