Tunica

De cócoras em um recanto de parede, a pobre Tunica via seus dias passarem com muita amargura. Estava com câncer nos pulmões. Aquele era o ano de 1970 e o lugar era o Sítio São Diogo.

Tunica começou a fumar aos sete anos de idade e só parou aos quarenta, quando descobriu que estava com câncer, infelizmente, tarde demais. Ela era casada com Fernando, um homem violento, que às vezes lhe batia. Ele não apoiava a mulher e desde que soube que ela estava com essa doença maligna, abandonou a pobre esposa, indo morar com seu irmão, no pé da serra daquele sítio.

Eles tinham uma filha, que era casada e residia em São Paulo. Ela e o esposo haviam  partido a procura de uma vida melhor, já que no São Diogo, viviam em situação de miséria.

Tunica morava sozinha, aliás, era só na vida. Sempre fora, desde sua sofrida infância. Aos cinco anos, perdeu a mãe, aos nove, o pai. Foi criada pelos avós, que eram pessoas secas por dentro, incapazes de um gesto de carinho para com a criança. Nunca a colocaram no colo.

Seu avô, um homem carrasco, batia-lhe, além de obrigá-la a trabalhar, lavando louça, roupas e moendo milho. Muitas vezes, ela dormia chorando por não ter uma mãe, que zelasse por seu bem estar.

Aos dezoito anos, casou praticamente obrigada pelo avô, que não queria sustentá-la por muito tempo. Ele mesmo arranjou o noivo para a neta.

Seu casamento sempre foi muito amargo, ela apanhava e nem imaginava o que fosse amor. Tunica nunca foi feliz.

E quando descobriu a doença, veio o abandono do marido, o que lhe tornou ainda mais triste. Ela dizia para sua amiga, Mila:

_Ruim cum ele, pió sem ele.

Mila era amiga e vizinha de Tunica. Em outras palavras, era seu anjo da guarda. Cuidava da doente e ainda ouvia-lhe.

_Se num fosse ocê, eu já tava morta. Dizia a mulher de Fernando.

_Sou sua amiga e não vou lhe abandonar jamais.

A amiga de Tunica além de conversar com ela, levava sempre  comida para a mesma. É que a pobre enferma não tinha forças para ir até o fogão. A doente vivia de cócoras, pensando na vida e queixando-se de seus males. Às vezes, batia-lhe uma esperança de ver seu marido voltar para casa. E então, ela não tirava os olhos da estrada, para ver se ele vinha. Mas os dias passavam e Fernando não aparecia.

A única visita que ela recebia era Mila. Esta, levava  sempre um prato de sopa ou um delicioso angu. E também a orientava a tomar os remédios no horário certo. Essa mulher sofria muito por saber que a amiga não viveria mais nem um ano. Mila chorava quando chegava em casa, temendo o dia em que veria Tunica morrer.

O tempo passava e Mila via sua amiga chegando ao estado terminal. Ela já não conseguia ficar de cócoras, agora estava deitada na sua cama velha e empoeirada, e sabia que dela não mais levantaria.

_Mila, chami Fernando, diga pra ele qui tô  morreno.

_Pra que chamá-lo? Ele sempre lhe bateu, nunca existiu amor entre vocês. Não. Não vou chamá-lo.

_Eu quero qui ele venha. Priciso vê ele ante de morrer.

_Para que se humilhar mulher, já não basta o tempo que você viveu com ele?

Mila não resistiu na sua decisão por muito tempo, ao ver a amiga com um pé na vida e outro na morte, chamando pelo marido, teve pena e foi buscá-lo.

O homem  era tão ríspido, que só obedeceu ao chamado da mulher, porque o irmão pediu que ele fosse com Mila.

Ao ver Tunica nas últimas, Fernando não sentiu nada, apenas lhe observou fixamente. Já a enferma, chorou muito e estendeu-lhe a mão, no entanto, ele negou-lhe um último aperto de mão.

_Por que ocê sempre foi assim cum eu, Fernando, eu nunca lhe fiz nada, nenhum má Eu quis lhe vê pra me dispedí e te perduá por toda as surra.

_Eu não tô te pedino perdão.

Nesse momento, Mila entrou no quarto e ordenou que Fernando fosse embora. E então, ele obedeceu, sem ter nenhuma piedade da moribunda.

Tunica agonizava e naquela hora, que era a hora da morte, veio-lhe na mente, uma triste lembrança de sua infância:

Tunica quando criança, adorava açúcar, por isso,  antes de dormir, costumava comer uma colher do açúcar de sua avó. Um dia, a malvada trocou a lata do açúcar pelo sal, de propósito. Quando a menina colocou a colher na boca, era sal e então, foi dormir chorando.

Maria do Socorro Abrantes Sarmento