Meu amigo alemão não é alemão e nem fala a língua de Goethe, mas era assim que o chamávamos, pois seu pai era alemão, mas a mãe era brasileira de origem italiana. O pai,  seu Walter, contava ele, chegou da Alemanha nos anos quarenta pelo Rio de Janeiro. Sem dinheiro, sem falar português, acabou morando em uma favela e passou uma semana comendo bananas, a única coisa que dava para comprar com seus parcos recursos. Depois acabou se estabelecendo em São Caetano do Sul, onde  montou uma serralheria e se casou. A mulher morreu cedo vitimada por um câncer, deixando-o com três filhos menores.

Edson Broesdorf acabou morando a uma quadra de minha casa e foi no retorno do colégio que acabamos nos conhecendo. Tempos depois nos envolvemos no movimento estudantil com outros estudantes do ABC. Frequentávamos uma igreja em Santo André, que era uma espécie de quartel general do movimento contra a ditadura, onde se reuniam os mais diferentes grupos políticos, desde trotskistas, stalinistas, maoístas, nacionalistas, esquerda cristã, PCB, PCdoB entre outros. O padre Rubens Chasseroux, que era nosso professor de religião no colégio, deslizava e acolhia todos os grupos e todas as tendências. Suas missas eram heterodoxas, com músicas, discursos e poesia. Foi lá que aprendemos que a classe operária um dia iria para o paraíso, ouvindo palestras de militantes e revolucionários. Numa dessas palestras um camponês do Maranhão contou a sua saga de resistência no Estado de José Sarney, quando as plantações eram pisoteadas pelo gado dos grandes fazendeiros. Ouvíamos as narrativas do pessoal da Ação Popular que defendiam a tese de que o Brasil era um país feudal e que precisava fazer, primeiramente, a revolução burguesa antes de avançar para o estágio do socialismo.

Deslizávamos por entre as várias ideologias, mas tenho a impressão de que  pouco nos comprometíamos de forma verdadeira. Distribuíamos panfletos, participávamos de passeatas relâmpagos, reuniões e mais reuniões. Levados por um militante de esquerda, fomos, eu e o Alemão, em um colégio no Morumbi, onde participamos de um seminário com o sociólogo Florestan Fernandes. O grupo era de universitários e éramos os únicos colegiais, mas marcamos presença nos debates por causa da nossa vivência com grupos de esquerda.  Algumas vezes dois frades dominicanos  iam na igreja e faziam palestras e cantavam músicas do Geraldo Vandré.  Certa vez  grupo leninista propôs que nos engajássemos na luta armada, chegando a nos levar para um treinamento de tiro. Mas ficou nisso e adiamos para outro século a felicidade coletiva.

Uma atividade que foi interessante naquela época foi a leitura de O Capital de Karl Marx, que era dirigido por um militante trotskista com o codinome de Plinio, estudante de Geologia na USP que havia participado do famoso congresso de Ibiúna, quando foi preso.  Foram meses nas tardes de sábado lendo e discutindo o livro juntamente com o Rubens Braggion e Paulo Frasson. Estávamos quase nos especializando em Marx quando o tal de Plinio desapareceu. Todos éramos ateus nessa época, apesar de frequentarmos a igreja do Padre Rubens e assistirmos as missas. Com os dominicanos chegamos a participar da "Santa Ceia" dividindo o pão e tomando vinho na missa dominical.  O Alemão dizia: “Que sentido teria a vida se ela fosse eterna”, depois de algumas horas contemplando o céu estrelado. Sempre achei que o Alemão era o materialista mais consciente da turma, mas descobri, recentemente, que foi cooptado pela metafísica. Outro do grupo, o Paulo Sérgio Frasson se engajou no movimento carismático da igreja católica.

Nessa época fazia-se algumas loucuras, impensáveis hoje, como quando  eu e o alemão resolvemos passar a noite na Paulicéia, dormindo em bancos de jardim. Pegamos o trem e descemos na Estação da Luz. De lá fomos para a região da antiga rodoviária, hoje dominada por viciados em craque.  Ficamos por lá até o dia amanhecer pegando o primeiro trem para São Caetano. Paramos numa velha padaria próxima à estação para comer pão quente e tomar café com leite. Às vezes acampávamos no alto da Serra, na estrada velha de Santos, apenas com um cobertor e passávamos a noite contando estrelas, pois com o frio e a umidade era impossível dormir. Lá planejávamos como seria o Brasil depois que tomássemos o poder.  Sonhávamos também com mulheres bonitas, revolucionárias e adeptas do amor livre.

Foi com o alemão que passei uma das piores experiências de minha juventude, quando um livro que ele havia pego na biblioteca do bairro caiu atrás de uma delegacia em São Bernardo. O problema  não era o livro, mas os panfletos que estavam dentro. O Silvestre, um italiano corajoso, pulou o muro e passou o livro, mas foi preso lá dentro. Tiramos os panfletos e fiquei com o livro esperando o Silvestre. Enquanto isso todos desapareceram, inclusive o alemão. Felizmente consegui convencer os policiais que estávamos esperando umas garotas quando o livro caiu e era de um amigo que havia me emprestado. O livro era o Escândalo do Petróleo e do Aço do Monteiro Lobato. O Silvestre quase morreu de medo e tremia como vara verde. Descobri que a coragem dele passou rápido depois que ficou detido pelos policiais. Até hoje ainda não consegui descobrir como consegui manter a calma, o que nos salvou e problemas maiores.

Foi o Alemão que comprou o primeiro carro da turma. Era um charmoso  fusquinha 1954, importado, com a janela traseira dividida em duas. Como ele era muito generoso, não se importava em levar a turminha para todos os lados.

O Alemão era bom de prato e traçava tudo que aparecesse em sua frente, mas o seu predileto era um bife à parmesiana com bastante molho, que ele devorava num velho restaurante da Rua Amazonas.  Bebia cachaça e cerveja e não se alterava. Era o tipo de pessoa que enchia a cara e ficava alegre. Escrevo no passado porque hoje ele está com um sério problema no fígado e precisa tomar seus cuidados para não partir antes da hora. 

Alemão, Cris ou Edson, eis um retrato 3 x 4 de um sujeito 30 x 40, onde não falta generosidade e simpatia.