Ainda está na minha memória quando Da. Lúcia, uma severa professora primária, deu a sua aula de história do Brasil sobre o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes e herói nacional, explicando o movimento Inconfidente nas Minas Gerais. Fiquei revoltado com a sacanagem que o Joaquim Silvério dos Reis fez com o nosso herói, afinal de contas ele queria libertar o nosso país das mãos insaciáveis dos portugueses.

Na volta para casa depois da aula em que aprendemos que traição é coisa feia, principalmente quando se trai a “Nossa Pátria mãe gentil”, fui pensando na fantasia em que eu voltando no tempo, conseguiria avisar o Tiradentes e salvá-lo da forca e o país do domínio de Portugal.  “Tiradentes, cuidado com o Silvério dos Reis, que ele vai lhe trair tal como fez  Judas com Cristo”.

Mais tarde vim, a saber, que os inconfidentes queriam mesmo defender os seus interesses econômicos e manteriam o sistema escravocrata e não pensavam no Brasil como um todo, mas apenas nas Minas Gerais. Seria a República das Gerais seguindo os ideais da República norte-americana, recentemente proclamada. Além do que o nosso herói era apenas um colaborador do movimento liderado por poetas, oficiais militares e gente influente em Vila Rica. Tudo indica que foi executado para dar exemplo à população, recaindo sobre ele toda a culpa pela “traição”, um crime de lesa Majestade.

Se não houvesse a traição de Joaquim Silvério, o movimento teria condições de sobreviver? Dificilmente, pois a coroa portuguesa dependia dos impostos pagos pela mineração do ouro e mobilizaria todos os seus recursos para recuperar a capitania, que isolada, não sobreviveria muito tempo. Mesmo que Portugal não tivesse recursos para reprimir a revolta, poderia contar com o sempre presente império britânico que tinha fortes interesses nas colônias lusitanas. Além disso, havia muitos portugueses em Minas Gerais, que provavelmente manteriam a fidelidade à coroa. Sem saída para o mar, seria também difícil receber reforços ou recursos e fatalmente haveria uma rendição. Neste caso teríamos muitos heróis e não apenas Tiradentes, o homem dos dentes de ouro.

Toda essa digressão é para contar que há alguns anos, ouvindo o rádio enquanto dirigia para o trabalho, ouvi um conhecido jornalista comentar em seu programa que algumas profissões estavam desaparecendo em razão das mudanças tecnológicas. Um exemplo que ele deu foi o Alferes. “Esta profissão não existe mais, agora é cirurgião dentista”, completou. Eram seis e pouco da manhã e espero que ninguém tenha prestado atenção na gafe, pois alferes era uma designação antiga para o nível mais baixo de oficiais do exército e nenhuma relação com dentista.

Tiradentes era um alferes,  e, também, um arrancador de dentes que sabia revestí-los com ouro, o que fez com os próprios. Como era estudioso, especializou-se, também, em topografia, graças aos conhecimentos adquiridos na mineração.  Mas o Brasil republicano precisava de um herói e Tiradentes se encaixou no figurino pela cruel execução e, também, por ter participado do movimento.

E assim, um homem modesto, com reluzentes dentes de ouro se transformou em um herói de um grande país sul americano.  Não seria nunca um Bolivar ou um San Martin, mas apenas um colaborador militar na guerra de independência caso a revolta fosse adiante.  Domingos Calabar,  guerreiro, filho de um  português com uma índia, traiu os portugueses para lutar ao lado dos holandeses. Como traiu, não servia para ser herói. Durante a ditadura militar uma peça de teatro escrita pelo português Ruy Guerra e musicada por Chico Buarque de Hollanda,  descendente distante de holandeses de Pernambuco,  foi proibida de ser encenada. Coisas da história.