TUDO É POESIA
Nazaré, 25-10-1973

Para um poeta,
Tudo é motivo para poesia.
Até a fome!
Há poesia na fome?
É claro que há
Pois, há fome na poesia
Até a guerra tem poesia.
Os barulhos das metralhadoras
Fazem a música da guerra,
E música é poesia.
Também na morte há poesia.
Quando morre um poeta,
De morte doce e poética,
É motivo para poesia.
Tudo o que o poeta vê,
Tudo o que o poeta faz,
Tudo o que o poeta sente,
Tudo o que o poeta sofre
É transformado em poesia.
Para o poeta,
Até a hora de sua morte,
Para que os outros não chorem,
Ele transforma a sua morte
Num doce sofrimento.
E o sofrimento é a poesia,
Na alma dos poetas sofredores.
Uma poesia, uma mulher nua,
Um riacho correndo,
Uma mulher tomando banho,
Um poeta olhando,
A lua iluminando o riacho
Mulher nua, riacho, banho...
Poeta, lua, poesia...

Se eu ando pelas ruas,
Às três da madrugada,
No céu a lua brilha,
Cá embaixo nas matas
Há uma mulher nua
Junto à manada,
Que segue a sua trilha.
Passam perto das cascatas
E seguem o seu caminho,
Fazendo um barulho enorme;
Passam embaixo das cascatas
Caem na água, sem medo,
Atravessa o redemoinho,
O poeta está vendo
A manada com suas marcas
Que já chegaram ao lajedo.
E seguiram seu caminho sem fim
Chegando na outra margem.
A manada sobe o barranco,
Seguem seu triste destino.
Agora, por entre a folhagem
Toma o caminho do arvoredo,
Deixando a mulher nua para trás.
João vai montado na égua,
Tocando a boiada furiosa.
Enfim, encontra Maria.
Por fim, ele tem uma trégua.
O poeta observa Maria, toda dengosa
E pensa: Tudo é motivo para poesia.

Para um poeta,
Tudo é motivo para poesia.
Até o movimento da cidade,
Aquele barulho horrível.
Ele observa o estafeta
Entregar uma carta a Joana.

Ela agradece por bondade.
Ela é feia e emperrada,
Mas é motivo para poesia.
Um cachorro ladra, distante
Na trilha de uma cutia.
O poeta sempre sereno,
Mas seu coração está batendo.
E o que ele pensa nesse instante,
Que tudo é motivo para poesia.
O mar bate na praia,
Nas palmeiras bate o sol,
Perto da praia um homem toma banho,
O seu cachorro também.
Um pescador fisga uma raia
Com seu heróico anzol.
Uma donzela com assanho,
Mais alem a correr,
Dizendo que quer o sol.
O sol que é bonito
Brilha e ofusca as vistas.
Um rapaz com um cabrito
Quer chamar a atenção das turistas.
Pedro beija Vivian,
Jaime beija Joana,
Jose beija Lilian
Romero beija Suzana,
João beija Mirian
Roberto beija Siana.
O poeta beija o vento
Que é seu único sustento,
Neste grande momento
Também aprecia,
Com imensa alegria,
Romeu beijar Sofia.
Então, pensa sorrindo
Que tudo aquilo que ver,

Que tudo aquilo que sente,
É motivo para poesia.
Se o homem espanca o homem
Com suas garras assassinas,
E o poeta presencia o fato
Com profunda tristeza
Mas, apesar da tristeza
O poeta pensa com rancor
Que até esse fato,
Bruto e ingrato,
É motivo para poesia.
Se o poeta passa na praça,
E ver um discurso político
Dos homens da direita,
Ele logo pensa
Que aquilo é uma das coisas
Que possui o subdesenvolvimento.
O político grita bem alto
Que ele controla a situação,
Seja ela qual for,
Até uma guerra nuclear.
Ele saberá controlar
Com toda a habilidade,
Com esperteza e com astucia,
De todo político do subdesenvolvimento,
Dos países subdesenvolvidos,
Das terras analfabetas,
Dos povos que dão frutos.
Frutos raquíticos
Sem presente, passado ou futuro,
Sem comida, água ou dinheiro,
Com fome, miséria e sujeira.
Com pés descalços e com machados.
Tudo isso por que
O barrigudo e careca político,
Soube controlar a situação

Com dinheiro e gestos de mãos,
Sempre controlando a situação
Que é observada pelo poeta,
E se transforma em poesia.
Humor negro, talvez.
Mas sincero de coração.
Se os chorões cantam nas baixadas
E os lobos uivam nas montanhas,
Se os homens da cidade grande,
Andam de ouvidos tapados
Com o fim de não ficarem loucos
Com as buzinas e auto-falantes,
Que muito contribuem,
Com a felicidade da minoria
E a desgraça da população,
Que é a maioria,
É motivo para poesia.
Se a carne sobe de preço,
Se a pesca foi proibida,
Se o peixe é para a elite,
Se a caça foi proibida,
Tende piedade de nós
Pois, até a morte de fome
É motivo para poesia.
Poesia mal alimentada
De versos, palavras e rimas
Poesia sobre a fome,
Mas é sempre poesia.
Se uma luz se acende,
Se um casal entra num quarto,
Se uma luz se apaga,
Se dois corpos rolam na cama,
Se dois corpos gemem de prazer,
Se a vida deu prazer àqueles corpos,
Se uma luz torna a acender-se,
É motivo para poesia.