Aconteceu há muito tempo. Ponto de ônibus lotado às seis e meia da manhã em um bairro de Olinda. Era o horário em que estudantes e trabalhadores se aglomeravam à espera dos ônibus que os levariam para os seus respectivos destinos.

Lá na esquina, aproveitando o restinho de sombra de um poste, o cachorro vira lata dormia displicentemente. Seu pelo era quase da cor de mostarda, rabo fino, algumas cicatrizes e um jeitão malandro, tarimbado de viver na rua.

De vez em quando o barulho das conversas o fazia erguer as orelhas, levantar a cabeça e olhar curiosamente em busca do autor da voz mais estridente dentre aquela pequena multidão à espera de transporte.

-Estudou para a prova? - pergunta um adolescente desengonçado, óculos de grau fortíssimo e mochila de quase uma tonelada, como se carregasse toda a biblioteca pública nas costas.

-Estudei até a meia noite. E pela sua cara, você nem deve ter estudado. - responde uma mocinha de aspecto meigo.

-Nem precisei. O assunto da prova de hoje é muito fácil.

-Fácil pra você que é CDF.

-Ah, vai dizer que você ainda não aprendeu trigonometria?

-Eu ainda me enrolo pra calcular o seno da soma de dois ângulos.

-Pois eu vou te dar uma dica que vai te salvar e você vai me amar por isso.

A essa altura, o vira lata já entediado com aquele papo numérico, levanta lentamente e dá aquela espreguiçada em que a coluna fica parecendo um arco e a barriga quase encosta no chão. Caminha calmamente para o ponto de ônibus e mira o rapazinho nerd, que vaidoso, se preparava para recitar a salvação de sua amiga:

-Presta bem atenção:  - Diz ele.

O vira lata chega mais perto, nem se importando com tanta gente.

-Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá... – prossegue o rapaz, empolgado.

-Seno A cosseno B, seno B cosseno A.

Agora o cãozinho vagabundo não tem dúvidas: o moleque desajeitado é mesmo o dono da voz de alto-falante. Ele então levanta a pata esquerda e despeja o xixi quente matinal na perna do Don Juan da matemática. Ali, na frente de todo mundo.

-Sai pra lá, cachorro!!!

O bichinho dispara apressado, mas logo diminui o ritmo, certo de que não seria seguido. Dá uma olhadinha debochada pra trás e segue o seu caminho para mais um dia de vadiagem, feliz da vida por ter se vingado pelo sono perdido.

Saiu provavelmente mergulhado em elucubrações caninas, tentando encaixar a palavra xixi em algum ponto da obra prima de Gonçalves Dias.