Reverter ou Não ao Ritmo Sinusal?

Estudos recentes vem demonstrando que controlar a freqüência cardíaca associada à anticoagulação plena é uma conduta que pode ser implementada em pacientes com fibrilação atrial  com resultados tão favoráveis quanto a reversão ao ritmo sinusal. Do ponto de vista de sintomatologia, redução dos riscos de embolia periférica e até mesmo a mortalidade, não são diferentes com ambas abordagens. Deve-se ressaltar que o risco de feitos colaterais graves, como surgimento de taquiarritmias ventriculares polimórficas do tipo torsades de pointes, chance de reinternações hospitalares e até mesmo de óbito tende a ser mais comum nos pacientes qu fazem uso de fármacos antiarrítmicos para a prevenção das recorrências, em comparação ao grupo de pacientes que apenas realiza o controle da resposta ventricular. Estes achados talvez nos faça pensar que a conduta de se restabelecer o ritmo sinusal não deva ser considerada, não somente pelos riscos mas também por ser mais "trabalhosa" (internação hospitalar e necessidade de anestesia geral nos casos de cardfioversão elétrica).

As informações destes estudos são aplicáveis ao perfil de paciente que fez parte da amostra. No caso do estudo AFFIRM por exemplo, idade acima de 65 anos, com fatores de risco para embolia periférica, fibrilação atrial crônica ou recorrente eram os requisitos mínimos. Entretanto, o que se encontra na clínica muitas vezes, são pacientes com idade inferior a 65 anos, muitas vezes sem fatores de risco para embolia periférica, portadores de valvopatia mitral ou miocardiopatia e que desencadeiam a fibrilação atrial pela primeira vez. Não há qualquer estudo que aborde a maneira de se atuar nessa classe de pacientes. Por outro lado, é possível que o paciente tenha a fibrilação atrial por apenas uma única vez e permanecer com ela indefinidamente. Este pciente deveria ser mantido em fibrilação atrial sendo controlado apenas a freqüência cardíaca ?

Definitivamente o que se pode perceber do estudo AFFIRM é que para aquela população específica, o controle da freqüência ventricular parece eficaz, provavelmente porque a arritmia se estabeleceu dentro de um substrato de difícil  tratamento. As modificações da matriz eletrofisiológica e histológica atriais são tão intensas que não existe local adequado para o antiarrítmico atuar e normalizar o ritmo cardíaco. Ou então, os fatores instabilizadores do substrato arritmogênico não foram satisfatoriamente identificados e o antiarrítmico administrado isoladamente não pode exercer seu efeito. É possível que pacientes na faixa etária avançada apresentem tanta modificação do tecido atrial que provavelmente estaríamos lutando contra algo que já está determinado para acontecer, ou seja, o estabelecimento crônico da fibrilação atrial. Em pacientes mais jovens, contudo, com crises iniciais, de curta duração ou até memso fibrilação atrial recente (duração menor que 1 ano), é provável que aquelas alterações definitivas do miócito atrial ainda não estão presentes e por esta razão, o restabelecimento do ritmo sinusal possa restaurar a condição atrial normal ou pelo menos impedir ou retardar a progressão de algo que deverá acontecer se nada for feito. Por esta razão não está errado admitir que o restabelecimento do ritmo sinusal em casos selecionados, particularmente o tratamento de  episódios agudos ou de casos que vem evoluindo há pouco tempo devam ser abordados com maior agressividade. Na verdade, a filosofia de tratamento com o desfibrilador automático atrial, ou até mesmo a ablação de focos de taquicardia que instabilizam a atividade elétrica atrial e culminam com fibrilação atrial, baseia-se fundamentalemente na prevenção do surgimento de um substrato arritmogênico  que perpetue a arritmia.

O tratamento da fibrilação atrial tem três objetivos fundamentais: a) aliviar os sintomas; b) prevenir tromboembolismo; c) prevenir insuficiência cardíaca.  Na luz dos conhecimentos atuais poder-se-ia inserir neste contexto que o tratamento visa prevenir o surgimento de um substrato arritmogênico efinitivo que favoreça a perpetuação crônica da fibrilação atrial. O tratamento pode ser dividido em duas fases: das crises agudas e prevenção de recorrências.

Tratamento do Episódio Agudo

Quando o pacienta evolui com colapso hemodinâmico, caracterizados por pele fria, sudorese profusa, palidez cutânea, cianose de extremidades e perda de conciência, está indicada a cardioversão elétrica de urgência. Alguns estudos têm recomendado cargas iniciais de 200 joules por se apresentarem mais eficazes para o restabelecimento do ritmo sinusal na grande maioria dos casos.

Em pacientes assintomáticos, deve-se considerar o tempo de duração da arritmia, pois nos episódios com duração menor que 48 horas, os riscos de tromboembolismo periférico são menores e por esta razão a cardioversão, elétrica ou química pode ser tentada sem a necessidade de anticoagulação preventiva23. Esta afirmação contudo é válida para pacientes sem valvopatia mitral ou sem os fatores de risco para trombose atrial. Os pacientes com fibrilação atrial de longa duração deverão seguir esquema de anticoagulação , conforme será descrito mais adiante.

É importante ressaltar que a necessidade de cardioversão da fibrilação atrial em pronto socorro deve ser avaliada individualmente. Já foi demonstrado que em 70% dos casos a arritmia reverte espontaneamente quando apresenta duração menor que 72 horas24. Além disso, o aspecto econômico de tal conduta deverá ser considerado, pois serão economizados gastos com a internação, hospitalização e o próprio procedimento de reversão da arritmia.

Quando opta-se pelo controle da resposta ventricular, devem ser utilizados fármacos que retardam a condução pelo nódulo atrioventricular5. Os agentes mais empregados são com este objetivo são os seguintes (tabela 1): a) lanatosídeo C 0,4 a 0,8 mg, repetido a cada 2 a 4 horas até no máximo 2,0 mg ao dia; b) verapamil 5 mg, repetido 20 a 30 minutos depois, se necessário; d) diltiazem 0,25 mg/kg, infundido em 10 minutos; e) amiodarona, 150 a 300 mg (5 a 10 mg/kg), infundida em 20 minutos; f) metoprolol 5,0 mg em 5 a 10 minutos, repetido até no máximo 15 mg. O verapamil, diltiazem e metoprolol não devem ser administrados a pacientes com disfunção ventricular ou com sinais clínicos de insuficiência cardíaca, devido ao alto risco de agravamento do distúrbio hemodinâmico.

O controle da resposta ventricular não significa redução da frequência cardíaca. O débito cardíaco na fibrilação atrial é parcialmente reduzido (20 a 30%) pela ausência da contração atrial. O mecanismo reflexo utilizado pelo sistema cardiovascular para compensar esta perda, é exatamente a elevação da freqüência ventricular de 20 a 30%. Há uma frequência cardíaca ótima na qual o débito cardíaco é máximo (abaixo de 90 batimentos por minuto em alguns e, entre 90 e 140 batimentos por minuto em outros)26. Se a freqüência estiver muito acima ou muito abaixo, mesmo que esta última pareça controlada, poderá haver comprometimento hemodinâmico do paciente. 

Tabela 1  - Dose de medicamentos empregados por via venosa, no controle da resposta ventricular na fibrilação atrial

Medicamento

Dose

Cedilanide

Verapamil

Diltiazem

Amiodarona

Metoprolol

   0,4 - 0,8 mg

   5 - 10 mg

   0,25 mg/kg

5 - 10 mg/kg (150 - 300 mg)

5 a 15 mg EV

Conduta para Reversão da Fibrilação Atrial Crônica ao Ritmo Sinusal

Um dos maiores dilemas em cardiologia é a reversão ou não da fibrilação atrial ao ritmo sinusal em todos os pacientes acometidos. Esta arritmia é reponsável pelo surgimento de sintomas recorrentes  tais como palpitações e falta de ar; desencadeamento de insuficiência cardíaca secundária à frequência cardíaca rápida e irregular; maior risco de tromboembolismo periférico pela dilatação atrial e estáse sangüínea atrial e aumento da morbi-mortalidade em indivíduos acima de 65 anos. Além de normalizar todas estas condições citadas, a decisão da reversão dependerá de outros fatores, tais como: a) índice de sucesso da reversão, química ou elétrica; b) das complicações de ambos os procedimentos; c) da tolerância ao uso de antiarrítmicos para a manutenção do ritmo sinusal; d) do risco de efeito pró-arrítmico dos agentes antiarrítmicos.

O restabelecimento do ritmo sinusal, teoricamente reduz os riscos de miocardiopatia desencadeada pela freqüência rápida e irregular (taquicardiomiopatia) dando ao paciente uma sensação de bem estar após o alívio dos sintomas.  A redução e a regularização da resposta ventricular melhoram a performance ventricular e a fração de ejeção. Não há evidências definitivas de que o risco de embolia periférica seja reduzido com o restabelecimento do ritmo sinusal, pois a formação de trombos pode ser secundária à cardiopatia subjacente e não a arritmia propriamente. Um dado indireto que sugere ser a fibrilação atrial a causa da formação de trombos é a redução de acidente vascular cerebral em pacientes com sídrome "taquicardia-bradicardia" quando são tratados com marcapasso definitivo e não mais apresentam fibrilação atrial paroxística.

A ausência de sintoma, ou a sensação de bem estar são relatados quando os pacientes são tratados, quer com a redução da freqüência cardíaca ou com o restabelecimento do ritmo sinusal. A melhora da qualidade de vida baseada em questionários que exploram vários aspectos da vida dos pacientes é inegável.

Um aspecto da maior importância é a aplicabilidade prática da conduta de se reverter e manter o ritmo sinusal em pacientes com história de fibrilação atrial crônica. Na nossa experiência, o índice de sucesso da reversão química ambulatorial da fibrilação atrial varia de 47 a 61% utilizando-se fármacos do grupo IA, IC ou III, isoladamente ou em associação. A cardioversão elétrica apresenta sucesso ao redor de 85%. A maior dificuldade, no entanto, é manutenção do ritmo sinusal pós-reversão. Num estudo aberto, prospectivo por nós realizado envolvendo 132 pacientes (idade média de 57±13 anos) com fibrilação atrial crônica (> 15 dias) que submeteram-se à reversão química com quinidina ou amiodarona,   a manutenção do ritmo sinusal foi de 56% para a primeira e 51% para a segunda, com duração média de 16,4±14,8 meses de seguimento. Estas diferenças não foram estatisticamente significativas (p=0,67)27. Em outras palavras, embora se consiga restaurar o ritmo sinusal em mais da metade dos casos, ao final de pouco mais de 1 ano, cerca da metade desta população terá conseguido sustentar este ritmo. Isto torna a conduta da reversão pouco prática e, teoricamente de maior risco considerando-se os efeitos pró-arrítmicos de alguns medicamentos.

Deve-se ressaltar que ainda hoje faltam evidências conclusivas de que esta conduta de reverter a fibrilação atrial a ritmo sinusal deva ser preconizada a todos os pacientes. É possível no entanto, que alguns casos selecionados possam se beneficiar da reversão, mas o perfil clínico deste paciente ainda não foi estabelecido. Na tentativa de se estabelecer um protocolo de reversão que beneficiasse a maioria dos pacientes, ou seja, os mantivesse o maior tempo possível em ritmo sinusal, Lawson-Mathew e cols definiram que o paciente ideal preencheria as seguintes condições: a) fibrilação atrial com duração menor que 48 horas, a qual seria submetida à cardioversão química e o paciente depois  mantido com sotalol ou amiodarona; b) fibrilação atrial com duração maior que 72 h mas menor que 12 meses, seria submetida a cardioversão elétrica e posteriormente o paciente mantido com os mesmos antiarrítmicos já citados; c) em ambas as condições os pacientes não deveriam ser portadores de valvopatia, tireoidopatia, disfunção ventricular e dimensão de átrio esquerdo menor que 50 mm. Com esta abordagem a reversão global ao ritmo sinusal foi observada em 91% dos pacientes e a probabilidade de manutenção deste ritmo aos 6, 12 e 24 meses foi de 0,92, 0,88 e 0,73 respectivamente28. É importante ressaltar contudo, que tal protocolo deixaria de fora uma grande quantidade de pacientes com diferentes tipos de cardiopatia e estado de função ventricular. Além disso, o tamanho do átrio esquerdo não deve ser um critério para se decidir pela cardioversão química ou elétrica da fibrilção atrial29.

Cardioversão Elétrica

O índice de sucesso de reversão da fibrilação atrial a ritmo sinusal varia de 85 a 90% com este método. Um protocolo por nós utiizado há vários anos é a aplicação seqüencial de 100, 200, 300 e 300 joules/s, sendo interrompida quando o ritmo sinusal é restabelecido ou quando o protocolo é completado. As arritmias mais freqüentes, após a cardioversão elétrica, são as extra-sístoles atriais que duram de alguns segundos a alguns minutos, desaparecendo espontaneamente. Se persistirem, podem induzir novamente a fibrilação atrial. Outras alterações do ritmo são: bradicardia sinusal, bloqueio ou pausas sinusais com ritmo juncional de suplência. Estas não são raras em pacientes que fazem uso de beta-bloqueadores ou apresentam doença do nódulo sinusal.

A administração prévia de antiarrítmicos, pode assegurar maior sucesso da cardioversão elétrica, embora isto não tenha sido definitivamente confirmado. A quinidina ou disopiramida nas doses terapêuticas habituais, pode ser administrada dois a três dias antes do procedimento. O objetivo é a prevenção de recorrência quando há extra-sístoles atriais logo após a reversão. Na nossa experiência a administração de antiarrítmicos previamente à cardioversão elétrica não aumenta o índice de sucesso do procedimento30 . Um estudo que utilizou propafenona por via oral antes da cardioversão elétrica, deomonstrou que a intesnidade de cargas para o restabelecimento do ritmo sinusal é menor quando a fibrilação atrial se transforma em flutter atrial.

O uso de digital não contra-indica a cardioversão elétrica, e não é necessária a sua suspensão previamente25. Esta só é justificada quando há suspeita clínica de intoxicação digitálica. O risco de intoxicação digitálica é maior quando há uso concomitante de quinidina ou amiodarona, ou quando ocorre hipopotassemia em pacientes em uso de diuréticos.

De acordo com um estudo multicêntrico prospectivo sobre o tratamento da fibrilação atrial realizado no Estado de São Paulo, ficou claro que cargas inciais de 200 joules reverteram a maioria dos casos de fibrilação atrial31.