Theatros da locução, a lexicografia bilingue na obra de Rafael Bluteau
Publicado em 13 de novembro de 2012 por Matteo Gianardi
«Theatros da locução», a lexicografia bilingue na obra de Rafael Bluteau
- 1.1 Introdução
A intenção principal deste ensaio é estabelecer uma linha guia geral sobre o Vocabulario Portuguez e Latino de Rafael Bluteau.
Eu poderia ter escolhido qualquer outra obra lexicográfica, mas a razão desta escolha é o facto de eu, como Bluteau, não sou português mas quereria dar ao Portugal o meu contributo.
O autor de Londres defendeu e elevou uma cultura que, na origem, não foi sua e o seu contributo à lexicografia bilingue portuguesa é ainda lembrado e considerado indispensável.
Depois um perfil biográfico sobre a vida de Bluteau e a sua relação com Portugal, descreverei as características e novidades principais do seu Vocabulario e analisarei a estrutura desta obra; o último capítulo tratar-se-á de uma análise do prólogo da obra do teatino, ou seja um texto que acompanha o Vocabulario, em que defende as suas teorias.
1.2 Quem foi Rafael Bluteau?
O autor do Vocabulario Portuguez e Latino nasceu em Londres no ano 1638; de família francesa, Bluteau frequentou as Universidades de Roma, Verona e Paris e doutorou-se na primeira cidade em ciências teológicas, beneficiando de uma enriquecedora experiência de multilinguismo. A sua natureza cosmopolita foi um grande ajudo em Portugal; enviado aos 30 anos, em 1668, para Lisboa, com objetivo de cimentar o prestígio da Ordem em Portugal, Bluteau aprendeu depressa a língua portuguesa e começou a distinguir-se como orador.
Uniu-se ao movimento académico patrocinado pelo conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes. Considerado espião ao serviço dos interesses franceses, retirou-se em França em 1697, depois da morte da Rainha Dona Maria Francisca de Savóia, a sua protetora; regressou em Portugal em 1704, recebendo o ordem de recolher-se ao convento de Alcobaça, devido às suspeitas anteriores.
Em 1710 com a fundação da Academia Real de História (ele foi um dos membros fundadores), todas as suas obras foram impressas e João V nomeou Bluteau académico do número e garantiu-lhe o regresso à corte.
Destacou-se come divulgador na casa do conte da Ericeira durante as Conferências Discretas e Eruditas; uma das suas discussões mais famosa foi aquela sobre a introdução de neologismos na língua, embora não tenha suscitado interesse suficiente para a continuidade deste estudo filológico, destruindo, assim, «o seu sonho secreto de reproduzir em Portugal uma instituição semelhante à Academia Francesa».
- O Vocabulario Portuguez e Latino
[...]se achaõ todas as disciplinas com os termos, de que usaõ, alfabeticamente explanadas; apparecem descripçoens das plantas, dos animaes, dos insectos, dos Mineraes, dos metaes, das pedras brutas, e finais, das drogas naturaes, e artificiaes; nestes mesmos Theatros da locuçaõ, e da erudiçaõ fazem sue papel a Theologia Moral, a Escolastica, a Jurisprudencia Civil, e Canonica, a Geometria, a Geografia, a Hydrografia, a Astronomia, a Gnomonica, a Musica, a Optica, a Catoptrica, a Dioptrica, a Perspectiva, a Pintura, a Escultura, a Arquitectura civil, e militar, e Statica, Tactica, e Pyrothectica[...]
Todavia, apesar de ser um dicionário de língua, o Vocabulario pode ser considerado um dicionário universal devido à sua grandeza do conteúdo (inclui também topónimos e mitónomos).A recolha do material para o Vocabulario começou em 1680 e a composição da obra ocupou 50 anos da vida de Bluteau. Não sabemos decerto qual foram todas as obras que forneceram material ao teatino, mas podemos identificar alguns dos títulos que o influenciaram, ou seja o Tesoro da lengua castellana e española (Cobarruvias, 1611), o Vocabolario degli Accademici della Crusca (1612), Le grand dictionaire historique, ou la melange curieux de l'historie sacreé et profane (Luis Moreri, 1671), o Dictionaire Universel (Furetière 1690) e o Dictionnaire de l'Académie Françoise (1694).A intenção de Bluteau, como escreveu na dedicatória a D. João V, foi de fazer justiça «à grandeza da língua portuguesa, de Portugal e, sobretudo, do seu rei, objetivos que conferem ao Vocabulario uma dúplice função política», porque «além de contribuir para a afirmação do português no panorama linguístico europeu, concorre para a construção da imagem de um monarca ilustrado e mecenas». Por isso a corte agradeceu a ideia de um dicionário com estas intenções, além disso, não houve, em Portugal, obras que pudessem ser comparadas com os grandes trabalhos lexicográficos estrangeiros.Apesar do seu titulo, o Vocabulario Portuguez e Latino, apresenta-se come uma obra entre a lexicografia bilingue e monolingue, porque o objetivo de Bluteau foi demonstrar que a língua portuguesa podia igualar o latim, reduzindo as informações latinas nos artigos e nas entradas.O tipo de nomenclatura é inspirado pelos dicionários de Barbosa e Pereira, recolhendo também os termos introduzidos em Português pelas viagens, pelos contactos com outras culturas, tratados técnicos e termos da oralidade portuguesa.João Paulo Silvestre do Centro de Linguística de Lisboa fez uma comparação entre o Dictionarium, o Thesouro e o Vocabulario para observar a integração, na obra de Bluteau, da tradição anterior; ele relacionou as diferentes entradas do verbo “debilitar”:No Dictionarium Lusitanicolatinum
Debilitar, i. enfraquecer. Debilito, as, pen. Corr.
Frango, is, fregi, fractum.
Dolor me debilitat, Cic. pro Rab. Posth
Vocem fletu debilitare, Cic. pro Caelio.
Frangi dolore, vel metu, Cicero 2. Tuscul.
& lib. 1. Offic.
Labefacio, labefacis, p.c. Lucret. Lib. 4.
Cousa debilitada, i. enfraquecida, ou fraca. Debilitatus,a, um, p.p. Particip.
Fractus, a, um. Particip.
Debilis, & hoc debile, p.c. adiect.
Virtus debilitata, animus fractus, Cic.
Post reditum ad Quirites.
Corpus debilitatum, Cic. pro Sextio.
Fractum, & debilitatum Graeciae nome,
Cic pro Flacco.
Cic. Planco lib. 10. epist. 3.
Frangere aliquem ingenio, & industria.
No Thesouro da Lingoa Portuguesa:
Debilitar. Debilito, as. Labefacto, as. Enervo, as.
Debilmente. Fragiliter
Debilitaçam. Debilitas, atis. Fragilitas, atis.
Debilitada cousa. Debilis, & le. Debilitatus, a, um.
Debil cousa. Debilis, & le. Fragilis, & le.
No Vocabulario Portuguez e Latino:
DEBIL. Fraco de forças. Debilis, le, is. Cic.
Saude debil. Infirma valetudo. Cic. Vos
debil. Vox exigua. Virgil Vox pusilla. Quintil.
Vox languens. Cic.
E como pode, a Debil voz levanta. Malaca
conquist. Livro 12. oit. 25.
Debil. Dizse de outras cousas naturaes, &
artefactas. Os que tem muy Debil uso de
razaõ, como os negros boçaes. Promptuar.
Mor. 216.
Governando toda a aurea Chersoneso
Lhe defendeo cò o braço o Debil muro.
Camoens, Elegia 4. Estanc. 5.
DEBILIDADE. Fraqueza do corpo, ou do
espirito. Debilidade do corpo; Corporis debilitas,
atis. Fem. Ainda que lhe pedia cama a
Debilidade do corpo. Lemos, Cercos de Malaca,
pag. 56. vers.
Debilidade do espirito. Animi infirmitas, ou
debilitas. Cic. Remedio efficas à nossa Debelidade.
Vieira, Tom. 5. 152.
DEBILITAÇAM, ou debelidade. Falta de
forças. Imbecilitas, infirmitas, atis. Cic.
DEBILITADO. Eufraquecido. Debilitatus,
enervatus, fractus, a, um. Cic. Alguma cousa debilitado.
Subdebilitatus, a, um. Cic. Esta taõ Debilitado,
& velho. Agiol. Tusit. Tom. 1.
Debilitado. Abatido. Attenuado. Monarchia
debilitada pela cötinuaçaõ das guerras. Imperium
diuturno bello attenuatum, assi como dis
Cesar, Legi, praelijs attenuata. E vendo Debilitada
a Monarchia. Duarte, Rib. Juizo Hist. pag.
248. se o estado Debilitado podera sustëtar
huma guerra dilatada. Azevedo Apolog. Disc.
pag. 71.
DEBILITAR. Enfraquecer. Debilitare. Cic.
Debilitar. Abater. Diminuir. Debilitare. Cic.
Debilitar. Abater. Diminuir o poder &c.
Debilitar huma Monarchia. Attenuare vires
Imperij, assi como dis Tito Livio, Attenuare
praesidij vires. Debilitar muito o povo. Multò
infirmiorem, humiliorëmque populum redigere, (go,
egi, actum.) Caes. Debilitar hum partido. Factionem
debilitare. Cic.
DEBILMENTE. Com pouca força. Debiliter.
Cic.
Barbosa limita-se a registar o verbo e o seu particípio, enquanto Pereira fornece muitas entradas.O Thesouro, de facto, foi o exemplo que Bluteau seguiu, embora a sua obra tenha um numero maior de entradas. Os exemplos anteriores foram só uma linha guia para o teatino, que adicionou muitos neologismos e novas entradas como topónimos, os quais ocupam uma boa parte do Vocabulario.A função do Vocabulario, devido à presença de artigos eruditos, não é só aquela de pesquisa, mas é também útil na esfera da educação e formação. Citando as palavras do Conte da Ericeira:
Neste Vocabulario se acha a cada folha uma flor, e hum fruto, que come se vê no terreno felice e no clima benigno, sem artificio nasce fragante, e sazonado; e por esta causa repito sempre, que os outros Diccionarios servem só para buscar, e este também para se ler, instruindo, deleitando[...]
- Prologo do Vocabulario e a defesa lingua
BLUTEAU, Rafael, Vocabulario Portuguez, e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Critico, Chimico, Dogmatico, Dialectico, Dendrologico, Ecclesiastico, Etymologico, Economico, Florifero, Forense, Fructifero, Geographico, Geometrico, Gnomonico, Hydrographico, Homonymico, Hierologico, Ithyologico, Indico, Isagogico, Laconico, Liturgico, Lithologico, Medico, Musico, Meteorologico, Nautico, Numerico, Neoterico, Ortographico, Optico, Ornithologico, Poetico, Philologico, Pharmaceutico, Quidditativo, Qualitativo, Quantitativo, Rhetorico, Rustico, Romano; Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapteutico, Technologico, Uranologico, Xenophonico, Zoologico. Autorizado com exemplos dos melhores escritores portuguezes, e latinos, e offerecido a El Rey de Portvgval, D. Joaõ V. pelo Padre D Raphael Bluteau Clerigo Regular, Doutor na Sagrada Theologia, Prêgador da Raynha de Inglaterra, Henriqueta Maria de França, & Calificador no sagrado Tribunal da Inquisiçaõ de Lisboa. Coimbra No Collegio das Artes da Companhia de Jesu Anno de 1712. Com todas as Licenças necessarias. [Transcrevemos na íntegra a página de rosto do primeiro tomo. Os primeiros volumes
foram publicados em Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus: I (1712); II (1712); III (1713);
IV (1713). Os restantes imprimiram-se em Lisboa, em diferentes casas tipográficas: na Oficina de Pascoal da
Silva: V (1716), VI (1720), VII (1720), VIII (1721); na Oficina de José António
SILVESTRE, João Paulo, (2001) «Argumentação no prólogo do Vocabulario Portuguez, e Latino: a defesa da obra e da
língua portuguesa», in Luís Machado de Abreu e António Ribeiro Miranda, O Discurso em Análise – Actas do 7º Encontro
de Estudos Portugueses, Aveiro, Universidade de Aveiro, pp. 87-101. ISBN 972-789-048-2.
SILVESTRE, João Paulo, O Vocabulario Portuguez, e Latino: principais características da obra lexicográfica de Rafael Bluteau. Comunicação apresentada no encontro Dicionários da Língua Portuguesa - Património e renovação, Cursos da Arrábida, 20a 2 de Agosto de 2001