UM BREVE ENTENDIMENTO SOBRE O CONCEITO DE JUSTIÇA NA ÓTICA DO FILÓSOFO ANDRÉ COMTE-SPONVILLE



 

 

Saulo Barbosa Santiago dos Santos1

 

 

RESUMO: Não há como se fazer justiça sem sabermos o que ela é ou como devemos agir em prol dela, ser justo não significa fazer o bem, muito menos respeitar as leis, a justiça vai além destas características porque ela é uma virtude que precisa ser construída pelos humanos. Pode-se entendê-la a partir de duas partes, como igualdade ou equidade, ou, pela força da lei. Como igualdade ou equidade, as relações subjetivas, juntamente com seus preceitos morais, terão mais ênfase, ou seja, a lei jurídica fica em segundo plano. A lei em si é mais objetiva, regula até que ponto a igualdade entre as pessoas pode existir. O objetivo deste texto é discutir como o filósofo André Comte-Sponville trata o conceito de justiça, explicando suas características e definições, bem como nos mostra a importância de buscarmos o entendimento para agir de forma justa.

 

 

PALAVRAS-CHAVE: Justiça. Equidade. Igualdade. Lei.

 

1 – INTRODUÇÃO

 

      Falar sobre justiça é algo atemporal, diversos pensadores ao longo da história já discursaram sobre este tema que é tão amplo e que muitas vezes causa confusão sobre seu entendimento, o que faz gerar grandes problemas conceituais. Rotula-se muito sobre aquilo que pode ser justo e injusto, embora muitas vezes haja pessoalidade ou sentimento no uso do termo, nem sempre sabemos o que realmente é justiça, porque ela não faz a pessoa justa, pelo contrário, o justo é que lhe faz, de outra forma, é improvável sabermos se alguém é passível de realizar justiça sem antes saber como fazê-la, entender o que ela é ou como deveria ser, por conseguinte

 

da justiça, aliás, não nos podemos isentar, qualquer que seja a virtude que consideremos. Falar injustamente de uma delas, ou de várias, seria traí-las. e é por isso talvez que, sem fazer as vezes de nenhuma, ela conterá todas as demais. A fortiori ela é necessária, tratando-se dela mesma. (SPONVILLE, 2016, pag. 71).

 

      No capítulo 7 do livro “O pequeno tratado das grandes virtudes” o filósofo francês, André Comte-Sponville, disserte sobre a justiça e traz diversos temas à respeito do assunto nos fornecendo alguns métodos para solucionar as dúvidas, por conseguinte, o objetivo deste texto não é algo inovador ou com pretensões, mas sim fomentar uma definição conceitual de justiça através da legalidade, igualdade e equidade partir da ótica do nobre pensador citado.

 

2 – SOBRE JUSTIÇA

 

      O termo “justiça” vem do latim justitia, quem é uma derivação da palavra justus, onde jus significa aquilo que é direito, correto; e tus que significa como algo que vem da lei ou do direito legal.Não é uma qualidade, talento ou característica, mas sim, uma virtude. Ela não existe por si só, é uma criação humana que só continuará enquanto for praticada e que, talvez, de todas as virtudes que há, ela é exclusivamente e essencialmente boa. Se buscarmos outras virtudes, tais como a fidelidade, prudência ou coragem, em qualquer um delas poderemos ser maus, porém, se formos justos, todas elas serão benéficas.

      Sacrificar a justiça para, por exemplo, dar uma resposta à sociedade em relação a alguém que cometeu crime grave é agir por emoção ou com favoritismo e isto é ser injusto. A justiça não é um utilitário, não é algo que pode ser negociado para algum benefício ou vantagem, não pode ser uma ferramenta com objetivo de levar felicidade ou bem-estar à sociedade ou a algum sujeito, isto é um visão deturpada de sua realidade, mas que infelizmente é posta às pessoas desta forma,

 

se a justiça fosse apenas uma contrato de utilidade, como queria por exemplo Epicuro, apenas uma otimização do bem-estar coletivo, como queriam Bentham ou Mill, poderia ser justo, para felicidade de quase todos, sacrificar alguns, sem seu acordo e ainda que fossem perfeitamente inocentes e indefesos. Ora, é o que a justiça proíbe, ou deve proibir. (SPONVILLE, 2016, pag. 71)

 

3 – DUPLO SENTIDO DE JUSTIÇA

 

      Uma sociedade democrática, organizada e bem-ordenada só pode ser tal como é se estiver regulamentada por uma noção de justiça e que seus princípio estejam na sua cultura, costumes e conjuntura política; onde as pessoas compreendem sua importância como indivíduo e em si própria como parte de um todo. Pessoa aqui é entendido como alguém politizado, racional e coerente, que interage socialmente como um cidadão livre, nivelado igualmente com os outros, com senso de justiça, que percebe o bem através das faculdades morais. Mas isto não garante que a justiça se faça quando as pessoas são tão diferentes quanto divergentes, o ser humano é naturalmente parcial àquilo que é do seu interesse, o que pode gerar conflitos legais ou morais em torno da justiça, todavia, sabe-se que as objeções relacionadas a algum conflito podem ser avaliadas e, se necessário, corrigidas. O filósofo francês explica este pensamento com muita clareza ao tratar o desejo de justiça como uma tentativa de restabelecer a igualdade, tanto para adultos como para crianças, quando é quebrada, assim ele fala:

 

“Não é justo”, diz a criança que tem menos que as outras, ou menos do que julga lhe caber; e dirá a mesma coisa a seu amiguinho que trapaceia - nem que seja para restabelecer uma igualdade entre eles - , não respeitando as regras, escritas ou não-escritas, do jogo que os une e os opõe. Do mesmo modo, os adultos julgarão injustas tanto a diferença demasiado gritante das riquezas (é nesse sentido sobretudo que se fala de justiça social) quando a transgressão da lei (que a justiça, isto é, no caso, a instituição judiciária, terá de conhecer e julgar). (SPONVILLE, 2016, pag. 71-72)

 

      É difícil encontrar uma sociedade com tamanha característica haja vista sempre há discussão sobre se determinado ato ou efeito é justou ou injusto porque cada um tem sua visão particular de justiça. Para Sponville (2016) a resolução desta problemática pode ser minimizada, mesmo que nem sempre atinja todos os casos, a partir de um duplo sentido à justiça: como respeito às leis e como igualdade e equidade.

 

3.1 – JUSTIÇA COMO RESPEITO ÀS LEIS

 

      Pode-se considerar alguém como justo aquele que respeita as leis vigentes, que se recusa sobrepor às normas, que não tem o intuito de violar os direitos das pessoas para se beneficiar, cujo objetivo é ficar somente com aquilo que lhe pertence. Se não houver preceitos jurídicos que tentem balancear a igualdade por vias da lei numa sociedade, não há como existir justiça nela. Na dúvida, assim falam os legalistas, mesmo que não concorde, faça o que a lei manda, porque aí estará resguardado contra supostos processos. Independentemente de ser justa, lei é lei, mas isso não faz dela justiça. Desta forma

 

o justo, inversamente, será aquele que não viola nem a lei nem os interesses legítimos de outrem, nem o direito (em geral) nem os diretos (dos particulares), em suma, aquele que só fica com sua parte dos bens, explica Aristóteles, e com toda a sua parte dos males. A justiça situa-se inteira neste duplo respeito à legalidade, na Cidade, e à igualdade entre indivíduos. (SPONVILLE, 2016, pag. 72)

 

      Agir fielmente de acordo com que manda a lei não quer dizer que a lei seja justa, no máximo te faz pensar ser justo, mas ser e pensar ser são coisas diferentes. Vejamos a seguinte situação exemplificativa. Dois policiais prendem um forte e agressivo adolescente de 1,70 m e com seus 90 Kg. Depois de muita luta, conseguem algemar para levá-lo à delegacia, no entanto, de acordo com o artigo 178 da lei nº 8069/90 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é vedado o transporte em compartimento fechado de viatura policial o adolescente que cometera algum crime, isto é, alguém forte, agressivo e solto dentro de uma viatura certamente haverá uma grande probabilidade de ocorrer um acidente caso não seja algemado. Por este pensamento é notório que a lei não é justa para os policiais e que executá-la fielmente seria pôr vidas em risco.

      Uma das maiores dificuldades concernente à lei e à justiça se dá pelo fato de quem legisla ou que cria as leis. Como bem se sabe, criar ou modificar leis se faz pela quantidade de agentes políticos engajados no tema e nem sempre estes agentes são justos ou agem em prol da justiça, logo, não se pode esperar que as leis sejam justas, e se são, nada impedem que elas sejam modificadas a tal ponto que se tornem injustas. Neste aspecto SPONVILLE (2016, pag. 72) faz a seguinte observação afirmando que

 

os mais numerosos, não são os mais justos ou os mais inteligentes, prevalecem ou fazem a lei. Positivismo jurídico, diz-se hoje, tão insuperável com relação ao direito quanto insuficiente com relação ao valor. A justiça? O soberano decide, e é o que se chama lei propriamente. Mas o soberano – mesmo que seja o povo – nem sempre é justo. Pascal mais uma vez: “A igualdade dos bens é justa, mas...”. Mas o soberano decidiu de outro modo: a lei protege a propriedade privada, tanto em nossas democracias como na época de Pascal, e garante assim a desigualdade das riquezas.

 

      Buscar a igualdade entre as pessoa a partir das leis gerará problemas simplesmente pelo fato que igualdade não abrange a totalidade das coisas, o contexto pode diferenciar o mesmo resultado. Um ladrão que furta um carro e outro que furta uma galinha, apesar de cometerem o crime de furto, serão julgados de forma diferente de acordo com a complexidade e gravidade pelo ato cometido, por isso a necessidade de juízes, promotores e advogados na busca de, necessariamente,

 

um critério, ainda que aproximativo, e um princípio, ainda que incerto. O princípio deve estar do lado de certa igualdade, ou reciprocidade, ou equivalência, entre indivíduos, sem se reduzir a ela. É a origem da palavra equidade (de aequus, igual), que seria sinônimo de justiça se não fosse também e sobretudo sua perfeição. Isso parece indicar novamente o símbolo da balança, cujos dois pratos estão em equilíbrio e devem estar. A justiça é a virtude da ordem, mas equitativa, e da troca, mas honesta. (SPONVILLE, 2016, pag. 76)

 

      Seria inocência acreditar num ordenamento jurídico pleno e justo, não há registros históricos que dê evidências para uma legislação onde a justiça esteja contida em suas disposições gerais legislativa nestas condições, mesmo com representatividade, nenhum contrato, ordenamento jurídico ou convenção social garante que as convivências entre as pessoas sejam justas, como dito antes, lei não é sinônimo de justiça e muito menos é ela, no entanto nada nos obriga a respeitá-la quando injusta, muitas vezes pode ser justo violá-la de tal forma que se busque correção àquele que teve seus direitos subjugados por alguém ou um grupo de pessoas, até mesmo o próprio Estado. Lutar contra uma lei injusta é manter a democracia haja vista foi quebrado o direito de outrem, neste contexto insere-se o segundo sentido da justiça: igualdade ou equidade.

 

3.2 - JUSTIÇA COMO IGUALDADE OU EQUIDADE

 

      Diferentemente da justiça como respeito às leis, que é algo mais objetivo, a justiça enquanto igualdade ou equidade parte para uma perspectiva subjetiva, os preceitos morais se tornam determinante e ganham notoriedade na conjuntura social. Neste entendimento, a interação entre as pessoas não se limita à legislação, será necessário também que o consentimento e a vontade faça parte dos acordos ou contratos feitos entre as partes, porém, apesar de necessário, não é suficiente para chegar a algo justo, com benefícios equânimes e mútuos.

      Para Sponville (2016), o filósofo político John Rawls, em seu livro a teoria da justiça, afirma que muitas vezes as pessoas subentendem que o fato de haver um contrato ou acordo previamente estabelecido ele necessariamente será justo e que ali não há qualquer tentativa de enganação, todavia, estes contratos ou acordos não levam consigo qualquer tipo de moralidade, não precisa ser justo para ambos, e nada garante que seja tal como se pretende, portanto, mesmo quando há consentimento e voluntariedade, a justiça ou algo justo é incerto, assim, dois problemas morais aparecem: não há qualquer garantia que um trato será equânime e não há obrigação moral nele para sua execução ou continuidade dele. Há situações onde o acordo feito entre as partes está baseado na legislação, há vontade e consentimento e mesmo assim é injusto porque vontade e consentimento não bastam.

      Para que um acordo seja realmente justo, onde não haja barganha e desvantagem, principalmente quando o contratado possua mais conhecimento do que o contratante, dois ideais morais são importantes: autonomia e reciprocidade, mas infelizmente um contrato nestas condições é uma exceção e raramente é levado a sério. Se for realizá-lo com alguém que queira ter vantagem além daquilo que merece, é bem provável que se aproveite de alguma fraqueza para tirar proveito, sendo assim, não haverá justiça em qualquer condição do contrato. A solução para esta celeuma é fazer com que as pessoas possam ser empáticas, como se fossem puramente iguais em vários sentidos, mantendo o respeito e a integridade do próximo em qualquer situação contratual, isto é,

 

nem egoísmo nem altruísmo, mas a pura equivalência dos direitos atestada ou manifestada pela intercambiabilidade dos indivíduos. Trata-se de que cada um contar por um, como se diz, mas isso só é possível – pois todos os indivíduos reais são diferentes e apegados a seus interesses próprios, que os opõem – desde que cada um possa colocar-se no lugar de qualquer outro, e é a isso que leva, de fato, o véu de ignorância que deve, segundo Rawls, caracterizar a posição original: cada um, ignorando quem ele será, só pode procurar seu interesse no interesse de todos e de cada um, e é esse interesse diferenciado (esse interesse ao mesmo tempo mutuamente e, pelo artifício do véu de ignorância, individualmente desinteressado!) que podemos chamar de justiça ou que permite, em todo caso, nos aproximarmos dela (SPONVILLE, 2016, pag. 72)

 

      Vestido pelo “véu de ignorância” é hipoteticamente possível pensar, numa perspectiva social, na justiça em que a equidade dá às pessoas a posição original, isto é, poder e conhecimento equiparado a ponto de não existir tanta diferença entre ambos, onde as forças se cancelam, as pessoas não sabem que parte da sociedade elas fazem parte, bem como, desconhecem de que forma seus atributos inerentes, tais como inteligência, resistência física, são aproveitadas como recursos nos diversos contextos sociais, por isso

 

é evidente que a justiça é socialmente útil e, até, socialmente indispensável, é evidente; mas essa utilidade ou essa necessidade sociais poderiam limitar totalmente seu alcance. Uma justiça que só valesse para os fortes seria injusta, e isso mostra o essencial da justiça como virtude: ela é o respeito à igualdade de direito, não de forças, e aos indivíduos, não às potências (SPONVILLE, 2006, pag. 93).

 

      É bem verdade que as pessoas nascem em condições que muitas vezes não desejam, ninguém tem culpa de ter nascido em um lugar pobre, sem saneamento básico, etc. e isto influencia diretamente na vida de cada um de forma negativa ou positiva, depende da posição social cuja pessoa nasça, não há mérito ou demérito para estas situações. Certamente, por mais que se queira, somente leis não garantirão que pessoas possuam uma qualidade de vida melhor ou que, pelo menos, seja igual àqueles que não nasceram em condições desfavoráveis. Mas, se uma sociedade possuir nela princípios de uma justiça como equidade, esta será capaz de corrigir as leis, equilibrando as divergências e adaptando as necessidades de todos a tal ponto que as pessoas façam isso por outras de forma voluntária, isto é, sem a necessidade de uma legislação que lhe obrigue a fazer.

 

4 – CONCLUSÃO

 

      O homem justo é aquele que se sacrifica em prol da justiça, respeitando as leis à medida que busca a igualdade e a equidade para contornar as desigualdades. Não há como, por exemplo, um agente servidor público responsável pela segurança realizar suas funções de forma profissional sem antes não entender algum conceito de justiça. A lei pode até ser um norteador, mas se não for justa, nada mais é que um ordenamento que mais atrapalha do que ajuda, porém pode ser corrigido por pessoas justas em cooperação com outras a partir de um sistema equitativo político de uma sociedade democrática. Portanto, conquistar a justiça com uma concepção de bem nos leva a duas conclusões: que o cidadão bem engajado na sociedade tem pensamento político que luta pelas garantias das liberdades, e, busca assegurar que tais direitos sejam realizados da melhor maneira possível.

 

REFERÊNCIAS

 

  • COMTE-SPONVILLE, A. Pequeno tratado das grandes virtudes. 3ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 2016;

  • COMTE-SPONVILLE, A. ; FERRY, L. A Sabedoria dos Modernos. São Paulo: Martins Fontes, 1999;

  • RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Título original: A Theory of Justice);

  • SEN, A. A ideia de Justiça. Tradução: Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

1[email protected]