Quando criança eu costumava ouvir minha mãe cantar uma música daquela época, da qual algumas pessoas do meu tempo ainda se recordam. A música era assim: "eu fui às touradas em Madri (parara-timbum-bum bum! Parara-timbum-bum-bum - Eee quase não volto mais aquiiii - Pra ver Periii ? Beijar Ceci - Parara-timbum-bum-bum. Quando se falava em tourada, eu imaginava que fosse uma coisa muito linda, com homens vestidos com roupas brilhantes e coloridas, exibindo um pano vermelho para enfurecer um grande touro negro de chifres enormes, que corria atrás dele enquanto a platéia aplaudia e gritava oléee! Olée! Em livros escolares eu vi algumas dessas gravuras.
Havia também uma outra canção, que se intitulava Manolita. Esta falava de uma história de amor entre uma jovem e um toureiro que lhe jurava amor por toda a vida, e que viajara à Madri para fazer uma tourada. Porém, o final da canção descreve a jovem com o coração angustiado, que ouve da cartomante a triste revelação do Valete, de que o seu amado, atingido pelo touro, naquela tarde acabava de expirar. E pede à jovem que reze por ele na paz, porque "as cartas não mentem jamais".
A canção era uma valsa linda mas, ao ouvi-la, o meu coração se contraía de emoção e não agüentando mais, sempre findava me debulhando em lágrimas, imaginando o rapaz ferido, estendido no chão, morto e ensangüentado, pisado pelo touro. Era muito triste. E eu também sofria pelo sofrimento da moça que o amava. Só que naquele tempo eu não sabia, nem poderia imaginar o tamanho da imbecilidade e da crueldade desse maldito e bestial espetáculo. É inconcebível a insensibilidade dos que aplaudem e gritam de braços abertos, a cada perfuração feita por uma lança que atinge um indefeso touro, que apesar do seu grande porte não tem como se defender. Não se pode ter idéia das dores lancinantes e do ódio que ele sente dos seus algozes, insultando-o e cravando aquelas lanças de aço pontiagudas em suas costas, dilacerando-lhe as carnes, atravessando-lhe os pulmões, quebrando-lhe os ossos da espinha dorsal e provocando-lhes terríveis hemorragias, até que ele perca todas as forças e caia estendido no chão, morrendo ao som dos aplausos e dos olés do público que se diverte às custas do seu sofrimento e morte em meio a tanto pavor, tanta angústia e tantas dores.. Enquanto isso, o toureiro, aquele seu feroz e gratuito inimigo, é aplaudido de pé, por aquela insana platéia de bárbaros.
Recentemente o mundo inteiro viu estarrecido, em vídeos divulgados pela mídia, um desses monstruosos espetáculos em que um pobre touro bravo, enlouquecido e machucado por aquelas bestas humanas que o insultavam e o atormentavam publicamente, apavorado com a gritaria da platéia tentou livrar-se a qualquer custo daquele horror, lançando-se desvairadamente sobre as arquibancadas, numa fuga espetacular e desastrosa. O desfecho do terrível episódio foi pavoroso, fazendo muitas vítimas, até mesmo crianças. O animal de meia tonelada de peso, numa queda horrorosa despencou pela escadaria abaixo, caindo todo ferido e quebrado, sendo posteriormente transportado por um guindaste para ser sacrificado, com tanto horror e tanta dor, sem poder compreender nem entender a razão de tanta maldade desses seres, que ainda se julgam com o direito de serem chamados de humanos.
O espetáculo foi dantesco. E mesmo tendo-o visto através de vídeos, não consegui conciliar o sono, à noite, imaginando o pânico das crianças e o desespero do pobre e infeliz animal. Mais chocante que esse quadro macabro, só mesmo um grupo de índios insensíveis devido a sua ignorância, dançando ao som de um berimbau em volta de um caldeirão com água fervente, cozinhando um ser humano vivo, numa aldeia canibal.
Não posso aceitar que em pleno Século Vinte e Um do Ano do Senhor, em um país evoluído e que se diz cristão, mesmo já tendo sido proibido ainda se permita a realização dessa festa de tamanha monstruosidade, um bárbaro espetáculo macabro e sub-humano. E ainda é chamado de animal assassino, o infeliz touro que estava prestes a ser brutal e covardemente assassinado, como tantos outros já o foram, quando os verdadeiros animais estavam dentro e fora da arena, nas arquibancadas, insensíveis às suas dores. Esses sim, são verdadeiros irracionais, seres cuja pobreza de sentimentos é superior à razão que norteia os seres humanos que Deus criou, pois a razão é a grandeza que enriquece a alma do homem, tornando-o racional e impedindo-o de praticar e de se comprazer em semelhantes atos de selvageria.

Júnia ? agosto-2010