Hoje, mais do que nunca para entender o que se passa conosco nos grupos e mundos de que somos parte, precisamos saber colocar nossa vida individual para muito além de nossa vida familiar e das experiências infantis, e situar o romance familiar dentro do romance histórico mundial e este dentro de um contínuo jogo de poderes e valores...

A relação entre a subjetividade e política marcou nossa geração, uma geração nascida da família que se organizava à base da ilusão de que você pode controlar a sua segurança, sua vida, planejar o futuro...

Mas, um acúmulo de forças históricas num abalo sísmico rachou esse modo de subjetivação e o mundo apareceu para além das paredes familiares, desmapeando, completamente, nossa vida aparentemente tão segura...

Logo depois com a ruptura das fronteiras nacionais na mundialização do capitalismo, hoje global, que se instalava e com a aceleração da informação, hoje instantânea, aprendemos na carne que existem muitos, muitos Outros, e somos colocados em contato com a experiência essencial de que tudo o que a gente tem e é. É a partir do Outro que me afeta, do Outro que me atinge e me solicita criar, constantemente, uma nova organização de forma e tratar de estabilizá-la, temporariamente, porque as coisas estão sempre mudando...

Começamos a perceber também que o Outro não é só alguém... Ou algo... Que você respeita, conhece ou não, numa atitude democrática ou não, do mesmo modo que a realidade não é um pano de fundo nem um mobiliário dentro do qual você se move e se posta. O Outro são acontecimentos de toda a espécie: movimentos econômicos, políticos, sociais, culturais, inovações tecnológicas, modos, modas, comportamentos, valores, guerra –-- tudo se fazendo e se desfazendo, se misturando...

O Outro, o estranho, o diferente tem a característica de se apresentar sempre como um problema-desafio, às vezes, tão excessivo que te faz viver algo que não se encaixa naquilo que você já dispõe enquanto mapa para se orientar e o virtual repertório de formas existenciais com as quais responder e atuar, face às demandas, o que obriga a gente a criar um si mesmo que não existia antes para que possa se articular às formas de viver, fazer as coisas, se relacionar, sobreviver...

E nós que não somos mais um eu entre eus estáveis, como pensávamos, nos descobrimos como apenas um lugar, mas, um lugar vivo que tem a incrível capacidade muito mais complexa que qualquer outro vivo de autoconstruir-se, continuamente, quer saibamos ou não, com a matéria desses encontros. E que geramos, simultaneamente, com o Outro de nosso encontros/ambientes aonde o efeito desses encontros vai se efetuando como um corpo e materializando mundos...

Mas, a subjetividade assim compreendida como esse lugar vivo e, portanto; biológico onde os encontros se processam e se condensam, gerando novos mapas do vivido e novas formas somático-existenciais nesse processo de produção capitalístico, vertiginoso e que pode fazer adoecer, perder potência formativa, sofrer, desorganizar-se, não aguentar e se arrebentar como efeito do modo como o capitalismo hoje opera na subjetividade para sustentar-se a si mesmo.

A subjetividade capitalística com seu funcionamento de mercado nos faz agudamente temer a exclusão e desejar a hegemonia, ansiosamente, mais que em qualquer outro momento da história.

Para meter-se nesse jogo pesado --- com essa subjetividade encarnada, necessitamos, antes de qualquer coisa, munirmo-nos de certos instrumentos teóricos e pragmáticos –-- não para vencer a feroz competição do mercado --- mas, para que possamos nos constituir em aliados dos processos de fortalecimento da capacidade de responder, formativamente, aos encontros...

Isso significa que necessitamos criar um instrumental não que controle esse processo, mas, que o contemple antes de tudo com um sentimento –-- um sentimento de ser parte, parte desse processo biológico e social, parte da ecologia da evolução e parte da ecologia das subjetividades...

Saber que herdamos formas biológicas que disparam na hora certa e no momento certo –-- formas testadas pela evolução e codificadas geneticamente --– as formas embriogenéticas -as formas da nossa constitucionalidade, as formas da maturação, da proteção, do ataque, das emoções, as matrizes dos gestos e das ações que emergem da profundidade do oceano formativo ou disparam na hora necessária, mas, (atenção!) que já emergem num mundo regido por forças de exclusão e hegemonização, as quais, imediatamente, capturam-nas, canalizam-nas para dentro de redes de sentidos e as moldam em outros caracteres, gerando novas configurações, novos modelos de pensar, sentir, fazer...

Assim, cada nova forma biológica que emerge a cada momento na continuidade da vida em cada corpo é, imediatamente, ameaçada pelas forças de exclusão e hegemonia já tendo à sua disposição formas pré-fabricadas pelo capitalismo, testadas pela seleção do mercado, manipuladas pelas pesquisas de opinião e sustentada por tecnologias criadas pelas mentes mais brilhantes. Essas formas estão aí, preenchendo todo o espaço da nossa percepção, se oferecendo para produzir em nós a ilusão de inclusão nesse mundo!

Em outras palavras, o jogo de forças do capitalismo hoje na tensão concentração-periferização do poder, gera ameaças de exclusão e oferece ao mesmo tempo, imagens-ícones de modelização inclusiva (!).

São gerados todos os elementos que usamos na constituição dos novos modos de existir que somos, continuamente, obrigados a elaborar: modos de habitar, vestir, relacionar-se, pensar, imaginar -- em suma, modos de existência a ser, rapidamente, a assimilar, e em relação aos quais somos simultaneamente: produtores-espectadores-consumidores-manipuladores...

Esse kit performático vem acompanhado de uma poderosa operação de marketing que nos faz acreditar que se identificar com essas imagens e consumi-las é imprescindível para que consigamos reconfigurar nosso território existencial que, continuamente, se desfaz na velocidade da informação e dos acontecimentos e mais do que isto; que este é o canal para pertencermos ao território da hegemonia. Isto não é pouca coisa, pois fora desse território corre-se o risco de morte social -–- por exclusão, humilhação, miséria, discriminação, quando não a própria morte concreta...

Imagens dessa demarcação saturam o visível: as subjetividades incluídas na propaganda, na Mídia --- gente feliz em seus cenários de amor, prazer, família, lazer e segurança --- e de outro lado; as subjetividades excluídas vivendo em seus cenários de horror: Guerra, tráfico, sequestro, filas nos hospitais, crianças desnutridas, gente sem teto, sem terra, analfabetismo, desempregados, sem papel social, sem cidadania... Sem esperança!

O alto índice de atenção mobilizado pelas sofisticadas técnicas de comunicação alimenta o potencial de identificação com os ícones de inclusão que por sua vez alimenta o funcionamento dessa máquina infernal de sobrecodificação do processo vital que se tornou uma das principais engrenagens, senão a principal delas do capitalismo contemporâneo.

Vejamos então como ao nos aliarmos às forças do vivo, desmontando a armadilha:

Enquanto o capitalismo tece sua rede maligna de dentro do contínuo processo biológico de seus programas inatos, o humano prossegue formando a si mesmo, soberano --- e com a inacreditável força da vida de que é portador luta sem parar para manter sua continuidade, seja como for, aconteça o que for... O corpo, essa bomba pulsátil -- essa anatomia emocional -- construída pelos processos seletivos da evolução, em constante autoconstrução a partir de material ambiental, continuamente, constrói ambientes para si, liga-se ao diferente de si através da emoção/imitação, imitando a si mesmo e a tudo o que o cerca...

Consideramos a atenção, o vincular-se e o imitar como os impulsos básicos servidores do processo formativo em nós.

A atenção recorta os encontros, o vincular-se garante a formação de ecologias, o imitar garante o aprendizado de comportamentos e estratégias existenciais.

Diante de experiências inassimiláveis tais como as ameaças à existência produzida hoje pelos processos de periferização e exclusão nos processos de produção e modelagem de mundo no capitalismo atual, a bomba pulsátil distorce, imobilizam-se, desorganiza-se, amortece, explode, isola, enrijece, incha, perde, reduz, não desenvolve a capacidade de gerar novas imagens de si organizadoras de novas ações e ligações. A atenção vira pânico!

O PÂNICO tornou-se uma patologia da contemporaneidade.

Antes da explosão capitalista (neoliberalista) sentíamos MEDO...

O medo é para ser SENTIDO... E não... VIVIDO!

Medo VIVIDO é patologia! Medo sentido é PROTEÇÃO NATURAL! Faz parte dos... INSTINTOS DE SOBREVIVÊNCIA...

Só que o SOCIAL nos ensinou a ter PÂNICO, ao invés de só sentir... MEDO! E com o PÂNICO vieram... As fobias!

As ligações emocionais tornam-se desesperadas, desesperançadas, pouco discriminadas, reduzidas. A imitação torna-se maciça e não digerida. Não maturamos potência formativa de ligação e de sustentação de nossos territórios existenciais com força de troca e mistura com outros territórios. Sofremos. Tememos pela nossa continuidade.

Um projeto que trate da subjetividade somática hoje necessita ser compreendido como um nicho, uma ecologia relacional onde o processo formativo pode retomar sua potência, maturando formas, desorganizando o que impede de receber o Outro e formar a si mesmo com a matéria dos afetos. Isso revela que a preocupação central do corpo não é apenas sobreviver, mas, sobreviver através de uma relação consigo mesmo, de organizar a experiência em formas somáticas e comportamentos, assimilar os acontecimentos que nos chegam de instâncias pré-pessoais como a nossa herança filogenética e constitucional e de instâncias pós-pessoais como as figuras da subjetividade disponíveis no social, organizando uma instância pessoal psiconeuromotora de múltiplas linguagens e camadas a que chamamos sujeito ou pessoalidade...

Para compreendermos esse processo de invenção dos futuros, necessitamos avançar um pouco mais na compreensão do corpo. Na continuidade do processo formativo, virtualidades vão selecionando-se a si mesmas até que solidificamos novos comportamentos--- formas somáticas que dêem conta da excitação gerada nos encontros com nossa própria forma e as formas do mundo.

E, inversamente, des-solidificamos comportamentos e formas que não mais nos viabilizam. O processo vivo tem um investimento total em continuar a corporificar-se. Por isto, está em diálogo constante consigo mesmo.

E esse diálogo é sempre sobre o que fazer a respeito da minha situação imediata...

O corpo fala por sensações, sentimentos, motilidades, portanto; ele precisa falar de volta consigo mesmo de tal modo que possa influir em seu comportamento. Então o corpo tem a potência de influenciar a si mesmo moldando-se a si mesmo em ações, inibindo-se a si mesmo ou reagindo em relação a si mesmo. Isso ele faz através de um elegante sistema de feedback neural que chamamos... Cérebro.

O corpo organiza a si mesmo para conversar consigo mesmo construindo para si um órgão que é capaz de receber de volta seus padrões de ação e conversar consigo mesmo sobre eles. Quer dizer, há sempre uma relação do corpo consigo mesmo ocorrendo o tempo todo, mediado pelo cérebro. Então, essa relação ocorre como o modo pelo qual o corpo regula seu próprio metabolismo, seus movimentos e motilidades, o modo pelo qual altera e regula a forma de suas expressões...

A vida e a evolução ininterrupta nos dotam dessa herança não porque sejamos especiais, individualmente, mas porque essa herança nos permite aumentar a potência e a diversidade dessa própria herança em nós e no pool da vida. Já sabemos que o capitalismo opera contra tudo isso tentando todo o tempo capturar essa potência da vida, torna-la consumidora de imagens de inclusão manipuladoras e modeladoras de comportamentos, conduzindo à homogeneização, pasteurização e, portanto, ao enfraquecimento do pool da vida.

Toda uma revolução cultural se faz necessária para provocarmos uma ruptura inexorável com as forças dominantes capitalistas. Cultuarmos o naturalismo, sem o apego excessivo à tecnologia. Levarmos uma vida com mais despojamento, simplicidade e igualdade.

A feroz competição capitalista induz mentes a sobrepujarem-se umas às outras, prega a produção econômica em detrimento de outros valores, cultua o materialismo, o consumo desenfreado, a ostentação, o vício, a luxúria, o prazer, o sexo sem compromisso afetivo, a mutação do que antes era necessidade em DESEJO!

É preciso desejar SEMPRE mais para esvaziar as prateleiras – as fábricas querem produzir mais para que possam vender mais... Os comerciantes querem LUCRAR mais...

E os consumidores querem consumir mais, manipulados que são pela Indústria Cultural da Mídia que estimula, sem cessar, os novos hábitos e, consequentemente... Novas compras, e mais Capital para as elites econômicas...

O homem perdeu a autonomia de decidir sobre sua própria vida, costumes e valores. Tornou-se uma marionete da Publicidade > uma ferramenta maquiavélica a serviço dos poderosos que querem se perpetuar no Poder, desde o Feudalismo.

Reinaldo Müller > "Reizinho"